sexta-feira, 25 de setembro de 2015

LA BELLA POLENTA - O Processo

La Bella Polenta – Ideia e Processo

por Claudia Venturi


Nosso Cartaz, na versão com ficha técnica,
belamente elaborado por Paulo Wolf.

Muitas vezes ficamos curiosos para compreender de onde surgiu uma ideia, como foi determinado processo de montagem e assim por diante.

O Círculo Artístico Teodora apresentará três de seus espetáculos no mês de outubro – dois antigos e uma estreia – então resolvemos aproveitar a ocasião para falar sobre os processos de montagem, iniciando por LA BELLA POLENTA.


Cristina Lopes - Foto de Paulo Wolf - 2013
A ideia do espetáculo surgiu com Cristina Lopes, ainda em 2010, que entrou em contato comigo. Começamos a amadurecer a ideia e, juntas, criamos essa deliciosa aventura Ítalo Brasileira, que estreiou 3 anos após o primeiro contato.

Cristina, narradora oral que trabalhou muito pelos palcos do Brasil, também como atriz e bonequeira, lembra com carinho como teve a ideia que deu origem a esse encontro bi cultural:

Então, por uma surpresa do destino, encontrei uma moça que tinha chegado da Itália recentemente e pensei nas lindas historias recolhidas pelo grande escritor Italo Calvino, contos estes que me encantavam há muito tempo... Na hora me veio a vontade de criar um espetáculo bilíngue que pudesse viajar por muitos lugares, recuperando vínculos e memórias. De repente a moça que encontrei, grande atriz talentosa, pensou que poderíamos viajar também no tempo...”

Claudia Venturi - Foto Paulo Wolf - 2013
No momento eu tinha recém retornado da Itália, país no qual estudei e residi por dois anos, e estava me readaptando ao ritmo cultural da cidade. Conheci Cristina em um projeto de oficinas de arte no interior do estado, promovido pela Fundação Catarinense de Cultura e tivemos oportunidade de conversar bastante, entre uma viagem e outra. A proposta era a de criar um espetáculo que unisse duas linguagens – as narrativas orais e o teatro, mas também dois idiomas – o Português e o Italiano. Como eu já possuia mais de vinte anos de experiência teatral e alguns pequenos textos escritos, resolvi aceitar o desafio e nos colocamos a trabalhar.

Cristina estudou o livro “Fábulas Italianas”, de Ítalo Calvino e propôs alguns contos. Nesse momento apareceu a nossa primeira divergência: ela preferia trabalhar com crianças e eu com adolescentes e adultos. Após muitas conversas chegamos a conclusão de que um espetáculo bilíngue seria um pouco difícil para crianças pequenas, então escolhemos dois contos do livro e criamos um roteiro infanto-juvenil que, na verdade, é uma diversão para todas as idades.

Com os textos escolhidos começamos a pensar em como faríamos para ligar as narrativas em um mesmo contexto. Sabíamos que uma personagem seria brasileira e a outra italiana, dessa forma as perguntas seriam: aonde e em que situação essas duas pessoas se encontrariam? A resposta veio logo: no navio que trouxe os imigrantes! E nesse momento surgiu uma grande ideia, a de unir mais duas linguagens: dois períodos históricos – a imigrante de 1875 e a turista dos dias atuais.

Eu criei o roteiro base, a estrutura do texto, e começamos a ensaiar. A cada ensaio Cristina trazia uma proposta nova, uma reflexão e uma piada ou brincadeira. Dessa forma o roteiro foi se modificando, incrementando, enriquecendo com as ideias e inspirações de ambas as atrizes.

Cristina Lopes e Claudia Venturi, em nossa estreia na sede do
 Círculo Artístico Teodora, no Campeche - Florianópolis.
- foto de Sergio Aspar - 2013
Quando a estrutura estava encaminhada, chamamos a atriz Margarida Baird para dirigir o espetáculo. Margarida foi a minha primeira professora de teatro, lá nos anos 1980, e também dirigiu os meus primeiros espetáculos teatrais. Atualmente, após muitas indas e vindas, ainda trabalhamos juntas na diretoria do Círculo Artístico Teodora. Quanto ao Paulo Wolf, ele fazia parte da equipe operacional do grupo e estava sempre por perto, dessa forma acompanhou o processo desde o início, conquistando o posto de Assistente de Direção, além de ser o técnico do espetáculo e fazer toda a parte de criação gráfica. Os dois juntos ajudaram a limpar e organizar as cenas, fazendo com que nascesse esse belo espetáculo de um grande trabalho em equipe. Até mesmo o cenário, em todas as suas versões, foi resultado dessa múltipla colaboração.

Na ideia original gostaríamos também de unir vários sentidos que normalmente não são utilizados no teatro, como o olfato e o paladar. Queríamos que, a um certo momento, o público sentisse o aroma do café sendo preparado. Infelizmente os nossos testes não foram satisfatórios e tivemos que abandonar essa proposta. Mas o paladar... nem me lembro mais de quem foi a ideia de servirmos polenta para o público, no final do espetáculo. Porém fiquei preocupada porque não teríamos tempo para aquecê-la durante a história e polenta fria não seria muito bom. Lembrei-me, então, de que a minha irmã havia comentado de uma amiga que comia polenta doce. Fui direto na fonte e pesquisei receitas italianas de polenta doce. Encontrei uma que parecia interessante, fiz algumas pequenas adaptações para adequá-la ao paladar brasileiro e, felizmente, conseguimos agradar ao público e as nossas expectativas.

Gostaríamos de música e dança. A Cristina propôs uma música do cantorio popular de Florianópolis, Maria vem ver a Lua, e eu me responsabilizei pela dança. Como eu já havia dançado em um grupo de folclore italiano, conhecia algumas danças típicas, como a tarantela. Porém tinha visto, em um clip do cantor Eugenio Bennato, uma dança muito alegre eque eu ainda não conhecia, a pizzica. Pesquisei e encontrei uma canção "salentina" que achei muito legal, Lu Core Meu. Também encontrei uma detalhada aula de pizzica - a dança. Como eu já tinha noções de danças folclóricas italianas, foi fácil começar a desenvolver o treinamento.

Cristina Lopes e Claudia Venturi
- foto Henrique Beling - 2014 - SESC Lages

Para os acabamentos finais escolhemos alguns trechos de músicas antigas que nos foram gentilmente cedidas pelo coral Stelle Alpine, da cidade de Orleans. Os belos figurinos foram idealizados e confeccionados por duas superprofissionais – Fernanda Jacobo e Iony Gabriel Vecchi que, com o apoio da Consenso, loja onde trabalhavam. Mas ainda estreiaríamos em nosso espaço que, na época, ainda não contava com estrutura técnica para a apresentação do espetáculo. Não possuíamos recursos de luz! Neste momento pedimos a ajuda do grande iluminador Ivo Godois que, generosamente, compartilhou e inspirou várias ideias criativas para a nossa luminosa estreia e fez o mapa de luz que utilizamos até hoje.

Estreiamos, ainda inseguras, na sede do Círculo Artístico Teodora, onde nos mantivemos em cartaz todos os domingos de julho e agosto de 2013, com o apoio de familiares e amigos que apareciam nos dias frios e chuvosos daquele inverno, para nos manter fortes e confiantes. E nesse momento ainda recebemos a preciosa colaboração de mais um grande amigo, Sérgio Aspar, que fez todo o registro fotográfico e de vídeo, que utilizamos.

Dois anos após a estreia diversas mudanças aconteceram, tanto na estrutura do espetáculo quanto no cenário. Viajamos por muitas cidades do estado e apresentamos para públicos de seis a noventa anos, tendo uma aceitação particularmente boa entre pessoas de origem italiana.

