sexta-feira, 28 de abril de 2017

Gestualidade ancestral

Gestualidade ancestral: a ressignificação de Iansã em processos de criação cênica
Por: Daniela Beny


Daniela Beny Polito Moraes é Mestra com título obtido no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN (2017). Especialista em Antropologia pela Universidade Federal de Alagoas/UFAL (2014), possui graduação em Artes Cênicas: Licenciatura em Teatro pela UFAL (2011). Atualmente é dramaturga, atriz, produtora e diretora - Invisível Companhia de Teatro e assistente de produção - Patacuri - Cultura, Formação e Comunicação Afro-Ameríndio. Atuou como professora de Artes pela Secretaria de Estado da Educação e do Esporte e professora - Secretaria do Estado da Educação e Esporte e professora contratada da Universidade Estadual de Alagoas. Principal foco de interesse nas Artes Cênicas é o treinamento de atores/atrizes através do uso dos elementos da dança e da mitologia de Iansã com base na Antropologia Teatral. Atualmente atua como professora substituta de teatro do IFRN Campus Ceará-Mirim.

RESUMO
Visamos discutir o trânsito dos elementos de Iansã do sagrado para a criação cênica, relatando experiências práticas com referência à mitologia e à corporeidade de Iansã para o acesso à gestualidade ancestral. Esta pesquisa de caráter Fenomenológico com base em Merleau-Ponty teve como ponto de partida a etnografia da saída-de-orixá de uma Ialorixá e a observação de ensaios/apresentações de um afoxé, desdobradas em práticas com um grupo de teatro como parte do processo de criação e ampliação do repertório corporal. Pretendemos trazer o diálogo entre Antropologia da Performance, Antropologia Teatral e estudos da Performance Afro-ameríndia, tomando como referência Schechner, Barba e Ligiéro.

Palavras-chave: Orixá, Iansã, Antropologia da Performance, Antropologia Teatral, processo de criação.

Gestualidade ancestral: a ressignificação de Iansã em processos de criação cênica
O presente artigo visa por em diálogo aspectos abordados pela Antropologia da Performance, a Antropologia Teatral e os estudos da performance afro-ameríndia na perspectiva de uma metodologia voltada para o processo de criação cênica para atores e atrizes tomando como base os elementos de Iansã[1] – levando em consideração aspectos arquetípicos, mitologia e codificação corporal da dança desta Iyabá[2]. Considerando que

Nesse estudo, a codificação corporal é considerada como elemento de comunicação da coreografia, através do qual aspectos do arquétipo do Orixá são observados e reconhecidos. Esta significação da codificação corporal é re-significada quando sua execução quanto dança sai do espaço sagrado dos terreiros e ocupa o espaço do palco/rua/salas de ensaio; cabendo à pesquisa problematizar e discutir a apropriação no campo secular de um elemento sagrado, uma vez que o corpo é de fundamental importância para o Candomblé e a Umbanda por ser o meio em que se dá o contato/comunicação entre o plano espiritual e o plano material (BENY, 2014a, p. 15)

Esta necessidade, ou melhor, esta inquietação que me conduziu a buscar investigar outras possibilidades do processo de criação e ampliação de repertório corporal de atores e atrizes nasceu da observação da saída-de-orixá da Ialorixá Nany Moreno e dos ensaios e apresentações do Afoxé[1] Oju Omim Omorewá, observando que, a codificação corporal do Orixá[2] tomando o corpo do médium em transe e as coreografias do Afoxé prestando homenagem à Iansã possuíam características de movimentos que seriam interessantes experimentar em sala de ensaio, o que ocorreu junto ao Coletivo Cores, na cidade onde estou desenvolvendo a pesquisa, que atualmente se encontra em andamento.
Como um elemento de intersecção entre o Candomblé e o teatro, é possível trazer à reflexão desse trânsito Candomblé à Afoxé à Laboratório à Teatro um apontamento de Eugenio Barba (2012, p. 230) ao definir que “A codificação corporal é uma consequência visível dos processos fisiológicos do ator, para dilatá-los e para produzir um equivalente das mecânicas e das forças que funcionam na vida. A codificação é formalização”, relocando o corpo codificado religioso para as artes, inclusive como um processo de potencializar o artista da cena para o melhor desenvolvimento do seu ofício.
Antes de me aprofundar nos aspectos étnicos que envolvem esta pesquisa e nos relatos do processo de experimentação como acesso à gestualidade ancestral, será necessário trazer aqui três conceitos fundamentais dessa investigação.
Inicialmente trago o suporte teórico de Richard Schechner (2013) para discutir os conceitos de performance adotados para esse estudo, onde o mesmo propõe que

[...] performance pode ser:  comportamento ritualizado condicionado/permeado pelo jogo. Rituais são de uma forma de as pessoas lembrarem. Rituais são memórias em ação, codificadas em ações[...] O jogo dá às pessoas a chance de experimentarem temporariamente o tabu, o excessivo e o arriscado (SCHECHNER, 2013a, p. 49 e 50).

Além disso, Schechner (2013b) argumenta que

A “performance” (...) é um “amplo espectro” de atividades que vão desde o ritual e o play (em todas as suas variedades desconcertantes e de difícil definição) até formas populares de entretenimento, festas, atividades da vida diária, os negócios, a medicina e os gêneros estéticos do teatro, da dança e da música. Não se tratava de afirmar que tudo nessas atividades é performativo, mas que cada uma delas tem qualidades que poderiam ser efetivamente analisadas e entendidas “como” performance (SCHECHNER, 2013b, p. 37-38)

Assim sendo, nesta investigação, a performance será encarada inclusive com a ideia de jogo, ou melhor, de to play, pensando no caráter mais abrangente do termo em inglês, compreendendo que este indivíduo que performa interage de muitas formas com o ambiente ao seu redor, seja brincando, jogando ou atuando, tudo isso através de sua corporeidade, que como propõe Merleau-Ponty (1994), é a forma do indivíduo ser-estar no mundo.
Outro conceito que trago para esse diálogo, ou melhor, para essa triangulação, é o de Antropologia Teatral, proposto e desenvolvido por Eugenio Barba junto ao Odin Teatret, que propõe que

[Antropologia teatral é] (...) o estudo do comportamento cênico pré-expressivo que se encontra na base dos diferentes gêneros, estilos e papéis das tradições pessoais e coletivas. (...) A Antropologia Teatral é um estudo sobre o ator e para o ator. É uma ciência pragmática que se torna útil, quando, por meio dela, o estudioso chega a ‘apalpar’ o processo criativo e quando, durante o processo criativo, incrementa a liberdade do ator (BARBA, 2009, p. 25 e 30).

