domingo, 24 de abril de 2016

IMPROVISAÇÃO TEATRAL NO BRASIL

Nesta semana trazemos até vocês mais um artigo sobre Improvisação Teatral no Brasil!
Artigo publicado em 2009, nos Cadernos Virtuais de Artes Cênicas, site:
http://www.seer.unirio.br/index.php/pesqcenicas/article/view/750/686
Aproveitem!

IMPROVISAÇÃO TEATRAL – CONCEITOS E EXPERIÊNCIAS NO BRASIL
Autor: Sandro de Cássio Dutra
Orientadora: Maria de Lourdes Rabetti
Resumo:
O improviso é um elemento cuja investigação pode contribuir para o exame da constituição de um espetáculo teatral. O que se pode perceber, à primeira vista, é a existência de diferentes posicionamentos com relação à importância de seu estudo. Assim, para alguns estudiosos do teatro, ele é elemento inerente a qualquer espetáculo teatral e merecedor, portanto, de escrutínio. Por outro lado, o tema da improvisação não aparece em muitos estudos teóricos importantes sobre o teatro. Entre aqueles que sobre ele se debruçam, são encontradas diferentes concepções e enfoques nem sempre convergentes. Apresentamos, neste trabalho, algumas considerações e questões relacionadas a esse tema, mote de nosso projeto de pesquisa no doutorado, ainda em fase inicial.

Commedia dell'Arte - Imagem da internet


Palavras-chave: improvisação, commedia dell’arte, processo criativo.
Qual a importância da improvisação para o teatro? Tomada assim, de um modo geral, a resposta a esta questão requer, antes de tudo, o exame do que consiste “improviso”. E, de início, já nos deparamos com uma problemática: o conflito entre a significação usual deste termo, encontrada, por exemplo, em um dicionário da língua portuguesa e aquela fornecida por um dicionário específico de teatro. No Aurélio (1988, p. 353), encontramos: “s.m. 2. Produto intelectual inspirado na própria ocasião e feito de repente, sem preparo”. Patrice Pavis afirma em Dicionário de teatro, que “improviso” é

[...] uma peça improvisada (a l’improvviso), pelo menos que se dá como tal, isto é, que simula a improvisação a propósito de uma criação teatral, como o músico improvisa sobre determinado tema. Os atores agem como se tivessem que inventar uma história e representar personagens, como se realmente estivessem improvisando (PAVIS, 1999: 206).

Patrice Pavis - imagem da internet

Observa-se que o improviso, no âmbito teatral, segundo Pavis, corresponde a um falso improviso, a uma simulação de cenas em que atores parecem criar algo novo em situações em que já têm réplica e tréplica prontas. Para o público, pode parecer que o diálogo cênico fora improvisado. Pavis se refere a L’Impromptu de Versailles (O improviso de Versalhes), de Molière, como um dos primeiros e mais célebres improvisos. Molière, como o próprio Pavis (1999: 62) indica, sofreu uma profunda influência da Commedia dell’arte. Essa referência ao improviso importa na averiguação do que consiste o ato de improvisar já que, conforme Pavis (1999: 61), a Commedia dell’arte era antigamente conhecida como commedia all improviso e se caracterizava por seguir apenas um roteiro, um esqueleto de história a ser recheado com o improviso dos atores, por meio das falas, malabarismos, truques, gestuais, etc. O improviso realizado pelos atores da commedia dell’arte era, muitas vezes, ensaiado, simulado, resultado de repetidas e mais repetidas situações cênicas, pois, como sabemos, os atores da dell’arte desempenhavam o mesmo personagem durante toda a sua vida. A definição de improviso, fornecida por Pavis, remete-nos, pois, às origens do referente desse conceito.
Por outro lado, retomando a definição de improviso do dicionário Aurélio, podemos afirmar que, no decorrer de um espetáculo, há certa margem para a improvisação feita de repente, sem preparo, brotada da experiência acumulada do artista, de um instante de inspiração e que é, em última instância, fruto da espontaneidade do ator.

Sandra Chacra - imagem do jornal
Folha da Região - on line

Essas duas possibilidades de se conceber o improviso torna discutível uma resposta à questão colocada acima, bem como a outras relativas ao tema da improvisação, tais como: o que marca o improviso no teatro? O improviso é trabalhado e aceito igualmente por todos os gêneros teatrais? Como se dá o improviso nas peças dramáticas? E nas comédias? O improviso tem uma relação mais estreita com os espetáculos interativos? Sandra Chacra, em seu livro Natureza e sentido da improvisação, dá uma dimensão ampla à discussão acerca da importância do improviso no teatro, ao afirmar:

A natureza momentânea do teatro já prefigura, por si só, um caráter improvisacional na obra acabada. Por mais preparado, ensaiado e pronto, o teatro no seu grau máximo de cristalização – embora passível de reprodução – ainda assim ele não é capaz de se repetir exata e identicamente do mesmo jeito, por causa do seu fenômeno, cujo modo de ser é a comunicação momentânea, “quente”, ao vivo, e cuja efemeridade leva a um efeito estético também transitório (CHACRA, 2005: 15).

Desse modo, segundo a autora, o improviso está presente em qualquer apresentação cênica, com maior ou menor grau de intensidade, dependendo da proposta inserida na montagem teatral. E mais, o improviso é reconhecido e utilizado por muitos estudiosos e teatrólogos como ferramenta oportuna para a preparação do ator, construção das personagens, elaboração de textos, criação de cenas. Há ainda aqueles que concebem o improviso nos momentos emergenciais, quando, durante uma encenação, surge um imprevisto.
Se o improviso possui várias finalidades e se pode ser considerado um elemento inerente ao espetáculo teatral, por que é estudado superficialmente? Lembramos que, num rápido levantamento bibliográfico, identificamos, na literatura nacional, apenas a obra de Sandra Chacra, citada acima, como um trabalho dedicado exclusivamente ao improviso. O motivo dessa carência pode ser constatado na própria história do teatro que, desde a antiguidade, situa o improviso como algo relacionado à diversão, ao popular e à informalidade. No livro de Chacra verificamos a atribuição de valores, quando a autora relata que “Aristófanes tira sua matéria-prima das diversões populares informes (improvisação) e a eleva à categoria de arte” (CHACRA, 2005: 26). Na Idade Média, o improviso continua presente em espetáculos derivados dos mimos e da farsa mimada, também marginalizados, até que, no período dos séculos XVI e XVII, o improviso alcançará sua maior expressão com o aparecimento da Commedia dell’Arte. Este tipo de espetáculo teatral foi registrado pela história do teatro mais por construir personagens específicos e máscaras e pela improvisação, compreendida nos termos colocados por Patrice Pavis.
Na contemporaneidade, estudos como os de Viola Spolin (2005) destacam o improviso por estimular o conhecimento intuitivo. Assim ressalta:

O intuitivo só pode responder no imediato – no aqui e agora. Ele gera suas dádivas no momento de espontaneidade, no momento quando estamos livres para atuar e inter-relacionar, envolvendo-nos com o mundo à nossa volta que está em constante transformação (SPOLIN, 2005: 4).
Antonio Januzelli também chama a atenção para a espontaneidade como aspecto inerente à improvisação:

Durante um curso orientado de improvisação dramática, o temor e a timidez vão sendo superados pela crescente concentração e absorção na ação deflagrada pelo estímulo inicial e, na medida em que as respostas devam necessariamente acontecer durante o avanço da situação, assegura-se a espontaneidade, possibilitando aos participantes empregar sentimentos que em outros espaços acabariam frustrados em sua expressão (JANUZELLI, 2006: 64).

O termo espontaneidade aparece também entre os artistas de teatro de rua. Para a maioria destes, o improviso é intuitivo e a espontaneidade está vinculada à experiência pessoal. Exemplo desta concepção é manifestada na fala do ator Carlos Biaggioli, do Grupo manifesta de Arte Cômica, em entrevista por nós realizada durante a I Mostra Lino Rojas de Teatro de Rua, em setembro de 2006, na praça do Patriarca – São Paulo, capital. Aí o ator afirmou:

Carlos Biaggioli -foto do blog do ator

[...] o público da rua quer se comunicar. Se você criou uma comunicação com o “cara” da rua, se você estabeleceu entre o personagem e ele essa onda, o seu espetáculo é criado ali na hora, é escrito a quatro mãos, no momento. E isso demanda o quê? Demanda uma bagagem pessoal de cada artista no poder da improvisação. Porque a improvisação, segundo o que o Dario Fo fala, e eu acredito, a improvisação está intrinsecamente ligada com a bagagem pessoal do artista (BIAGGIOLI, 2006).

A referência ao nome de Dario Fo nos remete ao seu método de improvisação que se resume em três pontos: 1) revelar o argumento que se quer desenvolver; 2) identificar o espaço cênico onde irá se desenvolver o fato dramático ou cômico; 3) deixar evidente a situação e os motivos. Em sua obra Manual Mínimo do Ator, o teatrólogo descreve como conduz um exercício de improvisação. Cabe apontar que, no exercício com atores voluntários, Dario Fo participa ativa e diretamente, interrogando, sugerindo, explicando e ordenando a retomada das cenas. A proposta do autor italiano aponta para uma prática freqüente de criação espontânea. No entanto, observamos um aspecto singular: os exercícios desenvolvidos pelos artistas se deram com um guia, ou melhor, com uma direção que orientava, instruía e indicava os passos no desbravamento da criação cênica. Assim, se para alguns, o improviso encontra terreno fértil na espontaneidade, Dario Fo parece sugerir que há a necessidade do acompanhamento de um diretor ou de uma direção no momento da preparação improvisacional dos atores.


Dario Fo - foto do periódico succede oggi

“Experiência” e “espontaneidade” são termos também empregados por J. Guinsburb. Ao relatar a opinião de Stanislavski sobre a improvisação, ele afirma que o teatrólogo russo valorizou o improviso no processo de elaboração de um espetáculo teatral e defendeu que

[...] desligado do texto e das falas previstas na peça, o ator poderá voar na mesma direção com forças próprias, emoções e objetivos nascidos de suas experiências e projeções pessoais, infundindo ao seu desempenho uma qualidade interpretativa mais convincente, junto da técnica improvisacional (GUINSBURG, 1992: 219-220).