Versão atual do cenário - foto de Henrique Beling

LA BELLA POLENTA vai apresentar no dia 20 de outubro, às 14h30, na Casa Vermelha e no dia 22 de outubro, na mesma hora, em nossa sede no Campeche, pela mostra paralela que será realizada junto ao Floripa Teatro - Festival Isnard Azevedo. 

Confira abaixo o endereço dos espaços:

Círculo Artístico Teodora – Servidão Cravo Branco, 236 – Campeche – Florianópolis SC – Telefone (48) 3304-0966


Casa Vermelha - Rua Conselheiro Mafra, 590. Centro – Florianópolis SC - Telefone (48) 3209.8312



sexta-feira, 18 de setembro de 2015

O TREINAMENTO, UM ANTEPARO


J. R. Faleiro no espetáculo URANO QUER MUDAR,
montagem do Círculo Artístico Teodora

Nesta semana o Círculo publica um texto do Farid Paya sobre o treinamento do ator, traduzido pelo nosso querido colega José Ronaldo Faleiro. 

Farid Paya é um dramaturgo e diretor francês, de origem iraniana, por parte de pai. 
Paya fala sobre a necessidade do treinamento do ator e descontroe a ideia de um trabalho baseado apenas na inspiração e no "dom".
Faleiro é Professor, Doutor, Pesquisador no Departamento de Artes Cênicas do Ceart/Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina) e em seu Programa de Pós-Graduação, atualmente empreende uma pesquisa sobre Jacques Copeau, de cuja obra é tradutor. Participa da linha de pesquisa Linguagens Poéticas. Está interessado nas questões referentes à formação ator, principalmente dos inícios do século XX até os dias de hoje, e na tradução de textos de referência sobre o ator.



O Treinamento, um anteparo

Tradução de José Ronaldo Faleiro

Farid Paya dirige o Théâtre du Lierre [Teatro da Hera], fundado por ele em 1980, no 13º distrito de Paris. A identidade artística do local se baseia na idéia de uma aproximação das escritas dramáticas e musicais contemporâneas. Palavra, canto, música, dança se interpenetram em ciclos monumentais como a tetralogia Le Sang des Labdacides [O Sangue dos Labdacidas]. Recompensada com vários prêmios, esse afresco edipiano demonstrou todo o interesse das técnicas vocais desenvolvidas no Théâtre du Lierre [Teatro da Hera].

"Não há ato artístico sem consciência artística."

Farid Paya


Os teatros tradicionais do Oriente são codificados. O ator deve adquirir os códigos físicos que se ligam a um estilo de interpretação. Assim, um ator nô começará a sua aprendizagem com a idade de sete anos. Como o músico, vai precisar praticar um treinamento rigoroso para chegar ao domínio da sua arte. Esse treinamento é físico, pois o instrumento do ator é o seu organismo, quer dizer: a sua própria pessoa, na melhor relação corpo-espírito. Portanto, as primeiras perguntas a formular em matéria de treinamento são as do conhecimento do organismo e da sua utilização. No Ocidente, várias idéias impedem a abordagem corporal do trabalho do ator.

A modernidade estilhaçou os estilos de interpretação. O ator sabe que terá de se submeter a demandas muito contraditórias vindas de encenadores diversos. Ora, o treinamento não é necessariamente neutro. Ele vai levar a um estilo reconhecível. O ator pode ter medo de já não poder se amalgamar com outros estilos.

A sociedade ocidental desvaloriza o corpo. A relação permissiva em relação à nudez não significa, de modo algum, a sua plena aceitação. Os corpos ideais alardeados nas publicidades transmitem uma mensagem sorrateira: o corpo de cada um é feio. Nós todos temos um ódio secreto do nosso corpo; portanto, do corpo do outro. A rejeição da organicidade é ainda mais favorecida por causa disso.

O realismo e o cinema fizeram estragos. Partindo do princípio de que cada um sabe caminhar e falar, parece possível utilizar apenas as aquisições do quotidiano para exercer a arte do ator. Parece inútil compreender melhor o seu organismo para atuar. A partir daí, o ator tem grandes dificuldades em transpor o ato quotidiano para convertê-lo em arte. A ausência de conhecimento do movimento e da sua poética pode levá-lo seja para formalizações abstratas e inorgânicas, seja para o que Jacques Lecoq denuncia ao falar de «rejeu du réel» [re-jogo do real]1, a saber: para uma imitação do que se faz na vida.

Além do mais, o ensino do teatro é essencialmente baseado na interpretação, um procedimento mais intelectual do que orgânico. Acaba por espoliar o ator de seu instrumento de trabalho, o seu corpo. Assim, os atores conhecem pouco ou absolutamente nada de todo o seu organismo e não sabem nem o manter nem o treinar.

Propor um trabalho concreto sobre a matéria do corpo

Para o ator contemporâneo, a dificuldade é saber qual é o treinamento que não o contém num estilo e, ao mesmo tempo, faz com que ele conheça o próprio corpo. Tomemos os exemplos da caminhada e da palavra.

Caminhar não é evidente. O movimento obedece a leis: por exemplo, a da ação e da reação. Para se mover melhor, é preciso conhecer essas leis de um ponto de vista orgânico. A caminhada é uma operação complexa que envolve todo o corpo. Na vida corrente, não caminhamos necessariamente bem. Não é desejável transpor esse defeito para a cena. Pedir a um ator para caminhar num palco tomando consciência dos mecanismos da sua caminhada é sempre uma experiência interessante. Muitas vezes ele se torna desajeitado e parece ter esquecido como caminhar! A caminhada é uma sucessão de estados de equilíbrio e de desequilíbrio. Ela nos põe em relação com o espaço e a sua própria qualidade modula a percepção do espaço no ator e no espectador. É essencial ter consciência, por exemplo, das próprias costas e do espaço produzido atrás de si ao caminhar. Não há ato artístico sem consciência artística. No palco, um ator deve reaprender a caminhar com uma acuidade que não é a do quotidiano. Existem muitas maneiras de caminhar. Os atores orientais sabem disso. A caminhada do fantasma ou a de uma jovem não é a de um guerreiro ou a de um demônio.

Falar também não é evidente. É preciso mobilizar músculos. A voz é antes de tudo músculo: diafragma, cordas vocais, períneo, etc. Pode ser espantoso ver como muitos atores têm um movimento de nojo quando são lembrados disso. Para eles, um ideal desmorona. A voz, essa coisa sublime e imaterial, cai na realidade da matéria. Somos, aqui, confrontados com a atitude «romântica» do ator sem técnica que acredita bem mais na inspiração do que num trabalho concreto sobre a matéria do seu corpo. No entanto, para falar em cena é útil ter consciência dos apoios fundamentais da voz que ficam bem longe da boca: a base no solo, o assoalho pélvico, a saber: a parte mais baixa do abdômen situada entre o sexo e o ânus.

"o ator, como no esportista, o metabolismo é mais ativo"

A caminhada e a palavra se apóiam na respiração. Respirar é um ato essencial. Sem respiração não há vida. O problema é que ao crescer desaprendemos a respirar corretamente. Com isso, reduzimos a nossa potência vital. Nós nos privamos de uma alavanca essencial à execução de atos artísticos aparentemente tão simples quanto caminhar ou falar. A partir desses dois exemplos — caminhada e palavra —, vemos que há todo um trabalho a ser realizado para passar do ato quotidiano ao ato artístico. Assim, é instrutivo e útil trabalhar com o desequilíbrio máximo da caminhada, correr o risco de cair, brincar de já não saber caminhar, refazer um percurso partindo da infância para tomar consciência dos apoios do corpo em movimento, compreender a importância da planta do pé, dos joelhos, da repartição do peso do corpo ao longo da coluna vertebral, da base dos quadris, etc. Trata-se de adequar o espírito e o corpo, o pensamento e o movimento, e isso de modo orgânico. É um erro a dissociação corpo-espírito que as nossas sociedades operaram: cientificamente, o cérebro se comunica por meio do sistema nervoso com o resto do organismo. Existe um vaivém constante entre a atividade corporal e a atividade cerebral. Saber caminhar e saber pensar estão bem mais próximos do que gostaríamos de acreditar.