Vale salientar que Barba considera que o comportamento cênico pré-expressivo “relaciona-se com o processo, não com o resultado, onde o ator deveria ter como objetivo o trabalho sobre si mesmo no sentido da conscientização de seu corpo para a dilatação de sua energia e para aprender a desenvolver sua presença (SAUL, 2006, p. 19)”, então a metodologia que proponho aqui, acessa esse estado de presença a partir do que chamo de gestualidade ancestral, que no caso da Dança de Iansã, trará aspectos que se aproximam bastante de alguns elementos que dizem respeito à dilatação, oposição, equilíbrio precário e outra série de fatores apontados por Barba como fundamentais para estimular o treinamento energético no nível pré-expressivo.
Como estou observando e propondo o transporte e ressignificação de uma expressão sagrada e artística afro-brasileira, trago aqui um paralelo interessante ao que estou tomando como referência de corporeidade, apresentada por Ligiéro (2011b) que é

O conceito de Motrizes Culturais será empregado para definir um conjunto de dinâmicas culturais utilizadas na diáspora africana para recuperar comportamentos ancestrais africanos. A este conjunto chamamos de práticas performativas e se refere à combinação de elementos como a dança, o canto, a música, o figurino, o espaço, entre outros, agrupados em celebrações religiosas em distintas manifestações do mundo afro-brasileiro (LIGIÉRO, 2011b, p. 130)

E complementa considerando que

É o objetivo desse estudo, definir as principais dinâmicas nestas celebrações a saber: 1) o emprego de elementos performativos: canto, dança e música; 2) a utilização simultânea ou consecutiva do jogo e do ritual na mesma celebração; 3) o louvor aos ancestrais por meio do culto ou transe; 4) a presença de um mestre que guarda o conhecimento da tradição e que por meio da iniciação transmite o legado e que, na maioria dos casos, é também o performer que lidera o ritual e/ou celebração, e a 5) a utilização do espaço em roda, os performers se movimentam dentro do círculo enquanto a plateia assiste em volta (LIGIÉRO, 2011b, p. 130).

Mesmo que no trânsito Candomblé à Afoxé à Laboratório à Teatro não se mantenham essas cinco dinâmicas, em algum ponto do processo de trânsito e ressignificação as mesmas estiveram presentes, se mantendo como matriz daquilo que poderá estar em cena.
Compartilhada aqui a tríade da observação cênica desse trânsito e ressignificação, vale a pena familiarizar o leitor com aspectos que considero fundamentais tanto para observação quanto para prática cênica, que são a corporeidade e a ideia de en/incorporação.
Poderia tomar como base várias definições de corporeidade, mas creio que se faz necessário nesse momento, como pesquisa acadêmica, entender como a Fenomenologia e o Candomblé compreendem o corpo dentro de suas especificidades, assim sendo, ao conceituar corpo e sua relação com o espaço, o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty indica que

O corpo é nosso meio geral de ser no mundo. Ora ele se limita aos gestos necessários à conservação da vida e, correlativamente, põe em torno de nós um mundo biológico; ora, brincando com seus primeiros gestos e passando de seu sentido próprio a um sentido figurado, ele manifesta através deles um novo núcleo de significação: é o caso dos hábitos motores da dança. Ora, enfim a significação visada não pode ser alcançada pelos meios naturais do corpo; é preciso então que ele construa um instrumento, e ele projeta em torno de si um mundo cultural (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 203)

Obviamente que temos contextos sócio-histórico-culturais muito diferentes entre a França do início do século XX após passar por duas grandes guerras e um grupo artístico situado na periferia da cidade no nordeste brasileiro em pleno século XXI, por esta especificidade, a corporeidade iorubá foi pensada e discutida sob a perspectiva apontada pela dançarina, professora e pesquisadora em dança Dra. Suzana Martins, ao propor que

O termo corporalidade refere-se ao tratamento dado ao corpo como um conjunto de elementos simbólicos estruturados para um determinado fim. No Candomblé, a corporeidade é construída a partir da união espiritual decorrente da intervenção primordial da divindade. (...) Nesse contexto, a corporeidade é representada pelo corpo em movimento – o jeito de dançar – que ostenta vestimenta litúrgica, atributos e adereços simbólicos embalados pela qualidade específica da música e do Orixá (MARTINS, 2008. p. 81)


Para além de pensar o corpo do médium em transe como local onde ocorre um procedimento litúrgico, e, por conseguinte, sagrado, também considero este corpo dançante responsável pela corporificação de elementos que manifestam as forças da natureza – seja num aspecto mais etéreo como ar, relâmpago, fogo, no caso de Iansã ou elementos mais concretos como animais – no caso o Búfalo e a Borboleta.
         Ao lidar com a observação de processos sagrados que envolvem transe e com processos de criação cênica que visa também ampliar o repertório corporal de intérpretes-criadores, no desenvolver desta pesquisa, utilizo o termo en/incorporação[3] ao que se refere à um momento muito específico de minha investigação, pois antes de experimentar as práticas que levam à gestualidade ancestral do elenco com quem venho trabalhando, experimentei a Dança de Iansã com a Ialorixá Nany Moreno e em seguida, realizei meus experimentos individuais baseados na improvisação com base no que foi experienciado da codificação corporal da Dança de Iansã.
 Quero salientar aqui que escolho esse termo por compreender que não haveria outra forma de apreender os elementos que quero trabalhar como base metodológica para processos de criação de terceiros se não for corporificando essa experiência, pois, como aponta Merleau-Ponty (1999) é através da experiência corporificada que compreendemos e estamos no mundo. Aqui traço um paralelo com Richard Schechner (2003) com o conceito de comportamento restaurado

Comportamento restaurado é simbólico e reflexivo. Seus significados têm que ser decodificados por aqueles que possuem conhecimento para tanto (...) Tornar-se consciente do conhecimento restaurado é reconhecer o processo pelo qual processos sociais, em todas as suas formas, são transformados em teatro, fora do sentido limitado da encenação de dramas sobre um palco (SCHECHNER, 2003, p. 35)

Pois mesmo que eu não esteja dentro do ritual religioso dançando durante o transe, ainda assim, estarei recuperando no meu repertório corporal elementos da minha ancestralidade que surgem durante os experimentos, mesmo que o com quem estou conduzindo os experimentos para o processo de criação não tenha passado pelas aulas da Dança de Iansã, alguns elementos que fazem parte da corporeidade desta Iyabá aparecem nas improvisações quando são dados alguns estímulos em relação à ações e a referência imagética das forças da natureza que estão ligadas à Iansã.