Outro pensador que contribui para a controvérsia entre espontaneidade e técnica colaborativa é R. Keith Sawyer, em seu artigo, “Improvisation and the creative process: Dewey, Collingwood, and the aesthetics of spontaneity”. Apresentando uma distinção entre produto criativo e processo criativo, este autor ressalta que “[...] na performance improvisacional, o processo criativo é o produto[...]” (SAWYER, 2000: 149), que é no processo criativo que se encontra a improvisação. Esta teria como característica a colaboração: “...na improvisação teatral, a essência do processo criativo é social e interativo, e não pode ser reduzido na inspiração ou processo mental de um único ator” (SAWYER, 2000: 153).


Keith Sawayer - foto do informativo dailytarheel

Como vimos, a espontaneidade é um quesito aceito por vários pensadores e teatrólogos quando se trata da improvisação. Não podemos nos esquecer, no entanto, conforme indica Gilberto Icle, da contextualização da concepção de espontaneidade, utilizando as palavras de Taviani:

[...] a idéia de que a improvisação seja resultado da espontaneidade é moderna [...] Até o século XVIII, a improvisação era um exercício que se praticava nas escolas, academias, cortes e também nas praças das cidades [...] Era uma maneira de demonstrar o domínio de um amplo patrimônio literário: para poder improvisar alguns versos, era necessário saber muitos poemas de memória (TAVIANI, apud ICLE, 2002: 83).

A ressalva feita por Taviani proporciona uma análise comparativa entre as duas concepções de “improviso” apresentadas acima, que são distintas. Grosso modo, podemos dizer que há, entre elas, uma certa distância, já que, originalmente, improvisação não estava apoiada na idéia de espontaneidade.
Outro aspecto merecedor de atenção na pesquisa é a existência de diferentes posicionamentos com relação à importância da improvisação para o teatro. Se para alguns teóricos, esta é elemento inerente a qualquer espetáculo teatral e digna, portanto, de investigações; para outros, o tema tampouco se mostra presente em suas reflexões. Apresentamos acima exemplos do primeiro grupo. Exemplos de importantes obras, nas quais o tema do improviso aparentemente não se mostra presente, são encontrados nos estudos teatrais que enfocam sobremaneira a questão dramatúrgica, como as obras Ler o teatro contemporâneo, de Jean-Pierre Ryngaert, de 1998 e Teoria do drama moderno (1880-1950), de Peter Szondi, de 2001. No caso brasileiro, Sábato Magaldi, com O texto no teatro, de 2008 e Teatro sempre, de 2006 e mais, Décio de Almeida Prado, com História concisa do teatro brasileiro, de 2003.
De modo mais detalhado, apresentamos a seguir algumas considerações sobre duas obras que tratam das teorias teatrais. Tais estudos contemporâneos são referências para qualquer pessoa ligada às artes cênicas. A primeira delas é de Marvin Carlson, Teorias do teatro – estudo histórico-crítico dos gregos à atualidade, publicada pela editora UNESP, em 1997. Nesta obra, o autor faz um apanhado das teorias teatrais nas diversas fases histórico-culturais ocidentais: “1. Aristóteles e os gregos; 2. Teoria romana e do classicismo tardio; 3. O período medieval; 4. O renascimento italiano; 5. O renascimento espanhol; 6. O renascimento Francês...” (CARLSON, 1997: 7). É possível verificar que não há nenhum registro sobre a commedia dell’arte. No prefácio, Carlson admite que não há consenso sobre o que deve integrar o corpo de uma teoria de teatro. Diz o autor:

Ao considerar a teoria da representação, procurei limitar minhas observações àquelas áreas em que tal teoria se imbrica significativamente com as questões do teatro. Considerar a representação em pormenor – ainda que nos campos estreitamente associados da dança e da ópera, para não falar em espetáculos improvisados, circo, rituais, festivais e até nos elementos de representação da vida cotidiana – avolumaria este livro tanto quanto a tentativa de incluir material social e cultural geralmente relacionado (CARLSON, 1997: 10).

Quanto a Jacques Copeau, o livro de Marvin Carlson dedica uma página e meia para o diretor teatral e, cabe lembrar, que a palavra improvisação sequer é mencionada. Carlson assim resume as idéias de Copeau:

O meio que Copeau sugere afasta-o tanto dos teatros comerciais como dos de vanguarda de sua época. Ele segue os simbolistas ao colocar o poeta e o texto num papel fundamental e sublinha que a obra do diretor sempre deve permanecer subserviente àqueles. Similarmente, ele preconiza uma simplicidade extrema no cenário físico, o famoso tréteau nu (palco nu), que permitiria ao ator e ao autor apresentar o texto sem intrusão “teatral” (CARLSON, 1997: 329-330).

Assim, a obra de Carlson poder-nos-ia induzir a crer que não há improvisação no teatro ou que o improviso foi um elemento utilizado no passado e lá mesmo tenha perdido seu vigor ou ainda que, se existe, é um elemento “supérfluo”.
A segunda obra que selecionamos é Introdução às grandes teorias do teatro, de JeanJacques Roubine. Na Introdução, Roubine declara:

Mantivemos as doutrinas que fizeram escola, que mobilizaram, mesmo através da polêmica, uma ou várias gerações de autores e de práticos. Foram excluídas, além disso, é claro, aquelas fugazes teorias implícitas, todas as que diziam respeito exclusivamente a seus autores. [...]
O campo explorado é prioritariamente o francês. Mas essa delimitação de tipo ideológico-geográfico perde quase toda a pertinência no século XX: o teatro viaja, circula. Torna-se menos europeu, isso quando não se abre às influências do Extremo Oriente. As grandes teorias do teatro de nosso século são francesas (Copeau, Artaud...), mas também russas (Stanislavski, Meyerhold...), inglesas (Craig...), alemãs (Brecht...), polonesas (Grotowski, Kantor...) etc (ROUBINE, 2003: 11).

Roubine opta por analisar o drama. O primeiro capítulo do livro é uma revisão de Aristóteles e o segundo denomina-se “Da tragédia ao drama”. Daí para frente o estudo concentra-se no drama. A omissão da commedia dell’arte, neste sentido, é compreensível. Entretanto, acerca de Jacques Copeau, que recebe destaque do próprio Roubine, quando este, na Introdução do seu livro, aponta para aquele como um dos grandes teóricos franceses, não encontramos muita informação, já que Copeau só aparece superficialmente para dar respaldo à idéia comum, dentre vários pensadores teatrais, em extinguir o cenário. Roubine destaca:

Por exemplo, Copeau retoma por sua conta a visão mallarmaica transmitida por Gide, com quem entretém vínculos estreitos. Paradoxo de um homem de teatro que acaba de recusar a própria materialidade da representação!
[...]
Assim concebida, a direção deve ser um confronto direto e depurado entre as três instâncias cardeais da representação: o texto, o diretor e os atores. O palco é sempre o espaço disposto para esse confronto... (ROUBINE, 2003: 143).

Jacques Copeau - foto do site
officiel du tourisme en Côte-d'Or

Também no livro de Roubine quase não se encontra a palavra improvisação ou improviso, pelo menos, com maior certeza, quando o autor está falando sobre Copeau. A exceção se dá quando o autor comenta de Vitez, o qual se inspirou em Meyerhold: “Vitez prefere o esboço, o exercício de oficina, a improvisação e a experimentação” (ROUBINE, 2003: 186).
Podemos suspeitar, partindo das duas obras investigadas, que o improviso é considerado um elemento informal, que sua utilização não é suficiente para se compor um espetáculo teatral ou que é considerado um elemento acessório. Numa análise mais severa, poderíamos entender que, nas teorias teatrais de Carlson e Roubine, o diretor que se utiliza da improvisação realiza um teatro menor e que o improviso, como ferramenta de formação do ator ou construção de espetáculo, não é um recurso satisfatório nas artes cênicas.
Diante desse cenário geral, a questão que guia essa pesquisa é: como conceber o improviso na historiografia e na crítica teatral brasileira? Haveria uma supervalorização da espontaneidade e da intuição em detrimento da técnica? Ou seria esta possibilitadora de um maior desenvolvimento daquelas? Como é entendido o mecanismo e as estratégias utilizadas para se atingir o momento ideal, que faz aflorar o espontâneo do artista? São os mesmos recursos utilizados por pesquisadores como Dario Fo, Stanislavski ou Grotowski? Poderíamos detectar uma terceira caracterização que incorpore ambas as definições dos dicionários apresentadas acima e que poderia ser compreendida como fruto do desenvolvimento da concepção teatral na história?
Estas são questões que motivam e orientam a presente pesquisa no sentido de buscar uma concepção original do termo “improviso” na historiografia teatral, investigando sua origem e desenvolvimento. Da mesma forma, é pertinente examinar a crítica e historiografia clássica nacionais, buscando uma caracterização do estatuto que o mesmo nelas usufrui. Numa análise mais avançada, será possível reunir dados referentes à caracterização do improviso, de modo a estabelecer um quadro geral, a partir do qual poderemos falar de improvisação no cenário brasileiro; do modo como é concebido, praticado e avaliado.
O improviso, como um componente cênico entre tantos outros, é também merecedor de uma investigação, como já fez jus, de certo modo, a iluminação, a cenografia, o figurino, a interpretação, a expressão corporal, a voz, etc. De modo geral, percebemos a escassez de estudos acerca do improviso na literatura teatral brasileira. Conforme indicado acima, o livro de Sandra Chacra, Natureza e sentido da improvisação teatral, aparece como uma exceção na medida em que é um trabalho dedicado exclusivamente ao tema.
No mais, deparamo-nos com o tema em artigos de revistas, em abordagens rápidas ou circunstanciais. O próprio livro de Sandra Chacra atesta a necessidade de uma maior investigação e discussão acerca do nosso tema, na medida que a autora declara: “na verdade, a improvisação tem sido incompreendida, às vezes, até mesmo por aqueles que trabalham no campo artístico”. Tal afirmação coincide com nossa proposta de pensar sobre o improviso nos trabalhos dos teóricos brasileiros, bem como nos trabalhos práticos de alguns diretores nacionais.
Se, por um lado, não dispomos de muitas reflexões acerca da improvisação, podemos, de outro lado, observar a crescente importância atribuída ao tema, seja por sua presença nas grades curriculares dos cursos de artes cênicas, seja pela aproximação entre improvisação e teatro escolar; seja pela manifestação dos grupos de teatro acerca da utilização de técnicas improvisacionais para a formação do ator. Presenciamos a manifestação dessa importância, sem parâmetros claros do que designar e como conceber “improviso”. Ao compartilhar da idéia de Chacra acerca da incompreensão desse termo, pretendemos, em nossa pesquisa, verificar como o improviso é entendido e fundamentado pelos teóricos e alguns fazedores de teatro brasileiros.
Se a necessidade de realizar um levantamento sobre a produção teórica do objeto escolhido para pesquisa colocou-nos, por um lado, diante de uma aparente escassez de estudos com abordagem direta acerca do assunto, por outro lado, indicou vias possíveis e pertinentes para a investigação ora proposta.
O ponto de partida da pesquisa se constituirá no trabalho de ampliarmos a investigação bibliográfica sobre o improviso no teatro. A partir do momento em que as obras forem sendo localizadas, as suas respectivas leituras e análises deverão se dar imediatamente, para que a pesquisa teórica ganhe forma, direção e conteúdo.
Do ponto de vista formal, e atendendo ao objetivo da pesquisa, buscaremos desenvolver a investigação por partes no que concerne à concepção original do que se costuma denominar improviso, suas variantes históricas e sua abordagem na literatura brasileira. Após estabelecermos um quadro geral desses aspectos, propomos apresentar uma reflexão pautada na bibliografia pesquisada e, eventualmente, em entrevistas realizadas entre grupos e diretores teatrais, de modo a apresentar uma caracterização de como o improviso é concebido e praticado no Brasil.