Construir a emoção com bases orgânicas

O equilíbrio dinâmico do pensamento e do movimento dá ao ator a plena posse dos seus recursos artísticos. A imobilidade é um engodo: tudo se move. O movimento não pode ser concebido sem referência à energia. A matéria e a energia são as duas únicas realidades do universo. Assim, falar da energia do ator não diz respeito a uma metáfora. A energia de um organismo é a soma de várias formas de energia em transmutação permanente: energia calórica (calor), cinética (movimento), elétrica (influxo nervoso), química (combustão dos alimentos), etc. A energia do ator difere da energia de um organismo no quotidiano. Essa qualidade de energia permite «proezas emocionais». Tomemos, por exemplo, as quatro emoções primordiais, violentas e inatas, que se diferenciam no bebê entre os três e os quatro anos. São a cólera, o medo, a alegria e a tristeza. Na criança e no adulto, quando essas emoções são levadas ao paroxismo, provocam movimentos incontrolados e erráticos. Em cena, um ator é levado a usar essas emoções primordiais, mas de maneira estruturada. Como? No ator, como no esportista, o metabolismo é mais ativo: secreções hormonais mais fortes, trocas energéticas mais intensas e múltiplas. Foi demonstrado que quanto mais uma estrutura — no caso, o corpo humano — é a sede de interações energéticas múltiplas, tanto mais ela é dinamicamente estável. Em outras palavras: quanto mais a energia do ator estiver elevada, tanto mais as emoções e as pulsões chegarão a encontrar uma forma estruturada. O ator ainda terá de conseguir dominar essas modificações do metabolismo.

"É indispensável, por exemplo, a consciência dos apoios no solo ou a do diafragma."

O corpo tem zonas em que podemos atuar para produzir estados de energia e de consciência particulares, úteis para a atividade artística. É indispensável, por exemplo, a consciência dos apoios no solo ou a do diafragma. A tradição da ioga indica que existem sete pontos, chamados chakras (do sânscrito «roda»), repartidos ao longo da coluna vertebral e da cabeça, ativando o metabolismo. Esses pontos associam complexos nervosos (espaços de cruzamentos de nervos) e glândulas endócrinas (como a tireóide ou a vesícula biliar). São alavancas energéticas e afetivas. «Toda emoção tem bases orgânicas», dizia Artaud, reclamando uma abordagem científica e poética do corpo. Os chakras são uma resposta. Mas também é preciso se dedicar a conhecê-los, e a se exercitar em ativar quotidianamente essas alavancas afetivas. Isso pode ser uma das bases de um treinamento do ator que evolui e se modula conforme estiver fora de produção, em estado de ensaio, ou em representação. No Lierre [Hera], procuramos técnicas de treinamento em consonância com as leis orgânicas do corpo, que não estejam alienadas em relação a um estilo cultural. Trabalhamos, nestes últimos anos, com seqüências físicas chamadas «protocolos», que envolvem de preferência o que há de universal no corpo humano. Essas seqüências são operatórias, sejam quais forem as origens do ator. Elas estruturam o seu espaço psíquico, físico e emocional.


Aquecer-se, treinar

"O aquecimento é um ato higiênico, assim como escovar os dentes. Trata-se de despertar o corpo, de lhe dar força muscular."

Para além da aprendizagem, existe, portanto, o trabalho, necessário, de manutenção do organismo. O aquecimento é um ato higiênico, assim como escovar os dentes. Trata-se de despertar o corpo, de lhe dar força muscular. É tarefa de cada ator, conforme as necessidades do seu organismo. Em compensação, o treinamento, que alguns chamam de training, é uma atividade física diretamente teatral, pois cada ato deve ser constantemente relacionado com três instâncias: a relação com os outros, com o espaço, e com a emoção. Reside aí um penhor de organicidade e de receptividade. Sem explicar direito, constata-se que tal atitude minimiza muitíssimo os perigos psíquicos e físicos a que o ator se expõe.

Assim, no Lierre, o treinamento não é uma condição prévia separada da produção. Os exercícios praticados no treinamento são usados para ensaiar o espetáculo. Nunca temos em vista um espetáculo sem um treinamento. O treinamento deve estar de acordo com o propósito e a estética do espetáculo. O trabalho do texto nunca começa «à mesa». Ele é imediatamente assumido pelo corpo. A abordagem física permite encarnar o texto com bastante rapidez. De literatura, o texto se torna palavra. É só nesse momento que se discute a encenação. É claro: uma dramaturgia serve de filtro para evitar os contra-sensos. No entanto, os «protocolos» físicos estruturam o corpo do ator, a sua relação com os outros e com o espaço. Na encenação final, muitos movimentos são reabsorvidos. Contudo, graças à memória do corpo, o texto e o jogo conservam o rastro das ações físicas que guiaram o trabalho. É fascinante ver como, no final, a platéia percebe movimento num corpo imóvel. Reside aí algo indizível: o corpo comunica o movimento que o atravessou durante os ensaios. A imobilidade deixa, então, de ser uma atitude congelada.

"É fascinante ver como, no final, a platéia percebe movimento num corpo imóvel. [...] A imobilidade deixa, então, de ser uma atitude congelada."

O treinamento, uma segurança
Quando se procura a incandescência num ator, pede-se que ele corra muitos riscos psíquicos. Assumir plenamente frases como «já não ser», na última tirada de Édipo Rei, não é um ato neutro. Também se pede que ele corra riscos físicos, por exemplo, colocando a voz entre canto e palavra. A voz precisa segurar: não deve fraquejar. Tudo isso requer um domínio dos instrumentos psíquicos e físicos. Se há frases que nos levam rumo a abismos de nós mesmos, há também posturas do corpo que despertam uma memória arcaica muito perturbadora. Lembro de uma atriz que, durante um estágio, se debulhou em lágrimas ao tomar consciência da retidão da sua coluna vertebral. Lágrimas de alegria, por certo, mas associadas a uma grande reviravolta: uma nova tomada de consciência do seu organismo. O corpo e o espírito devem suportar receber tais estímulos sem que o ator seja posto em perigo. Diante do perigo do papel, existe o ator que recusa se envolver e se torna enfadonho, mas existe também aquele que investe de cabeça baixa e se machuca. 

O treinamento é uma segurança. Digo repetidas vezes aos atores: «Vão até o cume do Mont Blanc, mas nunca esqueçam dos calçados, dos anoraques, e das cordas. Sem isso, é morte certa!»
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1 «Rejeu»: Jacques Lecoq foi um leitor de Marcel Jousse. Para este, existe uma diferença entre imitação e mimismo. O animal imita; só o ser humano é capaz de mimar. O mimismo é uma atividade humana espontânea. — « (...) a criança que olha o trem passar (...) imita espontaneamente o movimento e o som do trem.(...) Uma criança visita um castelo; de volta a casa, constrói um castelo com seus cubos de armar (...) se uma criança estiver doente e tiver de absorver remédios, vai procurar a sua boneca: esta também deverá ingerir remédios. Em todos esses casos, a criança vive uma situação e a reproduz de um modo ou de outro sem que ninguém lhe tenha pedido para fazer isso. — Vemos, à luz desses exemplos, que o mimismo compreende duas fases: uma fase que Jousse chama de a intussepção (de suscipio, receber, e dentro), que é a fase da gravação; e uma fase de rejeu [re-jogo, reinterpretação], pois o que é gravado ou intussuscepcionado tende a ser reproduzido, refeito, expresso: rejoué [re-jogado, re-apresentado, representado]» (FROMENT, Marie-Françoise. L´enfant-mimeur. L´anthropologie de Marcel Jousse et la pédagogie [A criança-que-mima. A Antropologia de Marcel Jousse e a Pedagogia]. Paris: Épi, 1978. p. 25. — Nota de JRF.