Yansã e elementos de sua simbologia - imagem dos arquivos pinterest @Behance: "Orixás"


O caminho entre o sagrado e o artístico
Compreendendo como a corporeidade é construída no Candomblé, a Dança de Iansã no âmbito sagrado trás elementos dramáticos se consideramos como análise a relação ritual-jogo proposta por Johan Huizinga (2008) ao dizer que

O ritual é um dromenon, isto é, uma coisa que é feita, uma ação. A matéria desta ação é um drama, isto é, uma vez mais, um ato, uma representação num palco. Esta ação pode revestir a forma de um espetáculo ou de uma competição. O rito, ou “ato ritual”, representa um acontecimento cósmico, um evento dentro do processo natural. Contudo, a palavra “representação” não exprime o sentido exato da ação, pelo menos na conotação mais vaga que atualmente predomina; porque aqui “representação” é realmente identificação, a repetição mística ou a reapresentação do acontecimento. O ritual produz um efeito que, mais do que figurativamente mostrado, é realmente reproduzido na ação. Por tanto, a função do rito está longe de ser simplesmente imitativa, leva a uma verdadeira participação no próprio ato sagrado (HUIZINGA, 2008, p. 18)

Essa “representação” que ocorre no ritual e, mais especificamente, quando Iansã dança no Xirê[4] trará elementos que compõe sua mitologia e que influenciam diretamente a construção de seu arquétipo. Além disso, pela cultura iorubá ser de tradição oral, a corporeidade fará parte desse processo de transmissão de conhecimento já que

Na sedimentação de sua raiz e identidade, a dança do candomblé age definindo palavras através do gesto, intervenções físicas, comportamentos, circunstâncias, fruto de um trabalho coletivo de encenação, para a preservação de suas crenças, enfim, sua cultura. Os meios de expressão espetaculares desses ritos são a dança, a mímica e a gestualidade muito codificada, o canto e o batuque. Na utilização de movimento, cantos e ritmos e na perspectiva de harmonizar-se com eles, teatralizam seus deuses encarnados e os recontam, através do desenvolvimento muito bem definido e rígido que inclui ritos de entrada, transe e ritos de saída, garantindo a volta de todos à vida cotidiana (ZENICOLA, 2014, p. 71)

Nessa teatralização, um dos pontos interessantes de ser observado numa saída-de-orixá é, quando no toque do quebra-louças, os movimentos de Iansã sugerem que ela esteja lançando pratos pelo espaço, com os braços se movendo de dentro para fora e esta ação está intimamente relacionada ao itan[5] do nascimento do ritual do axexê, aqui registrada por Reginaldo Prandi (2001)

Oiá inventa o rito funerário do axexê
Vivia em terras de Queto um caçador chamado Odulecê. Era líder de todos os caçadores. Ele tomou por filha uma menina nascida em Irá, que por seus modos espertos e ligeiros era conhecida por Oiá. Oiá tornou-se logo a predileta do velho caçador, conquistando um lugar de destaque naquele povo. Mas um dia a morte levou Odulecê, deixando Oiá muito triste. A jovem pensou numa forma de homenagear o seu pai adotivo. Reuniu todos os instrumentos de caça de Odulecê e enrolou-os num pano. Também preparou todas as iguarias que ele tanto gostava de saborear. Dançou e cantou por sete dias, espalhando por toda parte, com seu vento, o seu canto, fazendo com que se reunissem no local todos os caçadores da terra. Na sétima noite, acompanhada dos caçadores, Oiá embrenhou-se mata adentro e depositou ao pé de uma árvore sagrada os pertences de Odulecê. Olorum, que tudo via, emocionou-se com o gesto de Oiá e deu-lhe o poder de ser guia dos mortos no caminho do Orum. Transformou Odulecê em orixá e Oiá na mãe dos espaços dos espíritos. Desde então todo aquele que morre tem seu espírito levado ao Orum por Oiá. (PRANDI, 2001, p. 311)

Sendo assim, dos elementos presentes tanto na corporeidade quanto na mitologia de Iansã, alguns em especial me chamaram a atenção no que diz respeito às características dos movimentos – sejam eles com o médium no estado de transe ou ressignificados nas coreografias do afoxé – de tal modo que, durante a pesquisa, busquei categorizá-los num primeiro momento com a finalidade de estruturar a metodologia de criação cênica levando em consideração aspectos elementos que associam o movimento às ações corporais, espaço, tempo, peso e fluência, chegando assim à qualidade de esforço trazidos por Rudolf Van Laban (1978).
No início da pesquisa, considerei os aspectos básicos da corporeidade de Iansã de modo simplista e generalizado, sem ainda ter vivenciado sua dança, considerando então os seguintes elementos:
Quadro 01 - Códigos corporais presentes na Dança de Iansã, elaborado no início da pesquisa
QUALIDADE DO MOVIMENTO
VELOCIDADE
FORÇA
CARACTERÍSTICA
LEVEZA
PESO
ANIMAL ASSOCIADO
BORBOLETA
BÚFALO
FORÇA DA NATUREZA REPRESENTADA
BRISA
TEMPESTADE
VERBO
ESPANAR
CORTAR

Tentei organizar este quadro pensando nos aspectos arquetípicos de Iansã, surgidos durante o levantamento de material e nas características de movimento, relacionando essas características e elementos significantes. A intenção aqui é proporcionar melhor entendimento de como as coreografias se estruturam, observando que, nos movimentos codificados de sua dança estarão presentes os animais aos quais Iansã está relacionada, a força da natureza onde/como se manifesta e os verbos que designam suas atividades no plano espiritual. Considerei como Qualidade de Movimento o que tem mais destaque na execução da dança, associando à “característica” principal descrita através da palavra que expressa o movimento, sendo os outros itens autoexplicativos.
Porém, durante a escrita me deparei com estudos de Denise Zenicola (2014), que ao observar a dança das Iyabás durante o Xirê, propõe a seguinte categorização da Dança de Iansã:

Quadro 02 – Características da Dança de Iansã segundo Denise Mancebo Zenicola (2014, p. 110)
AÇÃO
AÇÃO BÁSICA
AÇÃO SECUNDÁRIA
PESO
TEMPO
ESPAÇO
FLUÊNCIA
Talhar
Forte
Flexível
Expandida e/ou recolhida
Bater
Ativar
Chicotear
Firme ou suave
Enérgica
Súbita
Curta duração
Direta
Imediata
Flexível e linear
Livre


Percebe-se que, mesmo que os aspectos apontados não sejam os mesmos, é possível traçar um paralelo nas observações feitas nos dois quadros se relacionarmos, por exemplo Verbo (quadro 1) com Ação Secundária (quadro 2), além de outros elementos que, embora trazidos de maneira subjetiva e com nomenclaturas diferentes, é possível interpretá-los de modos parecidos, como Característica (quadro 1) e Peso (quadro 2).
Embora Zenicola aponte a ação básica TALHAR como característica principal da codificação corporal da Dança de Iansã, ao trabalhar com cada elemento em separado foi possível elencar outras ações básicas de acordo com a qualidade de energia que se pretende mobilizar, embora o aspecto fluência se mantenha ao trabalhar os três elementos – VENTO, BÚFALO E BORBOLETA – escolhidos para essa pesquisa, como desenvolverei mais adiante.
Convém salientar que, nos dois quadros anteriores os elementos apontados estão relacionados diretamente com o arquétipo de Iansã, sendo possível perceber que a criação/codificação está diretamente relacionada às características de seu temperamento/comportamento e aos fenômenos da natureza associados à deusa.
Apesar de ser base da minha investigação, em dado momento da pesquisa, percebi que o quadro 01 não contempla toda complexidade existente na codificação da Dança de Iansã, do mesmo modo que se mostra muito superficial para ser apontado como norteador dos elementos como proposição de um “treinamento” do artista da cena, o que considero positivo, visto que a pesquisa tem caráter de aprofundamento e parece estar/ter se desenvolvido de forma progressiva. Sendo assim, proponho aqui mais uma tabela que se concentra na relação entre FERRAMENTA X AÇÃO X SUJEITO.