Referências bibliográficas
CARLSON, Marvin. Teorias do teatro. São Paulo. Editora da Unesp, 1997.
CHACRA, Sandra. Natureza e sentido da improvisação teatral. São Paulo: Editora Perspectiva, 2005.
GUINSBURG, Jacob;
SILVA, Armando (Orgs). Diálogos sobre teatro. São Paulo: EDUSP, 1992
FERREIRA, Aurélio. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
JANUZELLI, Antonio. A aprendizagem do ator. São Paulo: Ática, 1986.
MAGALDI, Sábato. Teatro sempre. São Paulo: Perspectiva, 2006.
MAGALDI, Sábato. O texto no teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999.
PRADO, Décio de Almeida. História concisa do teatro brasileiro: 1570-1908. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.
ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às grandes teorias do teatro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
RYNGAERT. Jean-Pierre. Ler o teatro contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
SAWYER, R. Keith. “Improvisation and the creative process: Dewey, Collingwood, and the aesthetics of spontaneity”. In: The journal of aesthetics and art criticism, vol. 58, nº 2, Improvisation in the arts. 2000: 149-161.
SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2003.
STANISLAVSKI, Constantin. A preparação do ator. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1982.

STANISLAVSKI, Constantin. A criação de um papel. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1990.

domingo, 17 de abril de 2016

O FILHO DO PADEIRO E A REVOLUÇÃO

Neste mês em que completamos sete anos de morte de Augusto Boal, publicamos esta homenagem ao grande artista de teatro, que conquistou o mundo e cuja sabedoria encantava a todos que o ouviam.


O filho do padeiro e a revolução


Por Kil Abreu, jornalista, crítico e pesquisador do teatro. É curador do Festival Recife do Teatro nacional e coordena o Núcleo de Estudos do teatro contemporâneo da Escola Livre de Santo André. – em Carta Maior - 04/05/2009, homenagem póstuma a Augusto Boal em http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia/O-filho-do-padeiro-e-a-revolucao%0D%0A/12/15211

Augusto Boal em foto da página do Instituto Augusto Boal

Filho de um padeiro português que chegou ao Rio de Janeiro por se recusar a servir como soldado em uma guerra com a qual não concordava e de uma certa senhora que abandonara o primeiro noivo praticamente no altar para casar, por decisão e gosto, com um “aventureiro”, Augusto Boal aprendeu desde logo que o mundo pode ser mudado, bastando para isso decisão e coragem. Toda a sua invenção no teatro parece se basear nesta fé sobre o efeito da ação do homem no mundo, que não é apenas um lance retórico, como no teatro burguês, e deve ser encontrada nos motivos da vida ordinária.

Teatro de Arena - por Oswaldo Mendes, foto do blog "Por Tudo ou Nada"

Foi assim que ele construiu uma carreira pontuada muitas vezes por lances decisivos, não apenas pessoalmente, mas para a história do teatro brasileiro. Convidado ao então promissor Teatro de Arena, em 1956, empresta ao grupo os conhecimentos aprendidos, de encenação e dramaturgia, em uma recente temporada nos Estados Unidos. Principal ideólogo nos caminhos de uma cena preocupada em com as contradições da sociedade, é Boal quem intui que um teatro novo, com assuntos ainda não levados ao palco, pede também uma cena nova, com dramaturgia própria e um repertório técnico e artístico que dê conta de suportar a representação da realidade em chave crítica. Introduz o método de Stanislávski, que havia estudado no Actor's Studio, com vistas ao naturalismo que seria de grande valia para a primeira fase de renovação da cena que o Arena promoveria. O andar de baixo finalmente vem à luz e personagens como operários, cangaceiros e jogadores de times de várzea ganham o palco. Era a hora da representação dos temas nacionais, quando dirigiu, entre outros, Chapetuba Futebol Clube, de Oduvaldo Viana Filho (1959), espetáculo que dá seguimento a Eles não usam Black-tie, peça de Guarnieri (1958) dirigida por José Renato.

Oduvaldo Viana Filho - foto de internet

Ainda em 1960, de mãos dadas com os ensinamentos vindos de Brecht e o seu teatro épico, Boal escreve Revolução na América do Sul, uma mistura de teatro de agitação, tradições populares e revista musical. O espetáculo tem direção de José Renato e afirma com grande inventividade as marcas que pautariam toda a sua produção posterior: de um lado, o espírito criativo iconoclasta, experimental e, de outro, a certeza de que a experiência estética não é mero formalismo, é meio para a discussão urgente de algum aspecto da vida em sociedade.
O período que vai de 64 a 71, contabilizada a grande sede de justiça social provocada pelo golpe, é o período da resistência que inclui ações em várias frentes: alinhado ao CPC da UNE, já na ilegalidade, Boal dirige, no Rio, o Show Opinião, com Zé Ketti, João do Vale e Nara Leão. Em São Paulo cria, com Guarnieri e Edu Lobo, o musical Arena Conta Zumbi, cuja estrutura modelar seria aproveitada em outras montagens (Arena conta Bahia, Arena conta Tiradentes, Arena conta Bolívar). O propósito é evidente: fazer, através de personagens históricos ligados às lutas populares, o cotejamento com a realidade atual do país, apontando a necessidade de mobilização e de mudança. Mas não é só. Para que o efeito crítico seja efetivo os espetáculos trazem, entre outras inovações, o “sistema coringa”, uma técnica através da qual todos os atores interpretam todos os personagens e a fábula é conduzida por um narrador, que à maneira brechtiana faz a mediação crítica e chama a plateia a acompanhar as cenas à luz da razão.

Gianfrancesco Guarnieri - foto de internet

É ao fim deste duro período, quando finalmente será exilado depois de passar por tortura e de ver suas montagens censuradas, que está o nascedouro da experiência que consagraria Boal como um dos artistas brasileiros mais importantes do mundo. É quando surgem os princípios que vão orientar as técnicas que mais adiante serão aplicadas ao seu Teatro do Oprimido. É criado o Núcleo Independente, oriundo do Arena, que teria ação importante na periferia de São Paulo nos anos 70. O primeiro espetáculo chama-se Teatro Jornal 1a. edição e inspira-se no trabalho de um grupo de agit-prop americano dos anos 30, o Living Newspaper. O procedimento fundamental está próximo do que mais tarde seria o Teatro Fórum: os atores leem as notícias do dia e criam situações cênicas para debater pontos de vista e lançar novos olhares sobre o noticiado.
Expulso do seu país, Boal prossegue com seu trabalho no exterior, primeiro na Argentina, onde desenvolve a estrutura teórica dos procedimentos do teatro do oprimido. É quando passa a sistematizar e a praticar uma revolução verdadeira. Simples como o são as coisas necessárias e urgentes, o Teatro do Oprimido tem como palco qualquer lugar onde um grupo de cidadãos possa se reunir e tem como finalidade dar voz, através da representação simbólica do mundo, aos que em geral permanecem calados. Com uma técnica engenhosa, que leva aquele que seria o espectador do teatro burguês ao lugar de atuante no curso dos acontecimentos, é uma forma teatral que desmistifica a coisa estética para ver a beleza no exercício de autonomia do sujeito, quando este é chamado a intervir no andamento da ação e a dar sentido político à sua própria existência. Recentemente o Teatro Legislativo, gênero derivado do Teatro do Oprimido e surgido durante o mandato de Boal como vereador no Rio de Janeiro, foi responsável pela criação de treze Leis municipais, todas nascidas da discussão comunitária, em encontros nos quais a população apresentou, através do teatro, as suas demandas.
Nomeado pela Unesco Embaixador Mundial do Teatro em março deste ano, Boal deixa seus livros traduzidos em vinte idiomas e centros de teatro do oprimido espalhados por mais de setenta países.