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PAYA, Farid. «L´entraînement, un garde-fou» [O Treinamento, um anteparo], p. 151-159, in MÜLLER, Carol (coord.). Le Training de l´acteur [O Treinamento do ator]. Paris/Arles: Conservatoire National Supérieur d´Art Dramatic (CNSAD)/Actes Sud, 2000. — Tradução de José Ronaldo FALEIRO.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

CINEMA DO EXÍLIO

Nesta semana o Círculo Artístico Teodora faz um tour pelo mundo do cinema e traz para vocês uma entrevista realizada no rio de Janeiro e publicada na Revista Portuguesa da Imagem em Movimento, neste ano.

Cinema do exílio Entrevista 

com Luiz Alberto Sanz e Lars Säfström 

por Anita Leandro[i]

Lars Olof Säfström, diretor e produtor sueco. 

 Essa entrevista foi realizada no Rio de Janeiro, em 8 de dezembro de 2014, quando o cineasta, produtor e distribuidor sueco Lars Säfström, depois de uma longa ausência, retornou ao Brasil para rever seu amigo e parceiro, o cineasta brasileiro Luiz Alberto Sanz. Um dos 70 presos trocados pelo embaixador suíço Giovanni Bucher em 14 de janeiro de 1971, Luiz Alberto Sanz, como vários outros exilados, teve que deixar o Chile em 1973, depois do golpe que derrubou o presidente Allende. Sanz pediu refúgio na Suécia e, em Estocolmo, associou-se à Film Centrum, cooperativa de produção, realização e distribuição de filmes independentes, criada em 1968 por Lars Säfström e outros cineastas suecos. Sanz foi contratado como técnico cinematográfico, para trabalhar na revisão, manutenção, envio e recebimento das cópias dos filmes distribuídos pela cooperativa. Dessa parceria nasceram vários filmes em solidariedade à resistência à ditadura brasileira, alguns deles distribuídos na Suécia, mas que nunca foram lançados comercialmente no Brasil. Dessa produção faz parte 76 anos, Gregório Bezerra, comunista (1978, 30 minutos), importante testemunho do combatente comunista pernambucano. De passagem por Estocolmo, Gregório Bezerra conta para Lars e Sanz a sua história, desde a luta contra a ditadura de Getúlio Vargas até os suplícios medievais que sofreu após o golpe militar de 1964, quando foi espancado com um cano de ferro pelo coronel do Exército Darcy Villocq, queimado com ácido, amarrado pelo pescoço e arrastado pelas ruas de Recife.
Outro filme importante dessa parceria, Quando chegar o momento (Dora), documentário de 65 minutos, realizado por Sanz e Säfström entre 1976 e 1978, acaba de ser legendado em português, no âmbito de um projeto universitário2[ii] . O filme reconstitui a trajetória da militante Maria Auxiliadora Lara Barcellos (Dora), desde Minas Gerais, onde nasceu, até o suicídio dela na Alemanha, onde encontrava-se exilada, sem documentos, sob controle policial e com interdição de sair de Berlim Ocidental. A partir da morte de Dora, três anos antes da anistia, o filme, com narração e roteiro de Reinaldo Guarany e Luiz Alberto Sanz, fala das condições de vida dos refugiados brasileiros na Europa, em particular as mulheres.

Luiz Alberto Barreto Leite Sanz, na foto com Anita Leandro
Luiz Alberto Sanz, carioca, é servidor público aposentado e jornalista anistiado. Trabalhou como crítico teatral e cinematográfico, repórter, redator, cineasta, diretor de espetáculos, estivador, arrumador de cargas, arquivista de filmes e professor universitário, entre outros ofícios. Em maio de 1970, quando militava na Vanguarda Popular Revolucionária, foi preso e torturado pela Operação Bandeirantes. Banido do território nacional, viveu no Chile e na Suécia, retornando ao Brasil em dezembro de 1979, depois da anistia. Além dos filmes acima citados, realizou, em parceria com Pedro Chaskel, Não é hora de chorar (Chile, 1971, 31 minutos), documentário em que cinco de seus companheiros de exílio, entre eles Maria Auxiliadora Lara Barcellos, falam sobre a resistência e a tortura no Brasil. Não é hora de chorar constitui-se, hoje, num documento histórico da maior importância sobre a ditadura. Trechos da entrevista de Dora nesse filme foram recentemente utilizados em dois documentários brasileiros sobre o período militar: 70 (Emília Silveira, 2013, 96 minutos) e Retratos de identificação (Anita Leandro, 2014, 72 minutos). Em parceria com Sérgio Sanz, seu irmão, Luiz Alberto Sanz coordenou a pesquisa e roteirizou o filme Soldado de Deus (Sérgio Sanz, Brasil, 2003). Lars Säfström e Luiz Alberto Sanz não se viam há exatamente 34 anos, quando rodaram juntos, em São Paulo, um último filme, Vasos Comunicantes (1980), até hoje inédito no Brasil e na Suécia.