Quadro 03 – Relações entre ferramenta x ação x sujeito, elaborado em 2015
FERRAMENTA DE TRABALHO
AÇÃO
CONTEXTO DA AÇÃO
Alfanje
Cortar
Luta
Eruexim
Espanar
Movimentar o vento, abrir e fechar o tempo, afugentar os eguns
Chicote
Chicotear
Afugentar os eguns
Abebê
Observar*
Observar a retaguarda com um espelho
Abanador
Abanar
Se refrescar em dias de calor
Chifres de búfalo
Bater
Alertar sua prole para riscos eminentes e/ou ser alertada por eles
* Considero que das ações listadas, OBSERVAR seria uma das ações mais passivas, digo isso no sentido da sutileza da sua execução, mesmo que não faça parte dos verbos de movimento listados por Laban, os quais já citei anteriormente.

            As ferramentas de trabalho de fato já são incluídas na Dança de Iansã realizada nas saídas-de-orixá, consequentemente, suas ações também, uma vez que algumas das ações aqui categorizadas também são as ações que Laban (1978) considera como base do gestual humano, pois, mesmo que não tenhamos uma espada em mãos executamos o movimento de cortar. Aqui incluo a coluna CONTEXTO DA AÇÃO por considerar que estou lidando com uma dramaturgia que nos é transmitida pela linguagem não-verbal da dança.
Observando tanto a prática da Dança de Iansã no campo do ritual sagrado quanto na prática artística, é possível perceber que existe a codificação básica e variações dessa partitura. No campo artístico essas variações estão lado a lado com a ressignificação dos símbolos e da dramaturgia da Dança do Orixá específico. Para Schechner (2012), isso faz parte do processo de restauração do comportamento, onde, segundo ele:

Uma partitura pode ser mudada porque ela não é um “evento natural”, mas um modelo de escolha individual e coletiva. Uma partitura existe, como diz o antropólogo americano Victor Turner, “no subjuntivo”, no que Stanislavski chamava de “como se”. Existindo uma “segunda natureza”, o comportamento restaurado está sempre sujeito a uma revisão. Essa “secundariedade” é dialética, combinando o que é negativo com o que é hipotético (o “subjuntivo”) (...) as restaurações não devem ser explorações. Às vezes são feitas com tanto cuidado que, após um tempo, o comportamento restaurado se transforma em seu suposto passado, assim como em seu contexto cultural presente, como se fosse uma segunda pele. Nestes caos, temos a rápida consolidação de uma “tradição” e é difícil de julgar sua autenticidade (SCHECHNER, 2012, p. 245)

Essa fala de Schechner me faz refletir sobre uma questão que considero delicada quando se trata do trânsito de uma performance ritual sagrada para o espaço da performance artística que é a folclorização dos procedimentos religiosos, por isso mesmo reforço que, nessa investigação não pretendo levar à cena Iansã nem possíveis estilizações e sim recorrer aos elementos que compõe a corporeidade e a dramaturgia da sua dança como parte do “treinamento” e/ou processo de criação, tal qual tenho observado durante a condução dos exercícios junto ao C.C.
Após essas primeiras observações tanto no Afoxé quanto na saída-de-orixá, foi chegada a hora da experiência en/incorporada, se deu entre Junho e Julho de 2015, em Maceió, em seis aulas da Dança de Iansã com Nany Moreno, cada uma delas com duração média de três horas, divididas normalmente entre aquecimento e execução de coreografia. Digo execução de coreografia porque nesse momento era necessário que eu aprendesse com Nany Moreno os elementos coreográficos e a relação deles com a mitologia de Iansã transformando-os em um código, em algo que conseguisse comunicar por si só.
Nessas aulas além de mim estavam presentes mais três pessoas: uma atriz e cantora de coral – católica, um bailarino de formação clássica e artista circense – católico, e uma outra atriz também cantora de coral mas Umbandista e com a função de cambona[6]. Optei por convidar estes participantes por serem meus parceiros de trabalho dentro da Invisível Companhia de Teatro e também para poder observar através de filmagens como cada corpo-indivíduo reage às orientações dadas por Nany Moreno. Nem todos estiveram presentes em todos os encontros, mas sempre havia a presença de pelo menos mais um dos participantes.
Percebo que metodologicamente as aulas de Nany Moreno seguem os moldes do que pude observar em campo, onde o processo de ensino-aprendizagem se dá através de mímese, tendo como sequência o observar, copiar e depois ser corrigido, porém a principal diferença do processo de transmissão de conhecimento nesse ambiente criado com um objetivo específico foi o detalhamento de como esses movimentos acontecem, em qual parte do corpo eles têm origem e a sua relação com os itan. Entendo que isso se deu por haverem algumas “regras” preestabelecidas para essas aulas como, por exemplo, o espaço para perguntas, estando a par de que essas aulas faziam parte do levantamento de dados para minha investigação, Nany Moreno buscou atender as minhas necessidades como pesquisadora organizando seu material e a condução dos exercícios em diálogo com as dúvidas que iam surgindo.
Embora todos nós já tivéssemos algum conhecimento prévio de Dança Afro, pois em algum momento de nossas carreiras artísticas já tínhamos feito alguma aula ou oficina com a própria Nany Moreno ou com algum outro/a professor/a, não tínhamos a memória da dança de nenhum Orixá dentro do parâmetro do transe no Candomblé.
Como, tanto no Candomblé quanto na própria pesquisa, os itan estão relacionados à corporeidade, foi impossível dissociar alguns aspectos das “personagens” de Iansã, o que quero dizer é que, para mim, durante as aulas, algumas representações das formas sobre as quais Iansã se apresenta já me sugeriam um tipo de energia e, por conseguinte, uma gama de características para além do que já apresentei como categorização dos elementos da Dança de Iansã. O que pontuo abaixo está relacionado às observações e sensações do meu corpo-sujeito e como foram descritas instantes depois das aulas.
Quadro 04: percepções e características dos movimentos/ações em laboratório individual
PERSONAGEM
[EU-ELEMENTO]
TIPO DE ENERGIA
SENSAÇÃO DO CORPO
NÍVEL DE DIFICULDADE NA EXECUÇÃO
POSIÇÃO DOS PÉS
MOVIMENTOS DOS BRAÇOS
BORBOLETA
Anima
Leveza
Intermediário
Meia ponta
Soltos
BÚFALO
Animus
Peso
Fácil
Espalmados no chão
Retos
VENTO
Anima*

Flutuação
Difícil
Meia ponta
Circulares
*reagindo no meu corpo-sujeito e sendo variável de acordo com cada indivíduo.