Augusto Boal - Foto retirada da matéria original no site Carta Maior


Nesta semana de homenagens póstumas não será demais lembrar uma fala, na apresentação da sua autobiografia, em que ele dizia que a ideia de se autobiografar é algo quase imoral, pois que o importante é a obra, não o homem. Mas o fato é que seu gênio artístico fará falta, sim, e tende a parecer cada vez mais uma anomalia, um idealismo ingênuo – como, aliás, está tratado já subliminarmente, nas falas de despedida, pela grande mídia e por vários dos seus companheiros de jornada, hoje rendidos ao mercado do entretenimento. Em uma época na qual a arte se identifica e se organiza em tendências de temporada, será cada vez mais raro encontrar um artista cuja tendência radical na direção da justiça é obra de uma vida inteira.

sábado, 9 de abril de 2016

DARIO FO - 90 ANOS DO GIULLARE

Em 24 de março o grande artista e Nobel de literatura, Dario Fo, completou 90 anos. Em sua homenagem fizemos uma compilação de dois textos sobre as comemorações, publicados na mídia italiana e traduzidos por Claudia Venturi, especialmente para o nosso blog.
Os textos são:
Milão festeja o nobel - Dario Fo: noventa anos com a gargalhada
De 24 de março de2016, por Ira Rubini em: http://www.radiopopolare.it/2016/03/dario-fo-novantanni-con-lo-sghignazzo/
Dario Fo: o grande Mestre completa 90 anos

De 23 de março de 2016, por Federica D'Alfonso, em http://www.fanpage.it/dario-fo-il-grande-maestro-compie-90-anni/

Dario Fo, foto da internet - Radio Popolare
MILÃO - Dario Fo completa noventa anos e Milão festeja com uma noite ao Piccolo Teatro Studio Melato (transmitida ao vido pela Radio Popolare), após o lançamento de seu último livro, Dario e Dio, e a inauguração em Verona do MusaLab, com as relíquias de uma vida de espetáculo junto a Franca Rame.
“Tenho pouco tempo pela frente e ainda tantas coisas para dizer”, nos confidenciou o Nobel em sua casa estúdio milanês, enquanto selecionava os últimos repertos para enviar ao museu veronense.
Noventa anos vividos ensinando o compromisso, a paixão artística, o riso desenfreado, antídoto popular aos abusos do poder e às convenções das pessoas de bem.


"Temo o gratuito, aquilo que, isto é, é oferecido por si mesmo, como deleite pessoal ou de fantasia intelectual e eu também, a seu tempo, cedi a esta tentação, mas me afastei súbito porque me dei conta de que se permanecesse naquele caminho não apenas não teria progredido teatralmente, assim como teria ido contra o meu modo de sentir e de ver o público. (...) Sempre coloquei como objetivo para mim a aproximação do público".Assim falava Dario Fo em uma entrevista dada para “Teatro per molti, teatro per pochi”, em 1967. De fato a sua relação com o público nunca foi interrompida, até mesmo hoje, dia em que o Prêmio Nobel festeja os seus magníficos 90 anos.
Dario Fo está para apagar a sua 90° velinha: uma vida para o teatro, para a literatura e para o seu público. Prêmio Nobel em 1997, Fo foi e é o teatro: um teatro ilustre, que ostenta inspiração obtida da Commedia dell'arte e daquele mundo giullaresco[i] do qual ele é, sem dúvida, o cantor mais fascinante e profundo. Ator, diretor, escritor, cenógrafo, figurinista e empresário de sua própria companhia, Fo contém dentro de si os inumeráveis trabalhos que o tiveram como protagonista, o símbolo de um intelectual que, com força e ironia, sempre foi fiel a regra mais importante do teatro: a verdade.
“A partir de mim quiseram premiar as pessoas de teatro”
O de Dario Fo foi, sem dúvida, prêmio mais inesperado e criticado da história do Nobel italiano. Em 1997 Fo recebe o prêmio "porque, seguindo a tradição dos giullari medievais, ele zombou do poder, restituindo a dignidade aos oprimidos". A escolha de Fo, por parte da Academia Sueca levou em consideração os muitos representantes da cultura italiana que, há anos, patrocinavam a candidatura de Mario Luzi. Alguns consideraram nada menos do que uma ofensa, e mesmo o próprio Luzi, entrevistado, afirmou: "Como autor eu não o conheço".
Mas Dario Fo riu até naquela ocasião, aceitando com infinita humildade o reconhecimento e presenteando à Itália um pedaço inesquecível de história literária. Como sempre irônico, Dario Fo dissolveu os ânimos contando de um episódio acontecido a noite da premiação: “Se concluiu com o seco chamado a ordem, de minha mulher: "Quando chegarmos em casa, te esbofetearei com um sonífero que te fará dormir por ao menos dois dias. Anda, que a festa finalmente acabou".

“Mistero Buffo”, ontem e hoje
Para nós, interpretar não é só um trabalho, mas é também e, sobretudo, um divertimento que atinge o máximo do prazer quando conseguimos criar novas situações e jogar aos ares as convenções e regras. Esperamos de comunicá-los este nosso divertimento e de conseguir surpreendê-los, fazendo-os rir e, talvez, pensar.

Em 1° de outubro de 1969, a La Spezia, Fo levou pela primeira vez em cena, com grande sucesso, a "giullarata" Mistero Buffo: único ator em cena, interpretava uma fantasiosa reelaboração de testos antigos em “grammelot”, uma linguagem feita de sons que imitam o ritmo e a intonação de línguas reais, com intuitos claramente paródicos. Mistero Buffo, com o subtítulo “Giullarata popolare del 400”, se coloca nos anos da contestação (1968-69) e assinala não apenas uma reviravolta na carreira de Dario Fo e de Franca Rame, que abandonaram os circuitos teatrais convencionais por uma companhia coletiva tornando-se imediatamente um marco no panorama do teatro internacional. O mesmo título “Mistero Buffo”, para o grande e continuo sucesso na Itália e no exterior, tornou-se uma formula.

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E hoje, a distancia de anos, mas com um sucesso nunca interrompido, Fo irá repropor em uma única data na Itália, quinta-feira 16 de junho de 2016 na Cavea dell’Auditorium Parco della Musica, “Mistero Buffo” e “la Storia della tigre e altre storie”. Uma nova versão do espetáculo, junto a outros dois trechos derivados da “Storia della tigre e altre storie”, de 1979.

Dario e a literatura

"Dario e Dio" por Guanda - Imagem da internet - site fanpage


Em 17 de março foi lançado, pela editora Guanda, “Dario e Dio”. Dario Fo sempre teve uma relação muito particular com o sagrado, e instaurou com este um diálogo que nunca se interrompeu desde a sua obra prima “Mistero buffo”: o sagrado, a Igreja e os santos foram e permanecem não somente os seus adversários, mas os seus interlocutores privilegiados. Do imenso patrimônio de testos oficiais e apócrifos, da cultura popular, das artes visuais, desencadearam releituras personalíssimas da Bíblia e dos Evangelhos, da figura de Maria, do relacionamento de Jesus com as mulheres, da invenção da Igreja e de seus tantos mal feitos. Tudo isso com ironia provocatória, nunca blasfema ou desrespeitosa.
E agora, com 90 anos, Dario Fo decide concluir a sua longa e aventurosa exploração nos misterios mais ou menos buffos da fé e da religiosidade. Junto a Giuseppina Manin, jornalista da página dos Espetáculos do Corriere della Sera, se diverte prestando as contas, ao seu modo, com Deus e aquilo que dele resulta: do Gênesis ao Apocalipse, do Inferno ao Paraíso, do Reino dos Céus àquele dos homens.
Irônico e provocatório Fo, em seu livro, convida a refletir, ao seu modo, sobre as contradições deste Deus: "Cria um filho e imediatamente o trata mal, exige que o obedeça após ter declarado que existe o livre arbítrio. Expulsa-o do Paraíso e o adverte que sofrerá, sofrerá a fome, a sede. Terá por fim uma vida de m… Mas por que o criou então, se já sabia de tudo?" grita Fo. E depois reflete: "Da Inquisição ao Isis… A lógica é a mesma: eu estou no lado justo, eu tenho a verdade, e você não. E então para evitar a propagação de heresias, de pontos de vista dissidentes, se acendem fogueiras, se cortam gargantas, se plantam bombas. Sempre em nome de Deus, se pretende".

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No último 14 de janeiro foi lançado, editado na coleção "Narrazioni" da Chiarelettere, "Razza di zingaro": Fo se exercita com a trágica história do pugilista Johann Trollmann, campeão de origem sinti[ii], perseguido na Alemanha nazista.
O livro percorre a história esquecida de "Rukelie", nascido na Baixa Saxônia em 1907 de uma familia da etnia sinti: por causa das suas origens, é perseguido pelo regime e constrangido a se divorciar da mulher e a esterilização e, enfim, é fechado no campo de concentração de Neuengamme, aonde morre em fevereiro de 43. Para Chiarelettere, além de “Razza di zingaro”, Fo publicou também “Nuovo manuale minimo dell'attore”, pensado por Dario Fo com a esposa Franca Rame, “Un uomo bruciato vivo”, “C'è un re pazzo in Danimarca”, “La figlia del papa” e “Il Grillo canta sempre al tramonto”.


Dario Fo fala, neste vídeo, sobre os seus 90 anos: "Não temo a morte, o meu lema é fazer rir!"