Anita Leandro: Como vocês se conheceram? Quais foram as circunstâncias políticas e históricas desse encontro?
Lars Säfström: Luiz Alberto acabara de chegar a Estocolmo como refugiado, vindo do Chile, e começou a trabalhar numa organização criada para a distribuição de filmes independentes, principalmente documentários, a Film Centrum, que ainda existe e da qual sou membro fundador. Em 1970, ainda se trabalhava com cópias em 16 milímetros. Era preciso enviar os filmes pelos correios e buscá-los também lá, fazer o controle das cópias... Luiz Alberto trabalhava com isso, quando nos conhecemos, e nós avaliamos a possibilidade de fazer um filme juntos. Ele já havia feito um filme no Chile, Não é hora de chorar, de que eu gostava. Um dia, Luiz Alberto teve a ideia de fazer um filme sobre os refugiados brasileiros na Europa, com ênfase na história de uma jovem, Dora, que havia se suicidado em Berlim em junho de 1976. Nós começamos a fazer esse filme, buscamos o apoio da televisão sueca e firmamos um acordo com a emissora. Luiz Alberto escreveu o roteiro desse documentário com Reinaldo Guarany, companheiro de Dora, e nós fizemos uma grande pesquisa de campo para poder contar não apenas a história dela, mas também a do Brasil contemporâneo: como era o país antes do golpe militar e como se deu a história da resistência à ditadura. Encontramos muito material de arquivo na Suécia e tivemos também a ajuda do grande cineasta norte-americano Haskell Wexler, que havia feito um filme no Chile, no início dos anos 70, no qual há varias sequências com Dora.[iii] É um filme que explica os engajamentos sociais de Dora. Ela estava concluindo medicina psiquiátrica e trabalhava com os pobres em Santiago. Depois do golpe no Chile, em 1973, todos os refugiados brasileiros foram obrigados a fugir para diferentes países, a maioria para a Argentina. Luiz Alberto foi para a Suécia, mas Dora e Reinaldo fugiram para Bélgica e França e, de lá, para a Alemanha, em Berlim Ocidental, onde foram pegos. Podemos dizer isso: eles foram pegos. Era uma situação frustrante para eles e que levou rapidamente ao suicídio de Dora num metrô de Berlim.
Leandro: Vocês se encontraram em que ano, exatamente?
Luiz Alberto Sanz: 1975. Eu já vivia em Estocolmo desde o início de 1974, mas só comecei a trabalhar em Film Centrum no final de 1975. Eu tinha a esperança de viver em Portugal, depois do movimento revolucionário. Como tinha contatos com o Instituto de Cinema Português, iria trabalhar lá, mas no dia 25 de novembro de 1975 houve um golpe militar em Portugal e eu fiquei na Suécia. Surgiu, então, a possibilidade de trabalhar em Film Centrum, uma cooperativa de cineastas, e eu comecei em dezembro daquele ano. Em 1974, eu havia estudado na Universidade de Estocolmo e aprendido o sueco. Em 1976, um amigo meu, companheiro meu de banimento, que havia sido expulso comigo, cunhado do Guarany, o Jaime Walvitz Cardoso, me procurou e deu a notícia de que a Dora havia se suicidado. Acho que foi mulher dele, a Lillian, que falou comigo. O Jaime insistiu para que eu fizesse um filme sobre a Dora. Eu expliquei que não tinha a menor condição de fazer um filme, mas que trabalhava numa cooperativa de cineastas e iria buscar alguém que pudesse fazê-lo. E comecei a falar com as pessoas de Film Centrum. Lars se interessou. Lars e Staffan Lindqvist, com quem ele tinha uma produtora. Mas Lars disse pra mim: “Vamos fazê-lo juntos”. Foi mais ou menos o que tinha acontecido no Chile com Não é hora de chorar, quando o Pedro Chaskell quis fazer um filme sobre os exilados brasileiros e convidou-me para que eu o fizesse junto com ele.
Lars e eu começamos a elaborar um projeto. A família conseguiu de Olof Palme, primeiro ministro da Suécia naquele momento, uma declaração de que, se Reinaldo Guarany desembarcasse em território sueco, receberia asilo. Ele não queria mais viver em Berlim. Depois da morte da Dora, saiu o asilo político para todos os brasileiros na Alemanha, mas ele recusou. A família conseguiu, então, trazê-lo para Estocolmo. E eu pedi que ele escrevesse um argumento, uma base para que nós pudéssemos fazer o filme. Nesse meio tempo, o Lars conseguiu com a TV sueca um financiamento para a pesquisa inicial. Reinaldo ainda não tinha chegado a Estocolmo quando conseguimos o financiamento para a pré-produção do filme.
Leandro: Isso foi no final de 1976, logo depois da morte da Dora...
Sanz: Sim. Começamos a preparação no inverno de 1976. Aí Lars e eu viajamos para Berlim, Bochum, Paris e Colônia. Conversamos com um monte de gente, preparando as filmagens. Reinaldo ficou na Suécia.
Säfström: Luiz Alberto e eu fizemos a viagem de pesquisa para visitar os lugares e falar com as pessoas que poderiam nos ajudar a fazer o filme. As filmagens foram na primavera de 1977, com o diretor de fotografia Staffan Lindqvist, o operador de som chileno Leonardo Céspedes, que havia trabalhado em Não é hora de chorar, e a produtora Bettan von Horn. Era uma pequena equipe de cinco pessoas. Nós alugamos um micro-ônibus e começamos a filmagem de trás pra frente, primeiro em Berlim, onde a Dora estudava medicina e se matou, depois em Bochum, onde ela aprendera alemão, e, por fim, em Paris, de onde ela e Reinaldo Guarany haviam saído em 1974, rumo à Alemanha.

"Quando tínhamos financiamento da televisão, utilizávamos esses meios para fazer outros filmes. Era um truque de cineasta subversivo. Fizemos coisas para as quais, de outra forma, ninguém teria dado dinheiro."
Leandro: É a mesma equipe com a qual vocês fizeram o Gregório Bezerra?
Säfström: Praticamente: Luiz Alberto, Staffan, Bettan, Leonardo e eu. Gregório foi mais simples. Foi apenas uma entrevista que lhe fizemos, quando Gregório visitou a Suécia. Quando foi?
 Sanz: Em 1977. Ele veio para uma comemoração do aniversário do Partido Comunista Brasileiro, em novembro. Nevava.
Säfström: Era exótico para os brasileiros.
Leandro: É um filme interessante, nesse sentido: Gregório Bezerra, com seu sotaque do Nordeste, um homem enraizado, totalmente brasileiro no seu jeito de falar, digno, altivo, rodeado de jovens, no meio dessa Europa coberta de neve...
Säfström: Ele fala do Brasil de antes da guerra, dos anos 30...
Sanz: De antes da guerra, depois da guerra e do futuro também. Ele imagina o que se passará no Brasil no futuro.
Säfström: Você se lembra dessa imagem dos anos 30 que encontramos nos arquivos da televisão sueca? Foi maravilhoso. Os arquivos da TV sueca são um tesouro. Há muitos filmes antigos de atualidades, filmes de antes da televisão. São cinejornais mostrados em salas. Eles guardaram tudo. São mais de trezentos filmes.
Leandro: É desses arquivos que vêm as imagens retomadas na montagem de Gregório Bezerra?
Sanz: Com exceção das fotografias, todas as imagens de arquivo do Gregório Bezerra vieram da TV sueca, inclusive as cenas de um filme do Ruy Santos, chamado Minas Gerais, feito para o DIP nos anos 40[iv] . Esse organismo governamental acabou em 1945 e, ao que tudo indica, o filme não existe mais no Brasil. Pelo menos, ele não figura na filmografia de Ruy Santos, nas listas de filmes estabelecidas pelos arquivos brasileiros. Os pesquisadores que investigam a obra de Ruy Santos desconhecem esse filme.
Säfström: E porque o filme existe nos arquivos da televisão sueca?
Sanz: Eu creio que eles estão lá porque o governo brasileiro havia distribuído cópias às embaixadas, para fazer propaganda...
Säfström: E a embaixada deu o filme para a televisão... ou para uma companhia de filme, pois isso aconteceu antes da criação da televisão. A velha companhia de produção sueca doou à televisão os seus arquivos, tudo o que não era ficção, todo o material de cine jornais, atualidades. Os filmes de ficção foram doados à Cinemateca, que não existia antes de 1973, eu acho. Ou seja, o único arquivo, na época, era o da televisão. Depois, criou-se a Cinemateca Sueca. Hoje eles têm o filme de Ruy Santos.
Sanz: É o que eu penso.
Leandro: E as imagens de Ruy Santos estão no Gregório Bezerra?
Sanz: Sim. Mas também estão no filme da Dora.
Säfström: Eu ainda tenho o material no meu porão, em Estocolmo. Eu vou ver se ainda tenho esse filme. Se eu tiver essa cópia, eu posso digitalizá-lo e enviá-lo pra vocês.
Leandro: Em 35 mm? Você tem, talvez, a única cópia do mundo. Você poderia doá-la à Cinemateca Brasileira... Seria uma bela doação.
Säfström: Caso a cópia exista...
Sanz: É possível que haja uma cópia no Brasil, mas que não foi catalogada... Nossos arquivos não são muito bons...
 Leandro: Voltemos ao filme da Dora. Vocês filmaram e, depois, fizeram a montagem juntos também?