Assim, relacionei Iansã sob a forma de Borboleta à feminilidade, sensualidade e sinuosidade pelos movimentos leves e expansivos como quem se mostra. Relacionando-a também à energia Anima, pela suavidade. A forma Búfalo me sugere uma energia mais próxima da masculina, do campo de batalha, do combate, das decisões e atitudes diretas, focadas. Faço menção também à energia Animus, pela vigorosidade. Vale lembrar que essas construções de feminilidades e masculinidades são subjetivas e essa forma de compreender e nomear os símbolos diz respeito ao que eu, como indivíduo, possuo como referência. Quanto ao Vento, não consegui racionalizar muito sobre se seria feminino ou masculino, considero etéreo ao invés de assexuado porque penso nele como algo que não tem – nem precisa ter – forma definida, pois, desses três “personagens” – e que agora opto por nominar de EU-ELEMENTO – é o que possibilita maior variedade de atuação e intenção já que o Vento compreende desde uma leve brisa até a mais furiosa das tempestades. O que também abre precedente para considerar essa qualidade de energia como neutra, mas como nesta tabela trago o que foi experienciado pelo meu corpo-sujeito, no momento do laboratório consegui identificar essa qualidade de energia mais aproximada do Anima, apesar de considerar que ela possa ser variável de indivíduo para indivíduo ou que o mesmo indivíduo possa em momentos diferentes trazes qualidades de energia distintas e que podem variar por diversos fatores.
Mesmo se tratando de aspectos da minha subjetividade e da minha construção de significados, essas sensações me ajudaram/ajudarão a estruturas as conduções a voluntários/as para como chegar a diferentes estados energéticos.
Ao me referir à energia-Anima e à energia-Animus me reporto a Barba (2009) quando o mesmo aponta que

Energia-Anima (suave) e energia-Animus (vigorosa) são termos que não tem nada a ver com a distinção de masculino-feminino, nem com os arquétipos de Jung. Refere-se a uma polaridade pertinente à anatomia do teatro, difícil de se definir com palavras e, portanto, difícil de se analisar, desenvolver e transmitir. Entretanto, dessa polaridade e o modo com que o ator chega a dilatar seu território dependem as suas possibilidades de não cristalizar-se numa técnica mais forte que ele (BARBA, 2009, p. 102-103)

Apesar de seguirmos as orientações de Nany Moreno e buscarmos nesse processo de aprendizagem da base coreográfica a observação e imitação, evidentemente que nossa prática na execução não trazia a mesma precisão que Nany Moreno, pois, além da experiência como dançarina, ela possui o conhecimento da codificação corporal do Orixá dentro do parâmetro religioso, porém, por se tratar de uma pesquisa com bases na Fenomenologia compreendo que o aprendizado passa, ou melhor, se dá no corpo, pois segundo Bocchi e Furlan (2003)

[...] o corpo visado enquanto fenômeno e não enquanto coisa é portador de uma capacidade singular de aprender o sentido de outra conduta, seja o sentido do gesto ou da fala do outro [...] Merleau-Ponty diz que eu só consigo compreender a intencionalidade do outro – e sua atitude para comigo – porque através do meu corpo posso torná-la minha. Assim, encontramos em seu pensamento um lugar especial para o corpo, a ele é atribuído uma potência expressiva que lhe é imanente: o corpo é intencionalidade que se exprime e que secreta a própria significação. Melhor dizendo, a análise do corpo põe à mostra o vínculo entre a expressão e exprimido, cuja indissociabilidade está presente em todas as linguagens, constituindo mesmo a natureza do fenômeno expressivo (BOCCHI e FURLAN, 2003, p. 447-448)

Partindo desse pressuposto, reforço a crença de que, para conduzir os experimentos de ampliação de vocabulário corporal e processo de criação cênica preciso primeiro compreender os caminhos que esses elementos de Iansã fazem no meu corpo e na minha subjetividade, para daí sim, propor aos atores/atrizes experimentar também esses elementos, sempre considerando que, os acessos que faço à minha gestualidade ancestral não serão necessariamente os mesmos que farão outros indivíduos, pois, na etapa de Condução da pesquisa, levei em consideração as práticas corporais prévias de cada participante, não podendo ignorar também a sua relação com a religiosidade.

O outro corpo, o corpo do outro
Compreendida a corporeidade e os elementos de Iansã no Candomblé e os possíveis caminhos de acesso à gestualidade ancestral através da en/incorporação do conhecimento, é chegado o momento da Condução dos exercícios junto ao Coletivo Cores, porém é necessário deixar bem claro que a proposta dessa metodologia de trabalho não é levar para a cena a representação de Iansã ou de seus elementos, não estou treinando atores/atrizes para apresentar o búfalo ou a borboleta, o que pretendo é que acessando a qualidade de energia desses elementos o/a ator/atriz possa ampliar seu vocabulário corporal e também possa conhecer (ou reconhecer) mais um gatilho para alcançar o estado energético para a cena, saindo do seu corpo cotidiano para o extracotidiano. Uma vez que a lógica do corpo cotidiano é a do princípio do mínimo esforço, onde não se gaste tanta energia para obter o máximo resultado, enquanto o corpo extracotidiano estaria seguindo a lógica inversa, com o máximo do uso de energia para o mínimo de resultado (BARBA, 2012), porém há de se pensar que é na lógica do uso extracotidiano do corpo que se quebrará os automatismos das ações cotidianas às quais estamos condicionados.
Para a quebra desses automatismos do corpo cotidiano, Barba (2012) sugere uma deformação e/ou artificialização do corpo de atores/atrizes através de seis princípios: equilíbrio precário, dança das oposições, incoerência coerente, equivalência, omissão/absorção das ações e sats.
Embora esses princípios tenham sido desenvolvidos por Barba, trarei aqui os conceitos e observações da pesquisadora, atriz e diretora Luciana Saul, que em 2006 apresentou a dissertação “Rituais do Candomblé – uma inspiração para criativo do ator”, na Universidade de São Paulo/USP sobre o processo de criação do espetáculo “Itãs Odu Medéia”, opto por este olhar pela aproximação com minha pesquisa e por ser ela uma das poucas autoras que aproximam as práticas do Candomblé com o trabalho de preparação de atores/atrizes. Para Saul

O equilíbrio precário relaciona-se com o controle de uma posição de instabilidade – isto gera novas tensões e resistência no corpo, produzindo uma nova tonicidade muscular, propiciando a dilatação da presença cênica em um corpo-em-vida. Trata-se de deformar, conscientemente, o equilíbrio, gerando uma permanente instabilidade, mesmo na imobilidade. A imobilidade passa a ser dinâmica, ou seja, há constantes reajustes de tensões e pressões nos apoios dos pés (SAUL, 2006, p. 21)

Pensando nos aspectos que compõe o princípio do equilíbrio precário, posso traçar um paralelo com a Dança de Iansã em relação ao contato dos pés com o chão, onde boa parte do tempo os pés permanecem em meia ponta, subindo o foco de atenção, encontraremos os joelhos flexionados e os quadris em movimentos circulares ou em oito. Tratando-se da parte inferior do corpo isso já exige do/a atuante outra organização corporal, não só força e resistência dos grupos musculares das pernas, mas também do abdômen e atenção especial à coluna que mantém em harmonia e equilíbrio o corpo, o que faz com que se observe a dança das oposições.