[i] Giullaresco, de Giullare(i), nome dado ao antigo artista polivalente que deu origem aos bobos da corte, artistas capazes de interpretar uma série de personagens e situações sem necessitar trocar de figurino ou adereços. Também traduzido como jogral.
[ii] Os Sinti são uma das etnias que compõe a população romani, também chamadas ciganos, termo que hoje tem uma característica depreciativa.





sábado, 2 de abril de 2016

A verdade teatral em Stanislavski e Peter Brook

A verdade teatral em Stanislavski e Peter Brook: uma análise comparativa do conceito de verdade


Martha Dias da Cruz Leite[i]
Eusébio Lobo da Silva[ii]
Publicado em ArteFilosofia, Ouro Preto, n.2, p. 156 – 169, jan. 2007
Em http://www.raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_02/artefilosofia_02_04_teatro_02_martha_dias_cruz_leite.pdf

Arttaud + Brecht +  Stanislavski = Brook / Foto internet

Introdução: Stanislavski e PeterBrook - aproximações e diferenças

Peter Brook freqüentemente se remete ao termo “Centelha da Vida” para se referir a uma idéia de um teatro de fortes qualidades expressivas, devido a sua alta capacidade, entre outras, de “prender” a atenção do espectador. Em relação ao trabalho do ator afirma, constantemente, que o principal elemento determinante de toda a sua qualidade resvala no fato de existir ou não “vida” no ato de representar. É neste ponto que Brook propõe, com bastante relevância, as seguintes questões: qual a diferença entre um homem que, imóvel no palco, consegue chamar nossa atenção e aquele que não consegue fazê-lo? Por que, muitas vezes, saímos do teatro com a sensação de ter passado uma noite insípida, apesar de o espetáculo assistido ser dotado de excelentes recursos técnicos e interpretado por bons atores? Ou, então, temos a mesma sensação com certos espetáculos tidos como “culturais” e impregnados de grandes teorias teatrais, ao passo que uma peça muito menos pretensiosa, com um tema bobo e interpretações simples, parece-nos muito mais encantadora. A diferença é a presença desta faísca, uma pequena centelha que acende e dá intensidade a esse momento comprimido, destilado, pois é a presença da vida que faz com que o que está sendo apresentado torne-se interessante.[iii]
Um ponto interessante encontrado em seus relatos de trabalho, nos livros que escreve e em suas entrevistas é que, freqüentemente, Brook usa o termo verdade para falar desta qualidade expressiva essencial ao trabalho do ator. Stanislavski tem este mesmo termo como o alvo central de suas pesquisas e, para ele, é a busca pela verdade cênica que deve ser o objetivo de seus atores. A partir daí, escreve o seu Sistema para auxiliar o ator a chegar a um bom resultado em sua representação através de procedimentos mais seguros do que a simples intuição e inspiração.
Com o objetivo de apontar algumas considerações e reflexões sobre a verdade cênica, este artigo propõe a discussão das seguintes questões: o quanto existe de semelhanças e diferenças entre o sentido dado por Peter Brook e Stanislavski ao termo verdade teatral? A verdade Stanislavskiana seria a mesma verdade buscada por Peter Brook em seu teatro? O quanto os procedimentos metodológicos adotados, concepções de teatro, opções estéticas e até mesmo a escolha da linguagem utilizada para abordar este conceito revelam diferenças, e o que existe de comum em suas buscas e aspirações artísticas? Para responder a essas perguntas, busquemos nas teorias de Stanislavski e de Peter Brook algumas argumentações que possam vir a esclarecer tais questões.

1. A verdade cênica no método de Stanislavski

O termo verdade cênica e Konstantin Stanislavski são elementos quase automaticamente associados, afinal foi o diretor russo que introduziu tal termo no vocabulário teatral e, desta maneira, influenciou e polemizou toda uma série de pesquisas em busca dessa qualidade.
Vivendo em uma época em que a artificialidade das atuações e o convencionalismo no repertório eram as práticas mais comuns no panorama teatral russo, Stanislavski operou uma revolução no modo de se fazer e pensar o teatro no início do século XX. Guinsburg[iv], tratando da interpretação dos atores dessa época, descreve um cenário desolador: o estudo sistematizado e rigoroso sobre a arte de interpretar não era a prática comum na formação dos atores, pelo contrário, a presença de atores amadores e sem formação e nem talento predominava nos palcos da época; para ser ator somente era necessário ter uma voz vibrante, maneiras fáceis e, no caso de ser uma atriz, o maior requisito era um corpo bem feito e um rosto bonito; as peças eram montadas com dois ou três ensaios, e os atores não precisavam fazer nada mais do que repetir os sons que o ponto soprava e reproduzir as entradas, saídas e marcações de cena fixadas pelo diretor. Enfim, era uma época de toda a sorte de estereotipia e clichês reproduzidos mecanicamente em uma prática generalizadamente medíocre, em que muitos atores consideravam, inclusive, que uma elaboração cuidadosa do papel, através de um trabalho sistemático, com o uso de técnicas e meios racionais, seria prejudicial para a obra de arte teatral, que deveria ser fruto da inspiração e de uma subjetividade calcada no acaso. Roubine[v] compartilha desta visão, qualificando a interpretação teatral convencional do início do século XX como “espírito de rotina, amadorismo, irresponsabilidade e falta absoluta de senso crítico”.
Stanislavski, em sua revolta contra esse cenário, debruça incessantemente sua atenção sobre a sua atividade dramática para estudá-la e desenvolvê-la, através de análises e reflexões rigorosas, em uma busca e experimentação constante com o objetivo de alcançar meios autênticos de expressão na representação teatral. Foi um militante de uma batalha contra clichês, estereótipos, automatismos rotineiros e habilidades exteriores desprovidas de conteúdo emocional.
O Sistema de Stanislavski é baseado no que ele chama de leis orgânicas da vida e seu objetivo principal é permitir ao ator alcançar uma boa representação sem depender exclusivamente da inspiração e da intuição. Stanislavski fala constantemente em “criar a vida de um espírito humano”, e, com isso, refere-se a uma atuação que pareça convincente aos olhos do público[vi]. Seu trabalho é comumente divido por estudiosos em duas fases. A primeira é a fase da memória emotiva, na qual ele conclui que o ator pode se valer de sentimentos análogos já vividos antes na vida real para viver o papel. Em sua segunda fase, se apóia no Método das Ações Físicas como uma construção segura para a criação do personagem.
Fernando Peixoto, no Prefácio do livro de Eugênio Kusnet Ator e Método, aborda a questão da verdade cênica como uma realidade virtual adotada pelo ator na qual ele acredita piamente, porém sem perder a capacidade de se observar e conduzir a sua criação. Isto significa ter fé cênica, isto é, assumir a problemática do personagem e vivê-la com a maior sinceridade possível, sem deixar de ser ele próprio para ser o personagem. Stanislavski afirma que, se o ator souber alcançar este estado de verdade em sua atuação, através da aceitação das circunstâncias propostas e dos objetivos do personagem como se fossem seus, a transmissão de idéias e emoções ao espectador será tão eficiente que o ator conseguirá tocar o público, despertar sua emoção e manter o interesse deste na cena apresentada.
A capacidade do ator de inserir-se nas circunstâncias propostas e de atuar de acordo com o objetivo da personagem forma o trabalho de base da técnica realista de interpretação, pois evita o equívoco de o ator preocupar-se com elementos não fundamentais. Um exemplo disto é a indicação dada por Stanislavski ao ator para nunca interpretar um sentimento em geral, isto é, não executar uma ação por executar ou querer “sentir” algo por sentir, pois toda ação em cena deve ter um objetivo[vii]. Kusnet coloca o objetivo da personagem como sendo o fator chave que levará o ator a conseguir inserir-se nas circunstâncias dadas, e não admite que um ator execute uma ação que não seja motivada e orientada por um objetivo definido, pois é este que desencadeará a vontade criadora do ator:

Portanto, convenhamos que em teatro não possamos admitir que ação cênica seja desprovida de objetivos. Como na vida real, a necessidade estimula a atividade do homem dentro de uma determinada situação, assim também em teatro o objetivo do personagem estimula a imaginação do ator e o induz a agir dentro das circunstâncias da obra dramática.[viii]
A memória emotiva é o carro-chefe de Stanislavski em sua primeira fase, na qual ele se concentra na Linha das Forças Motivas Interiores – mente, sentimento e vontade juntos para desencadear a atividade criadora do ator. Para ele, o ator só pode desfrutar de uma interpretação verdadeira caso utilize seus próprios sentimentos para representar. Isto está relacionado às experiências dos seres humanos em determinadas situações da vida. Mesmo em suas peças simbolistas ou aquelas que se passam no plano da fantasia, para ele, os personagens experimentam uma gama de sentimentos que os próprios atores possam ter sentido alguma vez na vida, ou seja, os sentimentos dos personagens devem ser análogos a sentimentos já experienciados pelo atores, dos quais estes se utilizariam para representar seu papel. E é por isso que Stanislavski induz seus atores a começar concentrando-se nas situações propostas pelo autor e em visualizações ativas que os auxiliarão a agir como se estivessem naquela situação, sem esquecer, é claro, de agir de acordo com os objetivos da personagem para, desta forma, motivar a vontade criadora necessária ao despertar dos sentimentos e da vida interior da personagem, provocando assim, a tão almejada sensação da verdade.
Uma outra etapa fundamental no trabalho proposto pelo mestre russo é a encarnação do papel. Preparados os desejos, objetivos e aspirações da personagem, o próximo passo é colocá-la em ação, usando as palavras e movimentos físicos para transmitir seus pensamentos e sentimentos. Stanislavski explica que isto significa simplesmente executar os objetivos determinados de um modo físico[ix]. O pensamento do ator no processo criativo stanislavskiano foi algo que adquiriu uma importância fundamental entre os seus seguidores, e é por este motivo que, freqüentemente, encontramos na história da interpretação teatral relatos de más interpretações de seu método, como se este se resumisse à memória emotiva. Entretanto, uma importantíssima parte do método de Stanislavski (e talvez seu maior legado) é o Método das Ações Físicas, em que ele deixa clara a importância de externalizar em ações concretas a atividade interior da personagem, procedimento sem o qual todo o trabalho mental de identificação das circunstâncias dadas, objetivos, visualizações ativas, entre outros, perde seu sentido.
Se, durante a primeira fase do seu trabalho, Stanislavski se concentrava na Linha das Forças Motivas Interiores e na memória emotiva, em sua segunda fase ele desloca sua atenção para a necessidade de fixação de elementos trabalhados anteriormente, tais como a memória e os sentimentos. Mas ele admite a impossibilidade de fixar os sentimentos, então recorre às ações físicas para operar tal procedimento: “não me falem de sentimentos, não podemos fixar os sentimentos. Podemos fixar e recordar as ações físicas”[x]. Ao executar tais ações, a necessidade de justificá-las internamente leva o ator a recorrer a todos os procedimentos, já descritos mais acima. Portanto o Método das Ações Físicas não representa uma ruptura com o processo das Linhas das Forças Motivas e da memória emotiva, e sim um novo procedimento que se inicia a partir de elementos exteriores (as ações físicas) que funcionarão como uma espécie de catalisador dos sentimentos e emoções.

A ação exterior alcança seu significado e calor interiores, graças ao sentimento interior, e este último encontra sua expressão em termos físicos, a encarnação externa[xi].
Para isto ser possível, o ator deve acreditar sinceramente em cada uma das ações físicas executadas, pois estas funcionarão como iscas para o sentimento interior. Neste ponto, a principal preocupação do ator deve ser a de executar estas ações com a maior verdade e fé possível. A verdade agora é abordada por meio de uma disponibilidade psicofísica do ator em acreditar, em termos orgânicos, na execução de suas ações.