"...o Film Centrum era também uma organização política. Nós distribuíamos filmes importantes para a transformação da sociedade, que provocavam o debate político..."
Säfström: Não muito, porque eu estava mais preocupado em obter a transmissão do filme pela televisão, em horário nobre. Nessa época, havia dois canais de televisão e esse filme passou no canal principal, às 8 horas da noite, o melhor horário.
Sanz: O melhor Ibope, digamos assim, foi nosso. O Canal 2 apresentou uma importante peça de teatro feminista, no mesmo horário, mas o público preferiu assistir a um filme sobre uma mulher estrangeira, que se matou em Berlim por razões políticas e emocionais. O Canal 2 havia feito uma propaganda muito grande pelo fato de ser uma peça feminista. O público estava cansado daquelas coisas muito marcadas politicamente, mas acabou vendo algo ainda mais político.
Leandro: Lars, de onde vem o seu interesse, na época, pelo que acontecia no Brasil?
Säfström: Foi graças ao encontro com as pessoas exiladas, com o Luiz Alberto... Eu era muito engajado e o Film Centrum era também uma organização política. Nós distribuíamos filmes importantes para a transformação da sociedade, que provocavam o debate político...
Leandro: Era esse o objetivo do Film Centrum?
Säfström: Sim. Nós tínhamos também filmes da América Latina, do Chile, Argentina – por exemplo, Fernando Solanas (La hora de los Hornos, 1968), filmes de Patricio Guzmán, filmes cubanos e também filmes sobre a luta no Vietnã. Tivemos filmes do Arquivo Nacional de Cinema do Vietnã do Norte que, depois da guerra, voltou para Saigon. Para nós, o interesse era a luta política no terceiro mundo.

"Hoje, Film Centrum tornou-se menos político e está mais ligado ao meio ambiente, com distribuição voltada, majoritariamente, para instituições e organizações."
Leandro: Havia quantos cineastas nessa cooperativa?
Säfström: Muitos. Pode-se dizer que todos os documentaristas suecos eram membros dessa organização nos anos 70.
Sanz: Nós tínhamos, inclusive, um filme do Bergman.
Säfström: Nós tínhamos uma revista, da qual eu era editor, e na qual nós escrevemos coisas desfavoráveis sobre um amigo de Ingmar Bergman, Harry Schein, chefe do Svenska Filminstitut (Instituto Sueco de Cinema). Bergman enviou-nos um telegrama colérico, que começa assim: “Cães do inferno, quero todos os meus filmes de volta”. Eu acho que depois ele se arrependeu dessa reação infantil. Ele era membro de nossa cooperativa.
Sanz: Até ele era membro.
Säfström: Ele fez filmes documentários sobre a ilha onde morava, no meio do Mar Báltico, uma espécie de documentário social sobre a situação dos pescadores locais.
Leandro: Voltemos à produção latino-americana...
Säfström: Havia cineastas suecos que partiam para o Uruguai, Peru, Chile, para fazer filmes sobre a resistência. Era uma forma de tornar conhecida, na Suécia, a situação na América Latina.
Leandro: Em que ano foi criado o Film Centrum?
Säfström: Em 1968. A cooperativa nasceu no meio do movimento de 68. Hoje, Film Centrum tornou-se menos político e está mais ligado ao meio ambiente, com distribuição voltada, majoritariamente, para instituições e organizações. Em 1973, criamos também uma sala de exibição, chamada Folkets Bio (Cinema do Povo). Para obter o apoio do Instituto Sueco de Cinema era preciso ter uma distribuição em salas de cinema. Começamos com uma sala, mas um ano depois já havia uma sala em Gotemburgo e em outras cidades. Hoje, há seis ou sete salas. Em 1977, nós passamos a comprar filmes estrangeiros em Cannes e outros grandes festivais, adquirindo filmes que não tinham distribuição nos canais comerciais. Isso foi muito importante, pois divulgamos vários cineastas de documentário e ficção junto ao público sueco. E nós trabalhamos também em colaboração com a televisão: ela comprava os filmes, nós os projetávamos em sala e, oito meses depois, o filme passava na televisão.
Sanz: Film Centrum foi pioneiro na distribuição de vídeo na Suécia.
Leandro: Voltemos a Dora e Gregório. Esses dois filmes foram distribuídos na Suécia?
Säfström: Gregório era um filme totalmente independente, que não tinha por objetivo a distribuição, mas o registro histórico. Quando tínhamos financiamento da televisão, utilizávamos esses meios para fazer outros filmes. Era um truque de cineasta subversivo. Fizemos coisas para as quais, de outra forma, ninguém teria dado dinheiro. Mas era importante constituir uma documentação. É bem provável que Gregório Bezerra seja, hoje, um filme mais importante do que ele foi nos anos 1970.
Sanz: Durante os debates da “Mostra Arquivos da ditadura”, em setembro desse ano, no Rio, eu disse ao público que pensei Gregório Bezerra como um filme para os meus filhos; hoje é para os meus netos. Ele foi pensado como um filme de arquivo, para o futuro[v] .


Säfström: Alguns filmes são mais importantes como documentos do que como filme mesmo. Gregório pode não ser um grande filme, mas é um documento importante.
Sanz: Cosme Alves Neto, que era o curador da Cinemateca do Rio, disse em Leipzig: “Gregório é sobra de filme, não é bom”. Ele o comparou com um filme brasileiro sobre os anarquistas, de Lauro Escorel[vi] . Mas nós fizemos Gregório para documentar; não foi para festivais. Hoje, Gregório é mais visto na internet do que o filme sobre os anarquistas.
Säfström: É um filme de arquivo e, hoje, há um grande interesse pelos filmes de arquivo. Podemos fazer coisas simples. Quando fazíamos nossos filmes, era preciso fazer cópias, negativos e era muito caro. Hoje podemos digitalizar, cortar o filme num computador, é muito fácil. Pode-se fazer muita coisa com material de arquivo. É um tesouro para os cineastas.
Leandro: Sobretudo para o cinema político, porque permite retornar ao passado, criar vínculos com o presente, trabalhar a memória...
Säfström: Permite explicar porque a situação contemporânea é como ela é. Para compreender a situação atual, é preciso conhecer a história, o background, o desenvolvimento, os movimentos... Eu acho que esses filmes e a televisão têm um papel importante: mostrar a história para que se possa compreender a situação contemporânea. Na Suécia, hoje, temos um partido de extrema direita, que ganhou 30% dos votos nacionais. É muito importante explicar que esse partido, que é contra a entrada de refugiados no país, vem do nazifascismo. Ele quer se apresentar como um partido qualquer, mas é um partido fascista, seus membros foram nazistas.

"Hoje podemos digitalizar, cortar o filme num computador, é muito fácil. Pode-se fazer muita coisa com material de arquivo. É um tesouro para os cineastas."

Leandro: As imagens produzidas por Film Centrum nos anos 70 são utilizadas, hoje, na produção cinematográfica e audiovisual sueca?
Säfström: Não o suficiente. Eu acho que essas imagens poderiam ser mais bem utilizadas. Eu compro documentários estrangeiros e vejo que há cada vez mais filmes que utilizam material de arquivo para explicar a situação de hoje. Nós coproduzimos agora uma série de filmes, Os novos faraós. De Nasser a Sisi, que conta a história do Egito, depois dos ingleses, para explicar a situação de hoje. Acho que é muito importante a pesquisa em arquivos para o filme histórico.
Leandro: Além de Gregório e Dora, vocês fizeram outros filmes juntos?
Säfström: Sim, nós fizemos um filme para uma série intitulada Suécia 80, uma série de curtas metragens financiada pelo Instituto Sueco de Cinema. Nós fizemos um filme juntos que se chama Vasos comunicantes, rodado em São Paulo e na Suécia, para explicar o deslocamento de mão de obra da Ericsson, grande empresa sueca de telecomunicações, que transferiu sua fábrica para o Brasil, a fim de reduzir os gastos salariais. Nós tentamos explicar a situação para um operário de São Paulo, comparando com a situação na Suécia. É um dos primeiros filmes sobre a globalização.