A dança das oposições relaciona-se com forças antagônicas percebidas nas oposições das partes do corpo, na oposição de energias diferentes, na oposição na efetuação da ação, na oposição entre equilíbrio e assimetria ou ainda entre repouso e movimento (SAUL, 2006, p. 21)

Oposição e assimetria podem também caracterizar a Dança de Iansã, justo por ter como característica a polirritmia e as constantes mudanças de direção é possível observar que os movimentos da cintura pélvica para baixo obedecem uma direção e da cintura pélvica pra cima outra, os pés marcam um tempo, enquanto ombros, cotovelos e punhos rotacionam os membros superiores noutra velocidade e mesmo que os dois braços executem movimentos que sigam o mesmo princípio, não há o sentido de simetria, assim sendo, já é possível observar aqui a incoerência coerente que, segundo Saul (2006, p. 22) “relaciona-se com a incoerência da ação em relação à lógica cotidiana, tanto em função da economia de energia, como em relação à artificialidade do comportamento cênico”, pois tantos nas atividades cotidianas quanto na Dança de Iansã se executa a ação de espanar – por exemplo – mas no segundo caso, além de ser utilizada mais energia, o movimento tende à estilização.
Esses três princípios aqui indicados já existem por si só na Dança de Iansã, seja como performance artística ou religiosa, e levando em consideração suas características, cabem muito bem ao trabalho de criação de ator/atriz do modo que estou propondo, então, vivenciando os elementos da Dança de Iansã em laboratório, seja na etapa de en/incorporação ou de Condução, é possível chegar aos outros três princípios , sendo assim, para o trabalho do/a ator/atriz a experiência desses elementos faz com que se busque o princípio da equivalência que, como aponta Saul (2006, p.22) “relaciona-se com o deslocamento de uma tensão, ou seja, se na vida cotidiana uma determinada ação implica num jogo de tensões específicas, o ator deve encontrar em seu próprio corpo um outro arranjo de forças que recrie, no palco uma ação semelhante”.
Durante os laboratórios busquei experimentar em mim e com os/as participantes das Conduções os extremos do uso do espaço e da energia mobilizada com/para esse gestual extracotidiano e assim chegamos ao princípio da omissão

O princípio da omissão relaciona-se à absorção da ação. Absorver uma ação consiste em restringir o espaço da ação, ou seja, conter a ação, como se esta retornasse ao estado de impulso. A ação pode ser absorvida das extremidades do corpo até o tronco e, depois ao nível do impulso, numa imobilidade dinâmica, chegando a um estado de omissão total, externa. Porém a intensidade da tensão empenhada na ação deve ser mantida ou intensificada em proporção inversa a tal retenção da amplitude da ação (SAUL, 2006, p. 22-23)

Creio que neste momento o grande desafio é que o/a ator/atriz não se abandone, considero também que a consciência alcançada por meio da omissão completa o princípio da equivalência e culmina com o acesso e reconhecimento do sats que

(...) relaciona-se a uma mudança de tonicidade corporal, impulsos, mudanças de direção, diferença de potencial. Refere-se a um momento de transição, antes da efetuação de uma ação, quando o corpo já está decidido a realizar tal ação, ou seja, a ação está em estado potencial a ser realizada. O sats pode se relacionar, também, à imobilidade dinâmica, ou seja, à articulação de micromovimentos, numa contenção máxima da ação, que dilatam a presença, num corpo que está decidido (SAUL, 2006, p. 23)

Quero salientar que não estou buscando aqui o treinamento físico para atores/atrizes na pretensão de torna-los resistentes como atletas ou dançarinos de Dança Afro ou de Orixá, a proposição é buscar outros caminhos que levem o/a atuante a um estado de consciência sobre o seu próprio corpo utilizando elementos característicos da corporeidade desta Iyabá. Como consequência dessa escolha, uma série de aspectos da preparação do/a ator/atriz para a cena passarão a ser desenvolvidos e observados ao longo da condução dos exercícios.
A ruptura com a forma/estado do corpo cotidiano, a meu ver, se dá quando conseguimos alcançar certos estados de presença, onde observo, por exemplo, um corpo que se dilata consideravelmente durante às conduções. Claro que não estou desvencilhando o corpo da mente, considero que ambos SÃO o indivíduo, sendo assim, quando consigo que este corpo rompa com suas amarras cotidianas para experimentar gestos e movimentos que não estão presentes nas suas práticas rotineiras, a mente também se permite novas possibilidades de criação e de significados, dando ao atuante um território livre de conceitos pré-estabelecidos e muito fértil para futuras composições.
         Para organizar as estruturas das conduções futuras tomo como ponto de partida aquilo que percebo que pode levar meu corpo-sujeito a um estado de presença cênica que me possibilite criar. Das tantas definições de tantos pensadores de/em teatro para esse tipo de estado/consciência corporal, abro o diálogo com Barba (2012), onde segundo ele

O nível que se ocupa de como tornar cenicamente viva a energia do ator, ou seja, de fazer com que ele se torne uma presença que atrai imediatamente a atenção do espectador, é o nível pré-expressivo (...) é um nível operacional: não é um nível que pode ser separado da expressão, mas uma categoria pragmática, uma práxis que, no decorrer do processo de trabalho, visa fortalecer o bios cênico do ator (BARBA, 2012, p. 228)

Sendo assim, busco em mim o que pode vir a fortalecer meu bios cênico através do que há codificado nos/dos elementos da Dança de Iansã, já que, ainda sobre o raciocínio de Barba

A antropologia teatral postula que o nível pré-expressivo esteja na raiz de várias técnicas atorais e que, independente da cultura tradicional, exista uma “fisiologia” transcultural. De fato a pré-expressividade utiliza alguns princípios para que o ator-dançarino conquiste presença e vida. O resultado desses princípios surge com mais evidência nos gêneros codificados nos quais a técnica que põe em forma o corpo também é codificada, independente do resultado significativo (BARBA, 2012, p. 228)

            Claro que a codificação na minha investigação não tem, nem pretende ter, o mesmo peso da tradição do teatro balinês, por exemplo, nem também tanta disciplina e “rigidez”, digo isso por dois motivos bem simples. Primeiro porque a Dança de Iansã é codificada, mas não pertence à uma tradição teatral mesmo que possua elementos dramáticos na sua execução, já que é executada em sua matriz por dançarinos/as em estado de transe e segundo porque proponho que a base do trabalho prático seja a improvisação a partir dos elementos da Dança de Iansã e não a repetição de uma coreografia ou dos códigos tais quais eles me foram repassados e que eu irei compartilhar e conduzir – códigos esses que, por mais que eu não os demonstre, eles aparecem durante o experimento e podem ser lidos de maneira bastante aproximada ao que de fato representam na dança ritual.

Daniela Beny e Eugenio Barba  -
V A Arte Secreta do Ator 2012 -
Odin Teatret Nordisk Teaterlaboratorium – Brasil. 


         Creio que tendo os elementos de Iansã e não a dança em si como ponto de partida, atores/atrizes ficam livres para a execução e experimentação desses elementos de outros modos, cada atuante poderá acessar seu próprio repertório corporal e, inclusive, despertar a gestualidade ancestral que muitas vezes nem temos consciência que possuímos. Essa gestualidade ancestral, pelo que percebo em mim, é acessada pelo estímulo musical – o que, a meu ver, fortalece a ideia do “cantar-dançar-batucar” como sendo uma única ação – e pela ativação dos quadris, coluna e movimentos circulares de ombros, cotovelos e punhos; porém, quando aponto os elementos e conduzo uma prática de improvisação, cada atuante irá experimentar e reconhecer seus próprios acessos à gestualidade ancestral, já que cada corpo-sujeito possui suas subjetividades e suas memórias.
         Além do corpo-sujeito como local da subjetividade e da memória, nele também se dá o lugar da percepção e os movimentos executados como meio de apreensão, pois segundo Nóbrega (2008)
Os movimentos acompanham nosso acordo perceptivo com o mundo. Situamo-nos nas coisas dispostas a habitá-los com todo nosso ser. As sensações aparecem associadas a movimentos e cada objeto convida à realização de um gesto, não havendo, pois, representação, mas criação, novas possibilidades de interpretação das diferentes situações existenciais [...] Desaprendemos a conviver com a realidade corpórea, com a existência dos sentidos, pois privilegiamos uma razão sem corpo. No entanto, a percepção, compreendida como acontecimento da existência, pode resgatar este saber corpóreo (NÓBREGA, 2008, p. 142).

            Compreendo que nesse sentido a corporeidade vai para além do entendimento do corpo em estado de representação, porém a consciência de suas potencialidades e usos faz com que o/a artista da cena possa acessar diferentes estados de presença por já ter apreendido corporalmente acessos e mecanismos de ativação desses estados.
Não consigo ainda definir exatamente – nem sei se de fato preciso definir de modo tão delimitado – se acesso esse estado de presença me aproximando da minha gestualidade ancestral ou se essa ancestralidade é quem me leva ao estado de presença; creio que sejam duas forças que se retroalimentam e que podem potencializar o trabalho do/a atuante.
         Ao tentar recuperar a memória das aulas, do transe e do laboratório para estruturar uma metodologia de trabalho, busco chegar a um aspecto crucial do corpo do médium em transe que é a dilatação, tomando como base o conceito de Barba (2012) que a define da seguinte forma no trabalho do/a artista da cena
O corpo dilatado é um corpo quente, mas não no sentido sentimental ou emotivo. Sentimento e emoção sempre são uma consequência, tanto para expectador quanto para o ator. Antes de tudo é um corpo vermelho de tanto calor, no sentido científico do termo: as partículas que compõem o comportamento cotidiano foram excitadas e produzem mais energia, sofreram um aumento de movimento, elas se afastam, se atraem, se opõem com mais força e mais velocidade num espaço mais amplo (BARBA, 2012, p. 52)

Com base nesse apontamento de Barba, chamo Zenicola (2014) para o diálogo ao afirmar que
Acreditamos (...) que o corpo do fiel, ao dançar com seu orixá, torna-se cênico, não pelo simples fato de estar inserido, em situação de destaque, no espetáculo, na espetacularidade do ritual. O corpo torna-se cênico, principalmente pela amplificação de sua gestualidade; por conseguinte, o aspecto espetacular que esse corpo assumiu (ZENICOLA, 2014, p. 95)

         E ainda acrescenta,
Ao entrar em estado de transe, a gestualidade cotidiana dilata-se e preenche o espaço físico com seu orixá, o gestual simplificado do indivíduo transforma-se na gestualidade de seu orixá depois do transe. Nesse momento presenciamos a corporeidade espetacular; uma espécie de dança superior, na qual os fiéis seriam, antes de tudo, atores. Essa espetacularidade é vivenciada ainda, através das diferentes combinações de movimentos e atitudes, e impulsionada por uma energia interior e poderosa (ZENICOLA, 2014, p. 95)

Como na Condução não há o transe, não há um estado de inconsciência no qual o corpo-sujeito seja tomado e possuído pelo Orixá, mas, ao experimentar os elementos da Dança de Iansã nesse caso específico, poderá acessar a sua própria gestualidade ancestral – independente de qual seja seu Orixá e trazendo à tona seu arquétipo interior. Se pretende chegar a essa dita espetacularidade através do impulso e das proposições durante o trabalho, já que não havendo transe também não há uma consciência superior dando os comandos para os/as atuantes.
O estreitamento dos laços que aproximam o transe da preparação de atores/atrizes, essa dilatação leva os corpos-sujeitos desses dois contextos a outro estado, como aponta Zenicola (2014)
No transe observamos uma mudança de atitude radical, em que o iniciado transcende a dimensão mimética para revivenciar os acontecimentos (Bastide, 1973, p. 280)”. Essa visível alteração da movimentação corpórea é comparável ao que Barba chama de “corpo cênico”. O corpo cênico para Eugenio Barba, é a existência de princípios que permitem gerar a presença teatral; o corpo-em-vida do ator, capaz de fazer aquilo que é invisível visível: a intenção (ZENICOLA, 2014, p. 95)

            Ao longo dessa pesquisa busquei experimentar alguns roteiros para Condução, sempre considerando três fases: I – PREPARAÇÃO, II – AÇÃO e III – FINALIZAÇÃO, onde organizo em sete etapas, sendo elas:
FASE I – PREPARAÇÃO
1ª – Alongamentos individuais
2ª – Alongamento coletivo
FASE II – AÇÃO
3ª – Aquecimento
FASE III – FINALIZAÇÃO
4ª – Criação
5ª – Desaquecimento
6ª – Escrita nos diários
7ª – Roda de conversa
            Vale salientar que, ao estruturar esse roteiro de Condução, retorno às práticas das sete fases da performance indicadas por Schechner (2013b) – treinamento, oficina, ensaios, aquecimentos ou preparações imediatamente antes da performance, a performance propriamente dita, esfriamento e balanço – respeitando as devidas proporções por ainda não se tratar de uma apresentação pública, adequando essas sete fases aos limites de um trabalho em laboratório. Essa estrutura foi pensada de modo que o trabalho se desenvolva numa crescente (Fase I), chegue ao seu ápice (Fase II) e decresça até seu fechamento (Fase III).
Preferencialmente o primeiro elemento a ser trabalhado será o VENTO por ser o que mais se associa à Iansã quando se pensa nessa Iyabá, neste caso o alongamento e o aquecimento terão como foco exercícios de fortalecimento das panturrilhas – uma vez que nessa qualidade de energia o corpo tende a ficar apoiado na ponta dos pés – para os braços trabalhando, sobretudo com as articulações para execução de movimentos circulares e costas para que os membros superiores e inferiores busquem a sensação de flutuação com maior conforto e segurança.
O segundo elemento a ser trabalhado será o BÚFALO pelas características da qualidade de energia e pelas partes do corpo que mobilizadas – normalmente a parte inferior e deformação da coluna – de modo diferente ao que ocorre no VENTO. O terceiro elemento será então a BORBOLETA por mobilizar uma qualidade de energia bem distinta do BÚFALO.
No caso de trabalhar com os três elementos no mesmo dia, manterei essa sequência na tentativa de equalizar o uso da energia do/a artista da cena fazendo analogia à relação que pode se estabelecer entre fogo e água – dois elementos muito presentes na mitologia de Iansã – do seguinte modo: ESQUENTAR (Vento) à FERVER (Búfalo) à ARREFECER (Borboleta).
Essa estrutura foi base para o trabalho de Condução realizado entre os meses de Abril e Maio de 2016, junto ao C.C. onde, de acordo com as necessidades apontadas pela encenadora, a Condução foi servindo como base para o processo de criação do elenco e potencializante de algumas qualidades de energia que precisavam ser acessadas pelos atores/atrizes para melhor desenvolvimento da montagem.
Num primeiro momento, o foco foi a ampliação de repertório corporal, levantando partituras que poderiam ser usadas em cena, essas partituras, com base nas ações relacionadas aos elementos de Iansã – como foram apontadas nos quadros anteriores – já traziam em si o que considero como gestualidade ancestral, pois, junto com o estímulo sonoro, parte do elenco, mesmo que sem ter vivenciado anteriormente danças de Orixás, traziam no experimento desenhos corporais que remetiam ao que pude observar na saída-de-orixá, embora que ressignificado, já que a relação de alguns movimentos com os itans de Iansã foram apresentados após a prática finalizada.
Já havendo essa ampliação do repertório corporal, consciência das partituras que seriam levadas para cena e como acessar a gestualidade ancestral, cada pessoa do elenco passou a desenvolver as atividades de laboratório de modo mais específico, por exemplo, uma das atrizes precisava suavizar seus movimentos, então, buscou-se que ela executasse sua partitura acessando a qualidade de energia da Borboleta/Anima, já outra precisava trazer um pouco mais de peso e de tensão muscular em determinadas cenas, fazendo com que, a execução de sua partitura fosse estruturada na qualidade de energia do Búfalo/Animus. Embora compreenda durante esta etapa de minha investigação, que cada ator/atriz possua mais “facilidade” em corporeificar determinadas características de qualidades de energia específicas, essa metodologia de trabalho funciona como um caminho para levar o/a intérprete-criador/a ao estado energético com o que menos se identifica e como um catalisador para acessar de mais rápido o estado onde se sente mais confortável.

Considerações finais
         Embora se trate de uma pesquisa em andamento e compreendendo que investigações que têm como objetivo explorar possibilidades metodológicas, o que pode ser observado é que as práticas corporais afro-ameríndias têm uma enorme potência no que diz respeito ao processo de criação. Pensando nas culturas orientais e nas suas práticas teatrais codificadas, podemos traçar um paralelo com as inúmeras práticas corporais oriundas do Candomblé, indo para além do Afoxé, como os Maracatus, os blocos carnavalesco e demais brinquedos populares que ultrapassam a barreira da religiosidade e chegam ao público em festas religiosas do sincretismo popular.
Há de se manter o respeito entre os limites da performance dentro do espaço religioso e como se dá o trânsito para a prática artística, levando em consideração os elementos sagrados como base e inspiração para o desenvolvimento de atividades que não estejam vinculadas necessariamente à esta ou aquela religião, mas que busque nas práticas corporais e na transmissão do conhecimento incorporado elementos que possam vir a potencializar as práticas artísticas.

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[1] “Afoxé é um cortejo de rua que tradicionalmente sai no carnaval (...) É importante observar nessa manifestação os aspectos místico, mágico e por conseguinte religioso. Apesar dos afoxés apresentarem-se aos olhos dos menos entendidos como um simples bloco carnavalesco, fundamentam-se os praticantes em preceitos religiosos ligados aos cultos dos orixás, motivo primeiro da existência e realização dos cortejos. Por isso, afoxé também é conhecido e chamado por Candomblé de Rua (...) Apesar de todas as modificações e desfigurações, esses grupos procuram manter valores e características de ‘africanidade’ como: cânticos em dialetos africanos (...) utilização de cores e símbolos que possuem significados específicos dentro dos preceitos religiosos dos terreiros de candomblé (LODY, 1976, p. 3)”
[2] Orixá é compreendido por Pierre Verger como “(...) uma força pura, asè[2] imaterial que só se torna perceptível aos seres humanos incorporando-se em um deles (VERGER, 2002, p. 19)”, embora também seja possível considera-los como a personificação das forças da natureza, tanto elementos etéreos quanto animais, minerais e vegetais, por se tratar de da humanização do aspecto divino, as representações dos Orixás trará “pessoas” com sentimentos, pensamentos e atitudes, tais quais as dos humanos.
[3] Opto por esta grafia do termo por encontrar em minhas pesquisas tanto a palavra ENCORPORAÇÃO quanto INCORPORAÇÃO, não havendo distinção de significado entre as duas, uma vez que os prefixos latinos EN e IN significam “Movimento para dentro, passagem de um estado ou forma”, sendo os dois significados aplicáveis a esta investigação.
[4](...) o Xirê é a designação geral usada para nominar a sequência de danças rituais dos candomblés, que começa com Exu e é finalizada com Oxalá. Segue-se uma ordem pré-estabelecida, como se fosse um roteiro teatral, reunindo orixás afins: das águas, da terra, da caça, da criação do mundo, numa ordem funcional e que atende aos significados prescritos pelo modelo yorubá (LODY, SABINO, 2011, p. 103)”
[5] Termo em iorubá para o conjunto de todos os mitos, canções e histórias componentes da cultura iorubá, podendo vir grafado itã.
[6] Termo da Umbanda para designar o médium que presta assistência aos atendidos pelas entidades, assim como ajuda os médium em transe durante as atividades mediúnicas.