Basta que o ator em cena perceba uma quantidade mínima de verdade física orgânica, em suas ações ou em seu estado em geral, para que instantaneamente suas emoções correspondam à crença interior na autenticidade daquilo que o corpo está fazendo[xii].
Em resumo, para Stanislavski “representar verdadeiramente significa estar certo, ser lógico, coerente, pensar, lutar, sentir e agir em uníssono com o papel”; viver o papel é “tomar todos esses processos internos e adaptá-los à vida espiritual e física da pessoa que estamos representando”[xiii], e isto necessita de uma completa união entre a entidade física e a entidade espiritual do personagem. Neste ponto, Guinsburg[xiv] assinala a importância de não confundir verdade e realidade na arte, pois aquilo que é real não necessariamente atinge a verdade artística. Em termos práticos, isto significa que Stanislavski não vê o elemento da verdade na arte da representação como uma simples reposição de estados afetivos reais, anteriormente vividos pelo ator e recuperados pelos mecanismos da memória afetiva. Guinsburg argumenta que esta é uma etapa importante do método, mas representa apenas uma parte do processo, pois a outra parte consiste justamente em pôr os elementos mobilizados a serviço de uma configuração significativa no corpo do intérprete. Dar forma artística a este material emocional recolhido na primeira etapa do processo significa, portanto, exprimi-lo organicamente na vida física do ator. Trata-se de uma criação em que a esfera emocional, a imaginativa e a carnal trabalham em conjunção total: “É na efetiva conjugação orgânica das três (esferas) que reside a autenticidade do representado, isto é, a sua verdade”[xv].

Constantin Stanislavski
- foto internet

2. A centelha da vida: uma busca pela vida da cena

Sem estabelecer um método de interpretação, ou sistematizar seus estudos sobre o ator de forma a consolidar procedimentos tão definidos como fez Stanislavski, Peter Brook fala de maneira quase metafórica – e nem por isso menos importante – sobre a problemática da atuação, resvalando em questões muitas vezes de caráter existencial. Em se tratando de verdade teatral, ele define como a raiz do trabalho do ator “saber se a cada momento, no ato (...) de atuar, existe uma faísca, uma pequena centelha que acende e dá intensidade a esse momento comprimido e destilado” que é o evento teatral, pois “essa centelhazinha de vida tem de estar presente a todo instante”[xvi]. Para propiciar tal fenômeno, ele acredita ser a única coisa necessária a presença do elemento humano, argumentando que, embora o resto tenha a sua importância, isto é o principal. Para existir teatro são necessárias apenas duas pessoas que se encontram e uma terceira que assiste. A partir dessa afirmação, Brook conclui que o bom ator é aquele capaz de estabelecer com os outros atores e com o público uma relação que funcione, sem deixar, ao mesmo tempo, de manter uma sólida e profunda relação com seu mundo interior. Para ele, a tríade mundo interior – outros atores – público é a base do evento teatral, e é no desenvolvimento dessas relações que se encontra o berço da verdade cênica, ou seja, uma representação em que se percebe a presença da “Centelha da Vida”.

O teatro talvez seja uma das artes mais difíceis porque requer três conexões que devem existir em perfeita harmonia: os vínculos do ator com a sua vida interior, com seus colegas e com o público.[xvii]
Considerando que Peter Brook, na maioria das vezes, trabalha com atores experientes e que possuem cada qual o seu método pessoal de criação, cria-se a hipótese de que esta seja uma justificativa possível à sua não necessidade de propor um caminho definido, um sistema de trabalho tal como fez Stanislavski. Principalmente depois da formação do Centro Internacional de Pesquisas Teatrais, onde, ao trabalhar com atores de diferentes culturas e tradições, ele estudou o que está por trás destas técnicas e explorou vários procedimentos de se chegar a uma atuação que considerasse verdadeira.
Peter Brook não teve uma formação em escolas de teatro, sua experiência advém da prática, e ele argumenta que isso fez com que não se apegasse a estilos e classificações teatrais. Assim, durante sua vida, correu de um gênero a outro no intuito de investigar as questões que em cada época o instigavam: transitou pelo teatro convencional inglês no início de sua carreira, época em que priorizava a geometria do espetáculo, as imagens produzidas através da música e das luzes; estudou as teorias de Artaud e realizou pesquisas intensas com a linguagem não verbal; no espetáculo Marat/Sade investigou onde, como e em que nível a oposição Brecht – Artaud deixa de ser real; e em U.S. adotou procedimentos brechtianos ao montar uma peça em que a denúncia à Guerra do Vietnã era o ponto central da dramaturgia; em 1971 fundou o Centro Internacional de Pesquisas Teatrais, onde reúne atores de várias nacionalidades, etnias e costumes para investigar a essência da comunicação teatral[xviii]; uma de suas últimas peças - Tierno Bokar, que viajou pelo Brasil durante o mês de agosto de 2004 - mostrou uma forte tendência realista na interpretação de seus atores, levando ao extremo a estética do “simples e essencial” ao minimizar ao máximo a ação exterior na interpretação.
Peter Brook, em seus livros e entrevistas, apesar de utilizar bastante o termo verdade e de concordar com Stanislavski em que ela se encontra nas profundezas da vida, não elabora um conceito de verdade, mas utiliza-se de metáforas para explicitar seu pensamento a esse respeito: para ele, a verdade é algo inatingível e não passível de ser trazida à luz da reflexão em termos tão concretos como “faça isto porque assim será verdadeiro”. Entretanto, argumenta que, como é possível definir uma mentira - pois esta sim facilmente se revela -, através do combate e eliminação desta mentira, inevitavelmente o que sobra é a verdade. Além do que, Brook diz existir um fator intuitivo que leva todo ser humano a sentir, independente da cultura e do gosto pessoal ou artístico, se a verdade está presente ou não. Não se pode explicar o que é essa capacidade e como ela funciona, mas, intuitivamente, todos sabem quando algo é realmente bom (o que Brook denomina dimensão de qualidade) e quando uma obra não passa de “qualquer coisa”. Desta forma, o conceito de verdade empregado por Peter Brook refere-se, em suas palavras, a uma “percepção ampla da realidade”: por um momento, experimentamos a sensação de que a nossa capacidade de percebê-la é ampliada e funciona como um elo entre o aspecto mais profundo da vida (o invisível) e a realidade cotidiana (o visível). Porém este momento é efêmero e, mais uma vez, ficamos com a sensação de que a verdade esvai-se, sendo necessário buscá-la novamente. E é esta busca que alimenta e rege o trabalho do ator.[xix]
Em sua maturidade, Peter Brook passa a abordar o trabalho do ator como aspecto central de suas pesquisas, contrariamente aos seus primeiros anos de teatro, quando se voltava quase que exclusivamente para a questão imagética do espetáculo, deixando a interpretação dos atores para segundo plano[xx]. O diretor inglês argumenta que a principal responsabilidade do ator é preparar o terreno e tornar as condições favoráveis para que a “Centelha da Vida” aponte no momento certo, pois a vida impregna o palco somente se o ator for convincente.
“Como colher o invisível, como manter as ‘centelhas da vida’ presentes nas ações executadas pelos atores?”[xxi] Bonfitto afirma que é sobre este “como” que a atenção de Peter Brook se concentra enquanto conduz suas pesquisas, que têm como eixo central o ator. Também atenta para o fato importante de que este “como” não diz respeito somente à atuação enquanto conjunto de técnicas e conceitos teatrais, mas também enquanto experiência existencial, que envolve todos os processos perceptivos, sensoriais e intelectuais do ator. O trabalho de Peter Brook passa a ser um “canal de investigação e busca de descobertas que são geradoras de transformações perceptivas, sensoriais e intelectuais, (...) é permeado por uma atitude de ‘abertura existencial’, de ‘suspensão de juízo’ que tem como objetivo perceber o não percebido, descobrir o que está escondido, tornar visível o invisível.” tornar visível o invisível.”[xxii]
Independente da linha de pesquisa em que Brook estivesse trabalhando, seu objetivo era o de encontrar um teatro “onde se pudesse experimentar certas coisas que sabemos corresponder profundamente à vida”, não importando o estilo ou a opção estética que representasse[xxiii]. Neste sentido, é importante trabalhar com o que ele chama de formas vivas, idéia que se contrapõe ao teatro morto, isto é, enfadonho, sem sentido e significado tanto para quem vê como para quem faz, cujo produto final é o tédio. E, para trabalhar com formas vivas, Brook acredita que é necessário não cristalizá-las, pois defende que a verdade é algo inefável e dinâmico, e conclui que essa é a razão pela qual uma forma perde sua virtude e sua vida se estanca no momento exato em que se torna fixa. Assim, ele define como teatro morto aquele que já descobriu a maneira certa de ser feito e não tolera renovações, mesmo quando a “Centelha da Vida” já abandonou a sua forma exterior e sua realização perdeu o sentido.[xxiv]
O ator que trabalha dentro desta concepção de teatro tende a estar pronto a se submeter a uma investigação constante, a “angústia da criação” não deve abandoná-lo após os primeiros ensaios. Arriscar e descobrir constantemente novos caminhos e possibilidades - acredita Brook - é a única maneira de não caminhar rumo a uma representação morta. O ator criativo está sempre em constante mudança, pois explora vários aspectos da representação até o último momento: “O verdadeiro processo de construção envolve simultaneamente uma espécie de demolição, que implica aceitação e medo.”[xxv] Yoshi Oida, ator que trabalha com Brook desde a década de 70, aborda este ponto sob um prisma muito interessante. Ele define o ator criativo como aquele que, mesmo que possua uma técnica tradicional – como, por exemplo, as técnicas tradicionais orientais –, compreende não somente a forma, mas também a essência dessa técnica e, além de tudo, sabe aproveitar-se das inovações do mundo contemporâneo[xxvi]. A postura de trabalho do ator, neste caso, resvala até mesmo numa investigação de cunho existencial:

Cada pessoa tem o seu próprio passado, e quando se atua nunca se usa o passado. Ontem e hoje são diferentes e você deve desenvolver algo para o presente. De fato, eu estudei o teatro clássico japonês, mas não para usar no meu trabalho. Eu o estudei talvez porque tivesse uma outra personalidade. Talvez as melhores coisas até tenham sido tiradas do teatro clássico, mas não é como uma teoria ou uma técnica. É algo mais. O “como” essa experiência influencia o corpo humano no seu dia-a-dia e no palco é o mais importante. O que importa é o humano, e não a técnica. Quando represento um personagem no palco, a pergunta é quem sou eu? Aquele no palco sou eu mesmo encoberto pela personagem, e não um personagem debaixo da minha técnica. Sou eu mesmo como eu construí esta personagem, através da minha vida familiar, das minhas amizades e de meu trabalho com o teatro.[xxvii]
Ao se analisarem alguns processos de ensaios de montagens de Peter Brook, verifica-se que o diretor trabalha com uma gama variada de técnicas, indo desde a discussão de um texto a práticas menos conceituais como improvisações, compreensão intuitiva através do trabalho corporal, trabalho com abundância de materiais (fotografias, filmes, relatos, artigos, visitas a locais relacionados ao tema do trabalho, etc.), pesquisa de sons, estudo e aplicação de técnicas teatrais diferenciadas, apresentação para crianças e autoexploração dos recursos do ator (corpo, voz, gestualidade, energia, presença, ritmo, percepção, emoção, relação e concentração). Desta forma, pode-se dizer que Peter Brook trabalha com uma abundância de material que vai sendo lapidado, atos de eliminação daquilo que ele julga não servir ao processo de montagem da peça e, ao mesmo tempo, incorporações de descobertas que julga úteis a este. Portanto, fases de criação, cuja última e mais tardia etapa é o processo de formalização da personagem, que, por fim, acaba por “nascer”, “brotar” destas etapas anteriores[xxviii]. Roose-Evans[xxix] relata que existem atores que odeiam o método de Peter Brook, pois não conseguem trabalhar com este nível de insegurança quanto a um resultado final, já que Brook encoraja o abandono de uma maneira de interpretar, durante etapas bem tardias do processo, se sentir que esta está se tornando vazia.
Em suma, o conceito de verdade no teatro de Peter Brook está muito mais ligado a uma busca infindável por uma forma viva (às vezes até de cunho existencial) do que a um conjunto de técnicas e procedimentos predefinidos. Oida analisa a diferença entre o que se faz em uma sala de ensaio e o que se leva para o palco: ele diz que o ator recolhe material para que possa carregá-lo até a frente do público e, então, descobrir, a cada noite, como fazer vida usando este material[xxx]. Porém Brook completa dizendo que este é o caminho em termos ideais, mas reconhece que numa temporada longa, este esforço de recriação diária seria insuportável, e é nessa hora que o ator deve se apoiar na técnica para conseguir levar adiante o espetáculo. O ator criativo valoriza tudo o que descobriu, mas sabe que deve aparecer diante do público disposto a redescobrir o que fazer naquela situação, para que, deste modo, se conserve o frescor da atuação. a atuação[xxxi]. Em outras palavras, para que consiga propiciar um terreno fértil para o surgimento da “Centelha da Vida” em sua representação.

Peter Brook - foto Luc François Georgi

3. Fé cênica e centelha da vida: uma análise comparativa do conceito de verdade

Ao considerarmos os caminhos que Stanislavski e Brook propõem para alcançar o que chamam de verdade, observamos alguns pontos relevantes para uma comparação. Primeiramente, a própria linguagem utilizada por cada um deles para abordar a questão da verdade expressa bem tais diferenças. Stanislavski nos toca pela lógica com que articula seus pensamentos ao definir técnicas e procedimentos bem concretos que podem nortear o trabalho do ator - mas sem deixar de considerar a importância da porção orgânica e inconsciente desse trabalho. Peter Brook nos atinge pelas imagens e sensações que suas palavras nos trazem; usa de metáforas para falar de assuntos que ele considera pertencentes ao campo do indefinível, como a sua concepção de verdade; neste caso, é possível notar uma grande influência da filosofia existencial de Gurdjieff[xxxii], seu guia espiritual[xxxiii].
Em relação aos procedimentos metodológicos propostos por ambos ao ator, Stanislavski tinha uma escola de atores e estabeleceu um sistema de cunho didático, com passos e procedimentos bem definidos. Peter Brook, em grande parte das vezes, trabalhava com atores experientes e de diferentes tradições culturais e artísticas, experimentando diversas vias para se chegar a uma atuação que ele considerasse verdadeira. Peter Brook argumenta:

Se eu tivesse uma escola de teatro, o trabalho não começaria de jeito algum por caráter, situação, pensamento ou comportamento. Não procuraríamos conjurar anedotas de nossas vidas passadas para chegarmos a incidentes, por mais que fossem verdadeiros. Não buscaríamos o episódio, mas sua qualidade: a essência dessa emoção, além de palavras, aquém do incidente.[xxxiv]
Do ponto de vista estético, Stanislavski teve como carro forte o Realismo e, apesar de ter encenado peças simbolistas e expressionistas, a base de atuação de seus atores era a interpretação realista. Peter Brook, em um dado momento da sua vida, expressa certa desconfiança em relação à estrutura de trabalho dentro de uma proposta realista de interpretação:

Interesso-me pela possibilidade de alcançar, no teatro, uma expressão ritual das verdadeiras forças motrizes de nosso tempo, nenhuma das quais, acredito, é revelada nas peripécias ou caracterização dos personagens e situações das chamadas peças realistas.[xxxv]
Em O Teatro e seu Espaço[xxxvi], Brook ataca o título dado por Stanislavski a seu livro A Construção de um Personagem, por achar que “o personagem não é uma coisa estática que pode ser construído como uma parede”. Desta maneira, conclui que o processo de criar um personagem não é uma “construção”, e sim um ato de eliminação. Uma má compreensão do Sistema de Stanislavski pode levar o ator a pensar que é possível definir racionalmente todos os objetivos de uma cena, o que acaba por induzi-lo a uma postura friamente analítica, pois “o objetivo de uma cena, a natureza de uma cena, só pode ser descoberto no processo de ensaio.”[xxxvii] Como já foi dito, é um erro pensar que Stanislavski propõe um processo puramente racional de trabalho - o Método das Ações Físicas e a Análise Ativa (procedimento que iremos comentar logo à frente) derrubam esta possibilidade -, de modo que o que Brook parece criticar, neste caso, é a terminologia adotada, a palavra “construção”, que pode direcionar a uma postura equivocada por parte do ator.
Uma das principais preocupações de Peter Brook é a de como manter interiormente vivas as ações executadas pelos atores, isto é, como garantir que a “Centelha da Vida” não abandone tais ações. Colocada de outra forma, Stanislavski também parece ter a mesma preocupação ao frisar a necessidade da ação interior da personagem durante a execução da ação exterior (“O principal nas ações físicas não está propriamente nelas, mas naquilo que elas evocam: condições, circunstâncias propostas, sentimentos”[xxxviii]). Por isso, cria o Método das Ações Físicas para garantir uma porta de acesso mais segura ao reino das emoções e sentimentos, como forma de “acionar” tais elementos (memórias, sensações, etc).
Peter Brook, por sua vez, para resolver a questão de como manter presente a “Centelha da Vida”, se concentra em não cristalizar uma forma externa das ações executadas pelo ator, já que, para ele, a verdade não pode ser encontrada em formas fixas e desgastadas. Não sugere procedimentos tão específicos quanto Stanislavski, mas sublinha a necessidade de uma abertura por parte do ator para lidar com uma incessante busca interior de redescoberta, e de uma consciência plena e absoluta de que a ação teatral se passa no tempo presente. Stanislavski expressa essa mesma preocupação de outra forma. Existem dois pontos importantes em seu trabalho neste sentido: os impulsos interiores e a improvisação. O diretor russo aponta para a existência de impulsos interiores, semelhantes a desejos, que levam à ação. O impulso não é a ação, mas sim um ímpeto interior ainda não satisfeito, e a ação é uma satisfação interior ou exterior deste desejo. É o impulso que pede pela ação interior, e a ação interior necessita, conseqüentemente, da ação exterior. Se o ator é capaz de motivar seu desejo pela ação, isto é, criar o impulso originário da ação interior, sua ação exterior será rica em verdade.[xxxix]

Eugênio Kusnet em "Toda Donzela tem um pai que é uma fera"
- 1964 -  Arquivo UNICAMP - Edgard Levenroth


Kusnet[xl] esclarece maravilhosamente a improvisação no trabalho de Stanislavski, ao comentar o método da Análise Ativa. A Análise Ativa é uma maneira dos atores analisarem o material dramatúrgico em ação, pois procura compreender os papéis não através de análises intelectuais, e sim através da ação executada com base em um conhecimento superficial da peça, ou seja, o conhecimento que se pode apreender do instante imediato ao primeiro contato com esta. Aqui, os atores só precisam saber contar o conteúdo da peça para partir para a improvisação. Kusnet argumenta que a improvisação é a base da arte, pois isso garante a espontaneidade da criação, e não deve estar presente somente nos primeiros ensaios, e sim até a última apresentação do espetáculo. “Mas como improvisar aquilo que já foi decorado e repetido mil vezes nos ensaios e nos espetáculos? Como poderia funcionar a espontaneidade do ator nessas condições?”[xli] Kusnet propõe e responde tais perguntas, esclarecendo que, neste caso, não se trata de uma improvisação livre, e sim da “presença do espírito” da improvisação durante todas as etapas da peça. E isso acontece quando o ator é capaz de, a cada vez que tiver de executar a mesma ação, realizá-la “como se fosse a primeira vez”, isto é, manter a sensação de frescor da primeira execução. Como fazer isto? Apesar de os objetivos físicos e psicológicos e as circunstâncias propostas serem fixos a cada execução, existe uma série de fatores que podem variar de uma apresentação a outra, como, por exemplo, o estado psicofísico dos atores, a reação da platéia e o contato dos atores em cena (que também nunca representarão da mesma maneira). Estes dois últimos são de fundamental importância, pois o ator tem de desenvolver a sua receptividade à ação dos outros, ou seja, ser capaz de perceber a ação do outro, compreendê-la, comentá-la e só depois reagir a ela.

(...) é através da ação dos outros que nós concebemos o início de nossa própria ação. (...) Graças ao seu poder de receber, o ator consegue captar, em seu espetáculo, novos detalhes da ação cênica, aos quais, por serem novos para ele, reage com autêntica surpresa.[xlii]
Voltando às teorias de Peter Brook: em relação ao que ele fala de não cristalizar uma forma, pois a verdade não habita formas fixas, não estaria ele dizendo algo semelhante ao que Kusnet chamou de “manter a presença de espírito da improvisação até o último espetáculo”? E sobre os três vínculos humanos (o vínculo do ator com ele mesmo, com os outros atores e com o público) que Brook aponta como os responsáveis pelo acontecimento teatral, e que o ator deve ser capaz de manter para que a “Centelha da Vida” aponte na representação? Neste caso, haveria uma grande diferença entre essa capacidade do ator de estabelecer tais vínculos e o que Kusnet chama de desenvolver a receptividade do ator à ação dos outros? O que Kusnet chama de espontaneidade não seria algo próximo à “Centelha de Vida” de Brook? Ao que tudo indica, essas diferenças são mais nominais e metodológicas do que essenciais. Stanislavski elaborou um sistema contendo procedimentos e técnicas pontuais. Brook debruçou-se numa pesquisa mais aberta no que se refere a tais procedimentos, mas com certeza ele não se importará se algum de seus atores utilizar-se intuitivamente de elementos do Sistema de Stanislavski para alcançar aquela qualidade expressiva em que se percebe a tal verdade. Um exemplo disto é o relato de Yoshi Oida a respeito de como criou o seu personagem na peça The Man Who, dirigida por Brook:

(...) estava trabalhando em vários papéis da peça, não me preocupava em retratar personagens específicos. Problemas neurológicos e energia humana básica não estão conectados a nenhuma situação pessoal. Simplesmente me concentrei em construir cena detalhe por detalhe, ação por ação. Achei esse processo interessante. Ao mesmo tempo, tentei usar um número mínimo de ações necessárias para comunicar a realidade da situação do personagem.[xliii]
Na peça The Man Who, eu fazia o papel de um paciente que tinha perdido a percepção do lado esquerdo do corpo. Numa cena os médicos lhe pediram que se barbeasse inteiramente, de modo cuidadoso, em frente ao espelho. Então ele o fez. Mas como não tinha percepção do lado esquerdo, se barbeou apenas do lado direito do rosto. Estava absolutamente convencido de que tinha se barbeado inteiramente. Durante o teste ele tinha sido filmado em vídeo. Os médicos então pediram que se virasse e se olhasse no monitor do vídeo. Enquanto no reflexo do espelho o lado esquerdo do paciente aparecia à sua esquerda, na tela do vídeo ele aparecia à sua direita, e então ele pôde ver que metade de seu rosto ainda estava coberto de espuma. Naquele momento ele compreendeu que seu cérebro estava danificado. Em termos de palco, eu tinha de olhar para a tela do vídeo e de volta para o espelho três vezes, para comparar as duas imagens no meu rosto. Cada virada repetida de cabeça tinha de desenvolver a situação. A primeira vez que o homem se virou foi quando o médico pediu que olhasse para a tela do vídeo. Então eu simplesmente girava minha cabeça. A segunda vez, como o homem não compreendia o que tinha visto, era preciso verificar a imagem na tela. Para criar o desenvolvimento apropriado, mudei o andamento cada vez que mudava a posição da cabeça. Parece mecânico, mas, na verdade, cada vez que interpretei isso, percebi que sentia uma genuína tristeza. Não sei por quê. Eu não estava procurando pela emoção. Mas por causa do ritmo e da conexão interna, percebi que algumas lágrimas escorriam no meu rosto. De fato, o todo da minha interpretação fora construído através de detalhes físicos minúsculos: virar para a tela num “certo” andamento; depois parar um pouquinho no meio; inclinar a cabeça muito ligeiramente para a direita... e a emoção surgiu. Como ator, se eu procurar primeiro pela emoção, tenderei ao pânico. Posso pensar: “Ontem, senti uma tristeza genuína. Então, hoje, eu tenho de achar a mesma tristeza novamente.” Mas quando tento pensar “estou me sentindo triste”, a tristeza nunca vem. É extremamente difícil repetir a mesma emoção uma atrás da outra. Corre-se um grande risco quando se depende das próprias emoções como base para reproduzir uma cena num espetáculo que deve ficar muito tempo em cartaz. Por outro lado, podem-se repetir os detalhes do corpo exatamente do mesmo jeito todos os dias. Trabalhar com as formas físicas é muito útil aos atores.[xliv]
Podemos inferir que Oida, por ser um ator de grande experiência, conhece o Sistema de Stanislavski, mas não é um seguidor de tal. Entretanto, pode-se dizer que este depoimento é uma clara aplicação intuitiva e pessoal de elementos do Método das Ações Físicas e da Análise Ativa de Stanislavski.

Yoshi Oida - foto internet

4. Considerações finais

Feitas as análises necessárias, pode-se inferir agora que, do ponto de vista da metodologia de criação, da linguagem adotada em seus relatos de estudo e da estética teatral, as buscas de Stanislavski e Brook caminham para alvos distintos. Entretanto, apesar destas abordagens diferenciadas, existe um ponto que ambos sublinham talvez como a principal preocupação do trabalho do ator: a representação tem que ter “vida” e se comunicar verdadeiramente com o espectador. Independente da ação cênica passar ao nível do realismo ou não, tanto o diretor russo quanto o inglês concordam que a principal obrigação do ator é tornar-se interessante ao espectador, isto é, convencê-lo da realidade ficcional apresentada – realista ou baseada em convenções – e manter seu interesse na representação. Do ponto de vista da representação, ambos, provavelmente, estavam referindo-se ao mesmo nível de qualidade de expressão cênica quando falavam de uma representação sincera e verdadeira. Portanto a diferença entre a concepção de verdade teatral de cada um está mais nos procedimentos metodológicos adotados, na opção estética e na linguagem utilizada para expressar-se sobre um determinado tema, do que na qualidade de expressão cênica exigida de seus atores. Stanislavski propõe um sistema para isto, já Brook não acredita em métodos fixos e verdades absolutas, mas o elemento humano que emerge da interpretação é o alvo central da busca dos dois encenadores. Stanislavski tentou trazer de volta a humanidade ao teatro e Brook “reafirmou o humano como força maior do ato teatral”, mesmo que cada qual a sua maneira maneira[xlv].
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[i] Mestre em Artes pela Universidade Estadual de Campinas (martha@gmail.com)
[ii] Professor Dr. Livre-Docente do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (elobosilva@yahoo.com.br)
[iii] BROOK, A porta aberta.
[iv] GUINSBURG, Stanislavski, Meierhold & cia., p. 302.
[v] ROUBINE, A linguagem da encenação teatral, p. 173.
[vi] STANISLAVSKY, A preparação do ator.
[vii] STANISLAVSKY, op. cit., p. 64.
[viii] KUSNET, Ator e método, p.29.
[ix] STANISLAVSKY. A criação de um papel.
[x] TOPORKOV, Stanislávsky alle prove. Gli ultimi anni. Apud BONFITTO, M. O ator compositor: as ações físicas como eixo: de Stanislavsky a Barba, p. 25.
[xi] STANISLAVSKY, A criação de um papel, p. 163.
[xii] STANISLAVSKY, loc. cit.
[xiii] STANISLAVSKY, A preparação do ator, p. 39
[xiv] GUINSBURG, Stanislavski, Meierhold & cia., p.4
[xv] Ibid., p.6
[xvi] BROOK, A porta aberta, p. 10.
[xvii] Ibid., p.26.
[xviii] LEITE, Estudo das considerações de Peter Brook sobre o trabalho do ator.
[xix] Em Fios do Tempo fi ca clara a infl uência das idéias espirituais de George Ivanovitch Gurdjieff na vida e, conseqüentemente, no trabalho de Peter Brook. Portanto todas essas questões estão ligadas ao conceito de verdade relacionado à ciência-esotérica de Gurdjieff. (BROOK, Fios do Tempo.).
[xx] LEITE, Estudo das considerações de Peter Brook sobre o trabalho do ator.
[xxi] BONFITTO, O ator compositor: as ações físicas como eixo: de Stanislavsky a Barba, p. 121.
[xxii] Ibid., p.122.
[xxiii] BROOK, Em Busca de uma Fome.
[xxiv] LEITE, Estudo das considerações de Peter Brook sobre o trabalho do ator.
[xxv] BROOK, A porta aberta, p.20.
[xxvi] OIDA, Um ator errante.
[xxvii] Entrevista com o ator Yoshi Oida concedida à pesquisa de Iniciação Científica Estudo das Considerações de Peter Brook sobre o Trabalho do Ator (LEITE, 2002). Entrevistadores: Martha Leite e Matteo Bonfitto.
[xxviii] LEITE, Estudo das considerações de Peter Brook sobre o trabalho do ator.
[xxix] ROOSE-EVANS, Peter Brook and Marat/Sade: Workshop e Production.
[xxx] Cf. Entrevista (LEITE, 2002).
[xxxi] BROOK, O teatro e seu espaço.
[xxxii] Para saber mais sobre o trabalho de Gurdjieff e sobre a sua concepção de verdade, consulte seu livro Views from the world, capítulo “Glimpses of Truth”.
[xxxiii] BROOK, Fios do tempo.
[xxxiv] BROOK, O ponto de mutação
[xxxv] BROOK, O ponto de mutação.
[xxxvi] BROOK, O teatro e seu espaço
[xxxvii] BROOK, O ponto de mutação, p.68.
[xxxviii] STANISLAVSKY, A criação de um papel, p. 219.
[xxxix] Ibid.
[xl] KUSNET, Ator e método.
[xli] Ibid., p. 98
[xlii] Ibid., p. 100
[xliii] OIDA, O ator invisível, p. 85
[xliv] Ibid., p. 98
[xlv] EICHENBERG, O espaço vazio: entrevista com Peter Brook, p. 71-80.