"Para compreender a situação atual, é preciso conhecer a história, o background, o desenvolvimento, os movimentos..."
Leandro: Ele foi feito em que ano?
Säfström: Em 1980. É um filme meio primitivo, pode-se dizer. Mas foi o início de uma discussão sobre os efeitos negativos da globalização.
Leandro: E ele foi projetado no Brasil?
Säfström: Não. Mas eu vou fazer uma cópia para o Luiz Alberto. Ele ainda não viu o filme. Na Suécia também não foi mostrado.
Sanz: Eu tenho três filmes que foram censurados pelos produtores: dois sobre a reforma agrária no Chile e esse outro sobre as relações trabalhistas entre a Suécia e o Brasil. Quando fizemos os Vasos comunicantes, dizia-se que a segunda cidade sueca era São Paulo; a primeira era Estocolmo.
Leandro: Os dois filmes sobre a reforma agrária no Chile também foram feitos com a Film Centrum?
Sanz: Não. No Chile foi com o Instituto de Capacitación y Información de la Reforma Agraria de Chile. Em 1971, o poeta Thiago de Mello era o chefe do departamento de comunicação desse instituto e, quando cheguei ao Chile, ele me convidou para fazer os filmes.
Leandro: Lars, quantos filmes você fez?
Säfström: Não sei, dez, quinze documentários, longas, além de curtas de ficção... Depois eu passei a produzir. Eu tenho uma empresa de produção. Mas eu comecei a trabalhar para a televisão, como empregado, responsável pela programação. Hoje eu faço coproduções de filmes de longa metragem de ficção, telenovelas, mas enquanto diretor, só fiz documentários.
Sanz: O Lars tem uma entrevista inédita – uma reportagem que ele iria fazer – sobre o cinema brasileiro em 1980. Ele havia sido indicado pela TV sueca para selecionar filmes a serem comprados para um festival de filmes brasileiros na televisão. E o Lars iria fazer uma reportagem para servir de explicação. Só que a Embrafilme fez de tudo para não vender filmes pra ele. Não o deixava ver os filmes... Era a política do Jorge Peregrino. Ele e a moça que trabalhava com ele na época criaram todas as dificuldades pra gente. Nós queríamos ver documentários brasileiros e eles apresentavam um documentário do J. Diniz, que não tinha a menor importância.
Leandro: Era uma espécie de censura?
Sanz: Eu acho que sim. E também porque a TV sueca não paga fortunas. Sei lá... Então, o Lars fez uma entrevista com Nelson Pereira dos Santos durante a realização do filme sobre Milionário e José Rico, intitulado Na estrada da vida (1983). Lars foi a São Paulo, na sala de montagem, ele e o Nelson conversavam... Ninguém viu isso, mas está lá, nos arquivos; é um material para os pesquisadores brasileiros que se interessarem, pois nunca houve uma entrevista como aquela sobre a realização do filme sobre Milionário e José Rico...
Leandro: Há pesquisas universitárias na Suécia sobre Film Centrum?
Säfström: Há um livro publicado sobre o jubileu do Cinema do Povo, mas sobre Film Centrum, especificamente, acho que não. Seria interessante... O cineasta Marin Karmitz foi a Estocolmo com um filme que ele havia feito, Coup sur coup, e nós distribuímos esse filme para ele. Karmitz que, na época, era um pobre cineasta, hoje é um dos maiores distribuidores. Ele copiou a ideia de Folkets Bio e reproduziu-a em Paris, com o nome de MK2, com duas salas, no início, a primeira delas perto da Bastilha. Eu acho que há muitos cineastas estrangeiros que se inspiraram nessa cooperativa. Eu me lembro de uma entrevista que fiz com John Cassavetes. Ele fazia mais perguntas do que eu. Queria saber tudo sobre essa cooperativa, porque ele era muito engajado. Ele fez filmes comerciais para ganhar dinheiro e poder realizar filmes independentes. Há vários cineastas que vão a Estocolmo, interessados pelo que fizemos em Folkets Bio, porque nos anos 1970 nós fomos pioneiros. Nos anos 1970 havia um catálogo de filmes bastante progressista na televisão sueca, com filmes alemães, de Fassbinder, filmes latino-americanos. E nos anos 1980, tudo mudou, porque começaram a comprar apenas filmes norte-americanos, feitos para a televisão. Foi muito triste, pois nos anos 1970 a TV tinha sido uma verdadeira escola de cinema. Cada semana havia um filme francês, as séries de Godard, Truffaut, filmes africanos, do festival de Uagadugu... Mas agora...
Leandro: A primeira sala de Folkets Bio foi em que ano?
Säfström: Em 1973, cinco anos depois da criação de Film Centrum. Podemos dizer que Luiz Alberto também foi um dos pioneiros da distribuição alternativa sueca.

Entrevista realizada no Rio de Janeiro, a 8 de dezembro de 2014.
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Aniki – Revista Portuguesa da Imagem em Movimento (v.2, n.2 - 2015) -


[i] Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, 22.290-140 Rio de Janeiro, Brasil. 350
[ii] O projeto Arquivos da ditadura, coordenado por Anita Leandro (Escola de Comunicação da UFRJ), legendou e reuniu em DVD três documentários realizados por Luiz Alberto Sanz no Chile e na Suécia. O DVD, intitulado Três filmes do exílio, é composto por Não é hora de chorar (Chile, 1971), Quando chegar o momento (Sué- cia, 1978) e Gregório Bezerra (Suécia, 1978).
[iii] Trata-se de Brazil: a Report on Torture (Saul Landal e Haskell Wexler, EUA, 1971, 60 minutos).
[iv] Departamento de Imprensa e Propaganda, criado por Vargas em 1939.
[v] A mostra Arquivos da ditadura, que aconteceu de 12 a 18 de setembro de 2014 no Centro Cultural da Justiça Federal, no Rio de Janeiro, reuniu vários filmes realizados por ex-presos políticos, com uma homenagem especial à obra de Luiz Alberto Sanz.
[vi] 6 Libertários (Lauro Escorel, Brasil, 1976, 30 minutos, 16 mm).

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

RUBENS CORRÊA: "RECADOS AOS JOVENS DA CAL"



Nesta semana resgatamos uma aula lá de 1984... mas como boas palavras nunca envelhecem, tiramo-las do baú de memórias e as publicamos para que sejam relidas por atores, estudantes de artes, curiosos etc.

* Esta foi a aula inaugural da Cal (Casa das Artes de Laranjeiras), no Rio de Janeiro (RJ), em 12 de março de 1984.  Reproduzida de uma apostila do autor. 






Recado aos jovens da CAL

Rubens Corrêa

Fui convidado para conversar com vocês sobre o ator. Sei que muitos aqui jamais representaram e outros deram apenas os primeiros passos neste caminho labiríntico que é o mundo da interpretação.  É uma tarefa que exige de mim sensibilidade e coragem; acho uma grande responsabilidade falar aos jovens e é com muita emoção e prazer que passo adiante as humildes sementes do meu trabalho artístico, com a esperança de que alguma utilidade possa ser encontrada nelas e que, de alguma maneira, elas possam lhes tornar a caminhada menos solitária e mais solidária, na medida em que esta receita muito pessoal provoque dúvidas e reconsiderações, ou toque o sagrado dentro de cada um de vocês, ou reacenda aquela esperança cega que Prometeu garantiu ser a conquista mais urgente para a sobrevivência do homem neste planeta.
O grande poeta e dramaturgo alemão Büchner escreveu numa cena de sua peça "Woyseck":  "Cada ser humano é um abismo e a gente tem vertigens quando se debruça sobre um deles."
Acho que nós atores somos duplamente esse abismo-espelho: como seres humanos e como artistas.  Nossa missão é provocar vertigem e o revisionamento do abismo dentro de cada espectador, para que depois de cada mergulho em nossos personagens-propostas essas pessoas pensem, se emocionem, compreendam e amem com nova e maior intensidade.

Eu, Rubens Corrêa, ator e artista de teatro, vinte e oito anos de profissão, e séculos e mais séculos de um longo período não sei onde, ofereço a vocês com apaixonada humildade o meu aprendizado nesta caminhada em cima das brasas sem se queimar, que é a condição necessária para poder representar e viver com algum significado neste nosso bizarro país sul-americano.

(...)

O CÁLICE

Representar para mim é a possibilidade que me foi dada de me comunicar com o meu semelhante através de uma troca de idéias, imagens, palavras, gestos e emoções.  Um divertido, fascinante, e muitas vezes cruel jogo que mistura ficção e realidade, consciente e inconsciente, sagrado e profano, amor e ódio, vida e morte.  Uma Paixão.
Através dos anos venho elaborando em cima das tábuas o meu trabalho, tentando sempre o difícil equilíbrio entre as conquistas técnicas e a simplicidade da execução.  Aqueles instantes, todas as noites em que represento um papel, são sempre os melhores momentos do meu dia.  Isso quer dizer que levo para o palco meus sentimentos, minha idéia, minhas alegrias, meus abismos, meu horror e minha luz.  Diariamente filtro essas emoções através das necessidades de cada personagem e recebo de volta para mim mesmo uma nova compreensão de meus problemas - e acrescento ao personagem um novo enriquecimento conseguido "à quente", quer dizer, arrancado de dentro de mim mesmo.
Com o correr dos anos fui aprendendo a me observar como artista e ser humano e fui tentando aproveitar em meus desenhos interpretativos a linguagem interior de minha vivência pessoal, para conseguir, assim, essa difícil união entre arte e vida, que foi sempre a minha grande aspiração.
Sempre acreditei que cada ator traz consigo um material fantástico, inimitável e único, muito difícil de ser conservado e desenvolvido nesta nossa era brutalizada e massificada.
É um cálice de cristal interior, que deve ser preservado e defendido através de muitos terremotos, muita contrariedade, muita decepção e sensação de abandono, mas com momentos também de enorme luminosidade que quando acontecem recompensam o artista e engrandecem o ser humano.

Cada ator é único e inimitável se ele mergulha com honestidade em si mesmo, e retrata o seu semelhante com generosidade, verdade e paixão.  "Somos feitos da essência com que os sonhos são feitos" escreveu Shakespeare, e essa é a melhor definição que conheço sobre o mistério da representação.

O CAVALO

Cada ator tem obrigação de zelar e desenvolver o seu instrumental – sua voz, seu corpo: seu cavalo.  Devemos transformar nosso corpo num grande arquivo de imagens com possibilidades de serem utilizadas em nossos futuros personagens. Nossa voz deve poder miar, rugir, gemer, uivar. Nossas mãos podem ser galhos de árvores, garras de feras, folhas secas ao vento. Nossos pés, colunas de um templo, patas de animais.  Nossos olhos devem poder reproduzir o enigma do olhar da esfinge, e a clareza cristalina de um poema de Brecht.
E mais, devemos nos preparar para poder receber com artística mediunidade a alma do mundo, as grandes interrogações do nosso tempo, a voracidade deste universo em constante transformação.
Devemos ser suficientemente fortes para poder reproduzir simultaneamente a maravilha e o horror do ser humano, a criatividade e a autodestrutividade de nós todos, homens, através desta difícil caminhada da vida.
O nosso cavalo deve então se preparar para poder assumir todas estas formas, e por isso ele tem de ser constantemente reabastecido e renovado.

O cavalo é também o estimulador de nossa energia, o conservador de nosso entusiasmo e de nossa fé. Quando as crises vierem (e não tenham dúvida de que elas virão), nada melhor do que trabalhar na fortificação do cavalo, porque no mínimo estaremos crescendo durante a crise, estaremos trabalhando e temperando novas energias, adquirindo novas técnicas, novos conhecimentos.  Podem ter certeza de que um bom cavalo torna o ator indestrutível.


O FOGO


O fogo através do tempo sempre foi o símbolo vivo da fé, do entusiasmo e da rebeldia. Mantê-lo aceso dentro de nós é também um trabalho para a vida inteira.  O fogo nasce de um estado de curiosidade natural e instintivo e pode ser desenvolvido através da conquista progressiva de uma cultura geral, de uma observação apaixonada da história do homem, da história de todas as artes, da emocionante história do teatro – e um profundo sentimento de observação do ser humano – aqueles para quem realizaremos nossas mágicas, o nosso público.  Esse fogo interno, uma espécie de grande rol central de energia e fé, é uma grande defesa contra a acomodação e me parece ser a grande mola propulsora da criatividade. Devemos estar sempre atentos aos seus chamados e é preciso não deixar nunca, custe o que custar, esse fogo esmorecer porque, caso isso aconteça, seremos os artífices de uma arte morta, sonâmbula, inútil, feia e resignada.

O MENINO

A recuperação da liberdade da infância através da vida adulta foi sempre uma das minhas metas. A criança é uma fonte incrível de informação artística e a criança que nós fomos, recuperada através do nosso lado lúdico tão atrofiado pelo correr dos anos, pode nos servir de guia, mas um guia muito especial, que caminha alegre e despreocupado, que sabe descobrir o mágico dentro do cotidiano, intuitivamente.
Um grande exemplo da presença do menino dentro de um artista está na figura e na obra do pintor Pablo Picasso.  "Eu não procuro, eu acho" afirmava o grande pintor.  E essa fala denuncia o menino que Picasso levava dentro de si, que pintava cerâmica usando como base para o desenho a espinha do peixe que tinha comido no almoço, ou fazia fantástica escultura aproveitando uma roda velha e quebrada de uma bicicleta encontrada na estrada durante seu passeio matinal.  O menino traz alegria e descompromisso racional para o trabalho artístico.  No Passeio Público do Rio de Janeiro tem um menino-anjo esculpido num bebedouro (se não me engano de Mestre Valentim) com a seguinte legenda:  "Sou útil, inda brincando".  Essa é a lei e a sabedoria dos meninos.

Acho que preservando o cálice, domando o cavalo, estimulando o fogo e soltando o menino, o artista está preparado para viver e criar uma vida bela e uma obra útil para a coletividade.
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Rubens Alves Corrêa - Ator e diretor.  Sua interpretação traz elementos peculiares aos princípios enunciados por Antonin Artaud, privilegiando personagens de alta densidade dramática, fora das convenções realistas ou das comédias ligeiras. Constrói o Teatro Ipanema onde, tendo Ivan de Albuquerque como parceiro e sócio, desempenha a maior parte dos papéis de sua carreira e procura refletir as questões da arte e da sociedade contemporâneas.
Forma-se como ator n'O Tablado em 1958, cursando, também, direção na Escola de Dulcina de Moraes, na Fundação Brasileira de Teatro (FBT), ao lado de Ivan de Albuquerque, Yan Michalski e Cláudio Corrêa e Castro. Associa-se a Ivan, com quem funda o Teatro do Rio onde, em 1959, estréia profissionalmente como ator e diretor e realiza em média três espetáculos por ano.
Trabalhou com nomes como Ziembinski, Klauss Vianna, José Wilker 
Ganhou alguns prêmios, entre eles o Prêmio Moliére de melhor ator, em 1963,  Prêmio Governador do Estado (SP) de melhor ator em 1967, os prêmios Estácio de Sá e Golfinho de Ouro de melhor ator e o Prêmio Shell de melhor ator, em 1993. 
Estudioso em particular da obra de Jung, extrai desse conhecimento parte da peculiaridade de seu estilo de interpretação. Embora reconhecido como diretor pela qualidade de alguns espetáculos, é como ator que deixa sua marca no teatro.
Rubens Côrrea faleceu em 22 de janeiro de 1996.


Querendo saber mais sobre Rubens Côrrea, consulte o site: