domingo, 31 de julho de 2016

MULHERES NO TEATRO DE GARCÍA LORCA

Mulheres que lutam. Do civil no teatro lorquiano.
Por Lorenzo Spurio
Publicado em 30 de março de 2016, em http://www.lamacchinasognante.com/ com o titulo: 

Donne che lottano. Del civile nel teatro lorchiano

Tradução de Claudia Venturi

Lorenzo Spurio - foto da matéria original

Lorenzo Spurio nasceu em Jesi (Ancona/Itália) em 1985. Publicou Antologias poéticas entre 2014 e 2016, coletâneas de narrativas entre 2012 e 2015, críticas literárias entre 2011 e 2015 e ensaios sobre poesia italiana contemporânea, em 2015. Em 2011 fundou a revista online de literatura «Euterpe». É Presidente do Prêmio Nacional de Poesia “L’arte in versi” / Jesi e Presidente do Júri nos prêmios literários “Città di Fermo”, “Città di Porto Recanati”, “Poesia senza confine” (sez. dialetto) di Agugliano. Foi finalista na 27ª edição do Prêmio de Literatura Camaiore – Obra Prima com Neoplasie civili (2015) e o 1° prêmio pela poesia individual no Concurso Internacional “Città di Ancona” organizado pela Associação “Voci Nostre” (2016).









Mulheres que lutam. Do civil no teatro lorquiano.

Quando Federico García Lorca foi assassinado, o vislumbre da morte já velejava há alguns meses sobre toda a Espanha. As milícias antinacionalistas, infiltradas em um impreciso e muito amplo grupo republicano em tempos variados, se tornaram responsáveis por ataques diretos, saques, violências e verdadeiras represálias não raramente até em ambientes religiosos. Muitos homens caíram nos primeiros meses daquela que rapidamente seria transformada em uma das mais conhecidas guerras civis da Velha Europa. Se não a mais longa, sem dúvida uma das mais sanguinárias e hediondas. Poucos dias antes, no qual o corpo do poeta de Granada, como atraído pela lógica tremenda de quem ergueu o ódio entre os iguais em condições imprescindíveis para um (pseudo) renascimento, rompia cada vínculo com o mundo natural e se tornava um corpo ausente (para invocar uma expressão sua, empregada no Llanto por Igncio Sánchez Mejías, composição da queda e da saudade que leva a um sentimento forte de real niilismo), García Lorca tinha perdido o amado cunhado, Manuel Fernández Montesinos que, como Prefeito vermelho[i] da cidade de Granada, havia caído precocemente pelas atrozes vinganças dos republicanos. Um luto grave, imprevisto enquanto o clima de ódio e de violências transversais estivesse na ordem do dia, que atingia não só a Capital, onde se discutiam questões e onde o Rei já tinha deixado o seu posto, sem abdicar, da função da Segunda República[ii], mas no ambiente da província, naquela Granada do desencanto e do idílio que o poeta havia cantado em obras memoráveis, quais Suítes e Cancioneiro Cigano.

Federico García Lorca - foto em queerblog.it


Uma Granada na qual, embora o poeta tenha movido os primeiros passos em direção do ambiente campestre e a profundidade de um mundo popular ligado à vida dos campos rico de oralidade e nas suas tradições, deveria residir um certo sentimento de tristeza em Lorca que, de fato, em uma poesia falava da “tristeza remota”, da “tristeza nativa” e de uma “infância intranquila”. Trata-se – hoje podemos dizer, tendo em viva consideração o seu percurso literário e humano – de uma abertura ao universo íntimo que o poeta nos permite em chave lírica, a via expressiva mais agradável para ele, na qual, aliás, não é difícil identificar uma personalidade realmente suscetível e problemática, fortemente introspectiva, em um certo sentido particularmente útil até mesmo para os historiadores e os biógrafos para a construção de um claro retrato falado das atitudes.
Como se observará neste texto, toda a atividade literária de Federico García Lorca girava em torno de um grande amor no confronto com a palavra, consciente de que nela reside um potencial evocativo e socialmente importante. A literatura lorquiana possui, de fato, o gosto do simples: o ambiente do campo, as vicissitudes dos animais que parecem dialogar entre eles com extrema verossimilhança, as relações familiares e as lógicas de contraste que se instauram no mundo da província quando a intriga e a mancha da honra tomam à dianteira, de modo que se tornam variáveis capazes de traçar o destino do homem.
Na nutrida literatura dramatúrgica de García Lorca – pouco conhecida, mas que o torna um dos maiores escritores de teatro do século passado – ele colocou em evidência alguns assuntos de difícil trato para os seus tempos com dois objetivos fundamentais: o primeiro era a sua convicção de que o teatro não é outra coisa se não poesia que “se eleva dos livros e se torna humana”[iii] e o segundo era  sua coparticipação sentida nas condições de desconforto do homem. Célebre são as suas palavras nas quais afirma que a sua colocação na sociedade será aquela dos que estão ao lado dos excluídos[iv]. Sobre isto ele testemunhará com a sua atividade literária, com o seu espírito pacato e sensível (se recorre à literatura memorialística em apoio ao que se diz por meio da qual é possível definir o autor não enquanto literato, mas enquanto homem na riqueza de seus dotes e da forte caridade).
No campo teatral, García Lorca demonstrará, desafiando com a cabeça erguida, a ideologia reacionária que logo controlaria e eliminaria diferentes posicionamentos, enquanto o seu vínculo com o outro (aquilo que hoje nós definiríamos como uma ideia simplista e preconceituosa de “diferente”) fosse sentido e radicado na profundidade das crenças, na empatia das relações, na grande confiança em um mundo de compartilhamento. García Lorca não foi um dos tantos utópicos a esperar que se pudesse obter o fim da barbárie em um país, como o seu, onde a luta armada era apenas iniciada. Não foi sequer um indiferente, um daqueles que julga de acordo com a conveniência e com as situações que se apresentam, de tomar determinadas posições ou de favorecer a sua aproximação a certas tendências das quais se distanciaria, talvez, em um segundo momento. A natureza definidamente solidária do homem, a sua fiel subordinação ao mundo popular, guardião dos arcanos e das leis da natureza, a erudição permitida até com a participação na Residência dos estudantes de Madri, o seu vínculo direto e inseparável com a música popular (Manuel de Falla) e o folclore andaluz (a tradição cigana), o irmanamento ao mito das águas, a religiosidade destemperada, mas viva, como possibilidade, a profunda amizade com Fernando de los Ríos (1879 – 1949)[v], são apenas alguns dos elementos que, junto com a ideia-genialidade do teatro itinerante de La Barraca, fez dele um homem distintamente de esquerda, próximo às intenções e opiniões de uma equipe política que, na Espanha, naquele período era muito complicada porque subdividida em partidos pequenos, frequentemente sem guias carismáticos.
Se bem que no curso da história houve, e persiste ainda nos dias de hoje, quem sustentasse que o autor não era de esquerda, nem vermelho perigoso (como diziam os membros da Falange que depois o assassinaram) não é possível enfrentar discursos relativos à figura do poeta se não se abstrair isto. O autor não era, de fato, estranho a atividades conduzidas por ambientes ligados à esquerda (de matriz marxista, inclusive), existem provas de assinatura colocada em numerosos manifestos que foram elaborados na época contra a autoridade fascista no país e fora dele. Recordando, de fato, a sua assinatura no manifesto que muitos intelectuais subscreveram contra o despotismo de Salazar no país vizinho, Portugal. Por essa filiação a uma ideologia adversa e muito perigosa, a comunista, o autor seria logo estigmatizado e afastado dos ambientes aos quais a classe conservadora, que estava adquirindo um forte prestígio, não considerava mais a sua presença idônea. Até mesmo La Barraca, seu projeto idealizado junto a Eduardo Ugarte voltado a levar aos pequenos centros campestres o teatro diretamente ao ar livre, como acontecia antigamente, passou a ser mal visto pela direita que via nesta atividade uma intenção voltada à doutrinação comunista.
Por estas razões (poderíamos relatar muitos outros exemplos reevocando momentos documentados) García Lorca, de amigo dos excluídos e de excluído que era ele mesmo por ser homossexual, torna-se logo um inimigo público. A sua personalidade, tão pronunciadamente diversa e subversiva, que não se submetia ao código de conduta estabelecido pela classe fascista, imoral e despreconceituosa era o sinal de uma erva podre recém-nascida que deveria ser subitamente extirpada de modo que o bom gramado não viesse a sofrer. Se antes eram o desprezo e o tédio o que recebia dos ambientes de direita, agora ele passava a ser vigiado porque era, precisamente, considerado um meio eficaz de uma propaganda política que não o consentiriam de fazer. Transformada em domínio público, a baixa consideração que ele tinha para as direitas, que o consideravam um depravado, uma “bicha” e um espião russo, o evento que provavelmente seria o mais deprimente para ele acontece na estreia de Yerma, em dezembro de 1934, no Teatro Espanhol de Madri.
Naquela circunstância, a plateia “de bem” de uma classe social abastada, mas indigna, protestou com impetuosidade desde a abertura, que durante a representação o provocou, todos apontando para depreciar a sua condição de homossexual, provinham de expoentes de uma direita arcaica e obtusa, extenuantes defensores de imagens sacrossantas como o respeito e a honra que, de qualquer modo, o autor com a sua obra havia colocado em discussão. A atriz que interpretava Yerma, a amiga Margarita Xirgu, não foi poupada de ofensas públicas nas quais gritavam que era lésbica (fato sobre o qual até hoje permanece em certo mistério, tendo sido ela mulher casada e sem filhos, mesmo existindo documentos de um neto que dizem nunca ter sabido de sua condição). Federico e Margarita não se abalaram muito pelos gritos antipáticos lançados a eles e, no dia seguinte, saíram nos vários jornais críticas em um tom muito diferente. Todos os jornais próximos à direita denunciaram publicamente a gravidade de uma obra como Yerma, descrevendo-a como inoportuna e imoral, não só pelo bem comum, mas também pela Igreja e porque ameaçava o sentido arcaico e devoto da tradição. O acontecimento teve, contudo, um alcance de tal forma ruidoso que, de qualquer forma, assinalou de maneira muito nítida o consistente périplo de ódios e atrocidades aos quais o poeta havia sido submetido nos últimos meses.
Após colocar em cena a personagem de Mariana Pineda, uma heroína de Granada que, movida pelo amor ao seu homem, desafia a autoridade do Rei e prefere morrer a ceder as suas chantagens, e Yerma, a imagem da mulher insatisfeita que enlouquece pela falta de um filho e pelo clima pesado de indiferença e submissão por parte do marido, que acaba matando, a sociedade espanhola não estava muito disposta a aceitar outras representações que enlameariam cenicamente a moral e destruiriam os pilares sobre os quais o respeito e o sentido da família se conservavam naquele tempo, de modo muito mesquinho.
O autor, enquanto isso consegue compor A Casa de Bernarda Alba, um drama rural que, sozinho, seria considerado como o terceiro capítulo daquela trilogia dramática da terra de Espanha. Não consegue, porém, vê-la representada porque é capturado e executado. Nesta obra o autor propunha um outro personagem escandaloso (aos olhos dos conservadores), a jovem Adela que, não aceitando as rígidas restrições da tirana mãe, consegue amar um homem, escondido.
A mulher que García Lorca pinta com essas suas obras não é tanto uma mulher fogosa que procura espasmodicamente pelo ato sexual e a satisfação de uma necessidade efêmera, a do prazer, mas é uma mulher muito profunda, que acredita no juramento de amor ao qual não está disposta a abrir exceção. Por isso Mariana Pineda chega a colocar em perigo a sua pessoa para que pudesse proteger o homem que ama, um conspirador. Mas no final ela morre por ter permitido a conspiração e não aceitar ceder aos interesses sexuais do Alcalde del Crimen que poderia lhe conceder a anistia. É preferível a morte à honra. O anulamento do corpo é preferível à sua contaminação. O direito de decidir vence sobre a obrigação de ser subjugado aos poderosos. Por isso Adela não deixa de fazer valer as suas razões em uma casa onde a luz não entra nunca e parece um monastério de clausura. Veremos ela chamar a sua mãe, replicá-la, e manter a razão mesmo se não consegue sair daquele reino das sombras porque é a própria sociedade da qual o autor nos fala que ainda não é aberta para o novo, para as exigências de um mundo justo e imparcial que garanta os direitos e uma igual consideração para com a mulher. Se Adela ao final da obra morre deixando uma dor que não é assim e que logo será substituída pela ritualidade enfadonha das irmãs. Estas últimas são conscientes (pelo Martírio) de que ela teve mais sorte do que elas (Dichosa ella). Sorte não apenas por ter conseguido amar a um homem (que é o desejo que todas têm), mas, sobretudo, por ter sido de tal forma sábia e voluntariosa em contestar a mãe, com impetuosidade e astúcia, coisas que elas não têm.
De Yerma os otimistas ligados à ideologia reacionária não fizeram mais do que sublinhar a imoralidade e a perversão da personagem feminina a despeito da mulher que, contrariamente a todas as entediantes advertências do marido por todo o percurso da obra, não faz nunca algo de inapropriado. Nem quando uma velha bruxa profetiza que para poder ter um filho talvez fosse melhor que engravidasse de outro, Yerma consegue se satisfazer. Apesar da necessidade trôpega, um filho e essa maternidade perdida seriam a causa de sua loucura, a mulher não é capaz – diferentemente de Adela que representa a personagem feminina mais rebelde – de violar o pacto de honra. Ou seja, exclui a priori a possibilidade de uma traição conjugal para seguir o seu objetivo de maternidade porque aquilo – independente da notícia se difundir ou ser conhecida apenas por ela – representaria uma ofensa vergonhosa no confronto de seu código de respeitabilidade, da sua honra, mostrando-se então, diferentemente de Adela, uma mulher que sente muito o inconveniente de sua necessidade, mas que não tem força ou iniciativa para concretizar as suas vontades.
As três mulheres, das profundezas de dores não redimidas, de pessoas privadas de afetos e considerações, tornam-se três vítimas sacrificiais do poder patriarcal e ditatorial: Mariana Pineda será executada por ter sido uma conspiradora, Adela se suicidará após receber a falsa notícia da morte de seu amante e Yerma estrangulará o seu marido tornando-se, ao mesmo tempo, uxoricida e infanticida do filho que nunca teve e que, matando o seu companheiro, de fato não poderá nunca mais o ter.
Três histórias de mulheres sozinhas e atormentadas, onde a solidão e o tormento são companheiras ancestrais de um contexto dominado por atitudes preconceituosas, potentes tabus, fofocas, rumores e vozes do povo que, como um grande e único personagem, contribui claramente para escrever, de maneira muito trágica e fatalista, os destinos do enredo. Aquilo de cruel que acontece, acontece porque não pode acontecer nada que suavize a situação. O poder patriarcal, a carga de virilidade e de machismo do homem não podem ser contraditos nem anulados, a mulher deve conservar a sua posição doméstica relegando a sua existência a casa e à prole (quando houver), mas isso se torna muito mais limitante pelo fato de que a casa, que é o único ambiente concedido a ela de habitar, é frequentemente uma cova intestina de ódios, incompreensões e indiferenças que não as permetem de serem escutadas ou interpeladas de modo saudável e sem um tom ameaçador.
Mariana, mesmo vivendo com os seus filhos e com a mãe, na prática, é como se vivesse sozinha, arrancada do ambiente familiar no qual está inserida, nem por isso esquecendo-se de proteger a prole, enquanto a mãe está pronta para reprová-la. Trata-se, de qualquer forma, apenas da cena inicial desde então a mulher encontrará refúgio em outra casa e depois, na parte final, a encontramos na prisão pelo crime de conspiração.
Adela vive em uma casa que não é a sua porque, como representa o título da obra, é a de “Bernarda Alba” e não da família Alba. Ela, como as suas irmãs e a pobre avó, não fazem nada além de contribuir para aumentar numericamente a presença do núcleo familiar, mas no interno não existem vínculos afetivos ou amistosos. As cinco irmãs estão em eterna luta e competição entre elas e não perdem a oportunidade de se desmentirem em frente à mãe ou de mostrarem-se disponíveis e subalternas a ela, quando na verdade todas a odeiam, umas mais, outras menos. Dos pais Adela não recebe nada: o pai está morto, a mãe é uma terrível viúva que dá ordens ao seu prazer, sem ouvir a opinião dos outros. A família transmite em sentido muito autoritário o respeito incansável à autoridade (a mãe), a obediência muda, o respeito das ordens e a observância das proibições, a punição verbal e corporal frente às atitudes que não respeitem a autoridade, a honra, a religião, a tradição e as convenções intolerantes e emboloradas.
A casa onde vive Yerma, em última análise, é muito fria e estéril. Habitada só por ela e por seu marido que a deixa praticamente só em grande parte do dia, quando ele está envolvido nos trabalhos dos campos. Embora a vizinha vá frequentemente encontrá-la e falar com ela, Yerma é uma mulher muito sozinha, que vive a sua solidão de maneira dramática e oprimente. Por estas razões o seu ânimo e a ordinária convencionalidade a sugere que a sua, para ser efetivamente uma família, precisa de prole. Ou seja, de algazarra, de calor, de maior atenção. Todas as coisas que são mal vistas pelo marido, interessado só pelo trabalho e pelos ganhos e que não conhece as leis do afeto: não por culpa sua, mas porque nunca ninguém o transmitiu.
Se García Lorca não tivesse sido morto com certeza teria continuado imperturbável com o seu percurso já iniciado, ou seja, aquele de se ocupar com os excluídos, de usar o seu talento para dar voz às exigências represadas de quem, não tendo poder e não sendo um homem, seria silenciado ou censurado. Sabemos de fato que havia iniciado a obra Os sonhos de minha prima Aurelia da qual nos restam poucas partes e onde, entre outras coisas, se delineia uma relação entre um garotinho que deseja namorar uma mulher bem mais madura do que ele. Bem intuímos, mesmo sem saber muito sobre toda a história da obra que ele estava escrevendo, que uma cena como essa, na qual simplesmente (talvez até infantilmente) um garoto se mostra atraído e interessado por uma mulher mais velha do que ele, teria sido interpretada pelo ambiente reacionário espanhol como extremamente perigoso, desmedido e imoral. Um pouco como seria o drama que ele escrevia, centrando os acontecimentos em torno a um fenômeno de incesto. Obra que parece nunca ter sido trabalhada por García Lorca, se não esboçando um possível título, por causa de sua morte prematura.
Aquilo que García Lorca procurou fazer com o seu teatro de investigação social foi uma tentativa muito previdente e necessária que, se no momento foi vivida como depravada e imoral, no tempo mostrou a sua validade e eficácia. As suas obras, como alguns documentales fotográficos, nos permitem hoje, pouco menos de um século após terem sido escritas, calar-nos naqueles contextos, naqueles cenários populares dos quais lê, dos quais os códigos formantes eram tão duros e implacáveis, privados de um desenho de igualdade e democracia. García Lorca de maneira muito profética, com as suas obras, levou a luz a pobre mulher ignorada por todos possibilitando-a de ter voz, declamar a verdade e celebrar as melhoras de sua condição, se estes impulsos da consciência ocorrem no desinteresse e no estar sendo ouvida por parte da comunidade. Mostrou, simultaneamente, como sendo necessário que alguém abrisse a nova estrada para ser percorrida, exigisse o direito ao respeito e a dignidade, instituindo um modelo crítico saudável, ativo e útil, precisamente, para o crescimento. Em outras palavras, García Lorca, primeiro como tema literário e depois como motivo existencial, como os novos mártires, fez com que os seus heróis contemporâneos não fossem sujeitos que possuem dotes milagrosos e especiais, mas, ao contrário, fossem homens simples, do povo, que conseguem, mesmo em sua limitada erudição e conhecimento do mundo, ter consciência de sua condição não igualitária.
A morte de Lorca, não é nada mais do que a última manifestação e o capítulo conclusivo daquele ciclo comprometido com a construção de uma pluralidade dividida, que abre ao consenso e a discordância com os meios democráticos da palavra e do respeito. De um certo modo, o autor vestiu os trajes de Mariana Pineda, fazendo-se cantor de ideias liberais, respirou a asfixia dos ambientes negligenciados e preconceituosos, sofrendo a impossibilidade de se fazer ator (e não espectador) da história, se solidarizando com a bela Adela à procura de sua liberdade sexual (Adela diz querer amar quem lhe fale ao coração, exatamente como García Lorca quer se sentir livre para amar os companheiros do seu próprio sexo). O autor também tem em si aquela energia que Yerma obtém em uma fase de obscurecimento da razão, que segrega enfim o seu marido, liberando-se de seu mal.
Faz-me pensar, então, que toda essa mistura de fel e veneno, de ódios e ameaças, de ofensas e serviços mentais, de difamações à sua arte e de vividas apreensões ao seu destino o autor a tenha, em um certo modo frustrado não com o ato da morte a qual, barbaramente, é constrangido, mas com a sua literatura muito comprometida e de cunho civil. As palavras permitem o diálogo enquanto as armas alimentam as distancias e inflamam os rancores.
A grandiosidade o teatro de Lorca está exatamente na tensão cívica que delimita aos vários acontecimentos que atraem o leitor atento a uma verdadeira coparticipação dos fatos. García Lorca não ensina em qual lado se posicionar na luta, mas nos sugere que frequentemente essa luta se sustenta nas bases de expectativas erradas ou ideológicas que rebaixam a alma de um povo. Por estas razões acredito que não seja apenas útil, mas também necessário ler as tramas dos textos teatrais do autor, desnudando-as de determinações espaço-temporais, examinando-as como condições-tipo para uma análise mais precisa sobre os mecanismos mentais, sobre como a luta ideológica e a supremacia do pensamento conduzam sempre a erros graves, frequentemente irrecuperáveis. A rebelião e a revolta, então, que García Lorca de qualquer forma representa com os seus personagens que não se adéquam à sociedade e que se distinguem dela para serem porta vozes de uma nova visão das coisas, é um meio eficaz que pode focalizar as problemáticas, torná-las claras, permitir uma maior solidarização que possa empreender um percurso biunívoco na expressão das ideias para que o inflexível e despersonalizante domínio dos pretensos poderes permaneça uma lembrança pálida.
Los relojes llevan la misma cadencia
Y las noches tienen las mismas etrellas.

García Lorca nos presenteou com noites que nem sempre possuem as mesmas estrelas. Mesmo se os relógios seguirem todos a mesma trajetória entoando um tempo que é menos real do que o próprio céu.




[i] O prefeito pertencia ao partido socialista que, diferente daquele espanhol que nunca teve grande participação, representava uma das principais almas do grupo republicano.
[ii] Como se sabe, o Rei Alfonso XIII deixou o País sem abdicar, em 1931 quando foi proclamada a Segunda República. A guerra civil combatida de 1936 a 1939 levou ao poder Francisco Franco, proclamado Generalissimo e Chefe das Forças Armadas. Quando Franco, já idoso, escolheu a regência para a Espagna depois que fosse morto, indicou Juan Carlos, neto de Alfonso XIII, como seu successor. Com a morte do Generalissimo, em 1975, o poder passou para as mãos de Juan Carlos que “restaurou” a monarquia e se tornou Re Juan Carlos I.
[iii] El teatro es la poesía que se levanta del libro y se hace humana. Y al hacerse, habla, grita, llora y se desespera. El teatro necesita que los personajes que aparezcan en la escena lleven un traje de poesía y al mismo tiempo que se les vean los huesos, la sangre. Han de ser tan humanos, tan horrorosamente trágicos y ligados a la vida y al día con una fuerza tal, que muestren sus tradiciones, que se aprecien sus olores, y que salga a los labios toda la valentía de sus palabras llenas de amor o de ascos”.
[iv] “En este mundo yo siempre soy y seré partidario de los pobres”.
[v] Homem político socialista, foi algumas vezes ministro nos governos da República. Federico era profundamente ligado a ele e estimava as suas qualidades de grande pedagogo, âmbito pelo qual foi um dos principais defensores de um novo modelo de ensino, uma verdadeira reforma que renovou o sistema educacional atrofiado da Espanha, tradicionalmente enxarcado de religião. Representou um dos adversários principais da Falange e dos nacionalistas durante o conflitto civil, tanto que alguém chegou a sustentar que o assassinato de García Lorca foi um instrumento para atingir o próprio Fernando de los Ríos que, diferente do poeta, era um político e então um homem publicamente alinhado com a esquerda.

sexta-feira, 22 de julho de 2016

LÉON CHANCEREL

Nesta semana publicamos um artigo de nosso querido diretor José Ronaldo Faleiro, que também tem a ver com o Projeto Curupira, do Círculo Artístico Teodora, que procura desenvolver a formação do público jovem e infantil para o futuro da cultura.
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LÉON CHANCEREL & O TEATRO COMO «SERVIÇO DRAMÁTICO»
Autor: José Ronaldo FaleiroA

(...) Léon Chancerel aprendia junto a Copeau, na Borgonha, os segredos do jogo e se imbuía das idéias mais caras ao autor de A Casa Natal: necessidade de uma escola de atores, retorno às leis essenciais do teatro, cultura moral do autor, modéstia perante a obra, sinceridade, etc. Desse contato nascem Les Comédiens Routiers [Os Atores Itinerantes].
         Marcel RAYMOND. Le Jeu retrouvé [O Jogo Reencontrado]. Montréal: l´Arbre, 1942. p. 252.

José Ronaldo Faleiro - Foto Silvia Venturi

Este artigo busca analisar alguns momentos significativos do percurso de Léon Chancerel (1886-1965), homem de teatro francês que dedicou a vida a questões teóricas e práticas de formação, criação e transmissão no campo teatral.

Léon Chancerel preocupou-se com a renovação da arte teatral através da formação da juventude. Já no final da sua vida, fundou e presidiu a ASSITEJ [Association des Amis du Théâtre pour l´Enfance et pour la Jeunesse/Associação dos Amigos do Teatro para a Infância e para a Juventude], «nascida do amor» e «da revolta — da revolta contra tudo o que é feio, medíocre, vulgar, ofensivo para a infância e para a adolescência — (...) em suma: tudo o que carece de sentido humano, de honestidade operária e de saber»

Após trabalhar, nos anos de 1920, em Paris e na Borgonha, ao lado de Jacques Copeau (1879-1949), um dos reformadores do teatro no século XX, Léon Chancerel preocupou-se com a renovação da arte teatral através da formação da juventude. no final da sua vida, fundou e presidiu a ASSITEJ [Association des Amis du Théâtre pour l´Enfance et pour la Jeunesse/Associação dos Amigos do Teatro para a Infância e para a Juventude], «nascida do amor» e «da revolta — da revolta contra tudo o que é feio, medíocre, vulgar, ofensivo para a infância e para a adolescência — (...) em suma: tudo o que carece de sentido humano, de honestidade operária e de saber»[1].
Na verdade, Léon Chancerel se interessou pelo teatro desde a infância: primeiro como espectador, vendo espetáculos nos jardins de seu avô materno, em Gonesse, nos arredores de Paris; depois como animador teatral, pois em 1918 confeccionou um teatro de fantoches para o Natal da Vitória, e apresentou para os amigos La véritable Histoire du Petit Chaperon Rouge, «drame historique en 4 actes et un prologue» [A verdadeira história de Chapeuzinho Vermelho, drama histórico em 4 atos e um prólogo], na qual desempenhava todos os papéis masculinos. na época revelava possuir familiaridade com os temas que preocupavam os homens de teatro mais exigentes da sua época, e desejava uma renovação profunda de uma arte que não deveria ser apenas «uma empresa literária, o desejo de ganhar dinheiro e de obter sucesso»[2]. Perguntava então para si mesmo: «Quem nos dará espetáculos em que haverá lirismo, observação, grandes arrebatamentos (...)?»[3]

Jacques Copeau - foto de officeculturelcluny.org

 «Não existe arte sem ofício. Aprende primeiro o ofício. Desde o começo. Aceita as restrições da arte. (...) Quanto mais ela estiver sujeita a restrições materiais, mais terá espiritualidade»

Esse tipo de interrogação obteve resposta durante os seus diálogos com Jacques Copeau, que ele encontrou pela primeira vez, aos trinta e quatro anos, em 19 de junho de 1920, no seu camarote no Théâtre du Vieux Colombier. Em seu diário, anotou: «É o único teatro de Paris em que se possa levar a sua alma sem que ela tenha vergonha de estar (...)»[4]. Recebeu então a revelação da possibilidade de concretizar teatralmente certas idéias que o ocupavam, a confirmação de sua pertinência. Sem posto fixo nem posição definida, ele se associou ao trabalho desse grupo de teatro. Copeau lhe atribuiu um papel de secretário, de dramaturgo, de «duplo». Apesar de a colaboração entre ambos não ser totalmente pacífica («a estética dramática de Copeau difere muito da minha»[5]), o Vieux-Colombier representou para Chancerel um espaço de experimentação da escrita de pequenas obras representadas antes de certos espetáculos clássicos, à guisa de prólogos. Além de Copeau, que o influenciou decisivamente, Chancerel encontrou-se com Constantin Stanislavski (1863-1938) em Paris (e traduziu Minha Vida na Arte); colaborou com Charles Dullin (1885-1949) e com Louis Jouvet (1887-1951); viajou pela Itália, o que o inspirou a escrever O Peregrino de Assis. Concebendo um projeto de trabalho com jovens da Residência Social de Levallois-Perret, nas imediações de Paris, desde 1922 percebeu a possibilidade de ter junto aos jovens um terreno de pesquisa sobre o trabalho do ator e sobre a renovação do teatro. Antes de criar a sua própria companhia teatral, Chancerel permaneceu por alguns anos em contato muito estreito com Jacques Copeau, e com esse teatro que possuía uma escola, cuja abertura, no outono de 1920, ele presenciou, sendo uma testemunha imediata de uma pesquisa sobre a formação metódica do ator. A Escola do Vieux-Colombier era concebida como um fator decisivo para a reforma teatral. Nela, o corpo não deveria ser utilizado somente para representar outro corpo humano, mas caberia ao aluno descobrir as suas possibilidades de expressar formas da natureza (árvores, plantas, etc.) e outras formas plásticas (pontes, igrejas, etc.). Portanto, a arte não era concebida nem praticada como um complemento da expressão da voz. Influenciado por essas idéias e práticas, Chancerel escreveria mais tarde: «Antes de tudo, o teatro é ação e movimento. Nunca partir, no início, de um texto, mas de um sentimento, de uma situação, de um ato, apelando para a palavra apenas depois de ter assegurado a sintaxe corporal. A literatura é uma arte; o teatro, outra»[6].  A realização do trabalho residiria na união, cuja imagem é o Coro, formado por uma companhia ideal de atores na qual, como numa orquestra, cada um desejaria apresentar a sua parte o melhor que pudesse, dentro de um conjunto. Em vez de tolher, as regras do ofício trariam um meio de expressão indispensável, seriam como o cinzel quebrilho e força ao mármore. «Não existe arte sem ofício. Aprende primeiro o ofício. Desde o começo. Aceita as restrições da arte. (...) Quanto mais ela estiver sujeita a restrições materiais, mais terá espiritualidade»[7].

William Shakespeare - foto o blog biography.com

Impregnado das ideias de Jacques Copeau — relativas ao repertório: a ideia da ressurreição dos grandes temas, retomada do contato com os grandes clássicos «vivos» (Molière, os gregos, Shakespeare, o teatro do Extremo Oriente, a Commedia dell’arte); relativas ao espaço (cena arquitetônica; tablado nu em relação com a busca e a redescoberta da poesia no teatro, propício a um jogo não-naturalista; representação em lugares fechados ou ao ar livre, não especificamente previstos como lugares de espetáculos teatrais: galpões, granjas, adros); relativas a princípios e práticas (livrar o palco do naturalismo e do mercantilismo; promover uma liberação técnica; alimentar o desenvolvimento corporal e o conhecimento da interpretação; situar o ator no centro do fenômeno teatral; realçar a importância da técnica  (exercícios físicos e vocais, uso da máscara) e da ética (idéia de comunidade, de equipe, de trabalho coletivo, de disciplina, de ordem, de trabalho anônimo) — parecia a Chancerel que um grupo estável de atores-pesquisadores que aliasse a experiência do jogo a uma cultura geral sólida se tornava conditio sine qua non para as suas atividades.

Voltaire -  foto em
http://epicrapbattlesofhistory.wikia.com/

Podemos considerar dois momentos de convívio mais íntimo de Chancerel com Copeau. O primeiro, em Paris, no Théâtre du Vieux-Colombier. Ele é colaborador do mestre: escreve, até representa, mas principalmente olha, escuta, observa, acumula impressões, imagens, informações, no contato com a equipe, com o «Patrão», com seus espetáculos e projetos. O segundo, na Borgonha, quando «põe a mão na massa»: treina, fabrica acessórios, faz improvisações, esboça o seu Oncle Sébastien [Tio Sebastião]. O mergulho na Borgonha completa o batismo de Chancerel nas águas lustrais do teatro. Os seus meses borguinhões ocupam um lugar nuclear para a sua prática como autor dramático, ator-encenador, historiador do teatro[8]. Lembremos aqui somente a busca que empreende, por meio de improvisações, da sua personagem fixa, inspirada na Commedia dell´Arte, chamada Oncle Sébastien. Quando a escola do Vieux-Colombier se transferiu para a Borgonha (experiência efêmera que durou de outubro de 1924 a fevereiro de 1925), uma das atividades era esta: procurar a sua própria personagem, na tentativa de encontrar correspondentes atuais para os tipos da Commedia dell´Arte. Os ensaios não ocupavam o tempo todo da nova companhia. Eram compartilhados com as tarefas domésticas e com os exercícios vocais e físicos. Cada membro da equipe realizava pesquisas sobre a sua personagem fixa, com o auxílio de uma meia máscara por ele confeccionada, em busca de um figurino, de uma silhueta, de um timbre de voz, de um modo de falar que eram experimentados nas situações mais diversas. Misturando Voltaire, Anatole France e ele mesmo, Chancerel chegou ao esboço de uma personagem que era um «rato de biblioteca» muito loquaz, um pouco louco, meticuloso, de grande suscetibilidade. Tal personagem, ou figura, cujo nome — Sébastien Congre [Sebastião Congro] — aparecera em 1919 com o pseudônimo com que publicou seus Poèmes de T’sin Pao [Poemas de T´sin Pao][9], constitui o embrião do futuro Oncle Sébastien, personagem que Chancerel apresenta no seu teatro para crianças a partir de janeiro de 1935, depois de ter utilizado o mesmo alônimo para assinar alguns artigos do Bulletin des Comédiens Routiers [Boletins dos Atores Itinerantes], desde o seu primeiro número[10]. Tratava-se, sempre, de um erudito, um pouco louco, sorridente, esperto, com a cabeça nas nuvens e os pés no chão[11].

Anatole France - foto em wikipedia

Em várias ocasiões Chancerel definiu a sua companhia teatral, Les Comédiens Routiers [Os Atores Itinerantes] (1929-1939) como «o encontro de uma doutrina dramática com uma doutrina de vida, dentro de uma comunidade com a sua Ordem e a sua Lei»[12]; o encontro de um homem de teatro com jovens que, desejando tornar o teatro um serviço nobre e necessário, possuíam a mesma formação espiritual e física[13], dentro do movimento escoteiro católico denominado Scouts de France (S.D.F.) [Escoteiros da França], preocupado com a formação do espírito e do caráter (observação, imaginação, reflexão, descoberta, invenção, etc.), com a formação profissional (criar o hábito de fazer tudo a fundo), com a formação social (aprender a receber os serviços da sociedade, mas também aprender a devolver e a dar, a olhar para fora de si). Outros movimentos voltados para a juventude coexistiam com o escotismo: a União Cristã dos Jovens, a Liga Francesa do Ensino, a Ação Católica da Juventude Francesa. (Nãoaqui espaço para desenvolver esse aspecto.)

Considera que o ator é o operário do teatro: deve, portanto, ser formado para a sua tarefa com o sentimento de servir e de se dedicar; precisa criar o seu instrumento, preparar o próprio corpo, a própria voz, a imaginação, o espírito. As peças virão como conseqüência.

Com muita clareza quanto à qualidade especificamente dramática que buscará obter de sua equipe, Chancerel começa com paciência a construir o seu trabalho de formação, de pesquisa, de criação e de representação teatrais junto à juventude. Como Jacques Copeau, querendo abrir caminho para a renovação do teatro, começa a experimentar na prática certos princípios: supressão do cenário pintado; adoção de figurinos simples e vivos; uso da máscara, busca de um estilo esportivo, com ritmo rápido, claro e preciso; luta contra o cabotinismo; exaltação dos sentimentos comunitários; preparação lenta e firme dos participantes, sem visar a apresentar imediatamente um espetáculo; combate ao exibicionismo. Considera que o ator é o operário do teatro: deve, portanto, ser formado para a sua tarefa com o sentimento de servir e de se dedicar; precisa criar o seu instrumento, preparar o próprio corpo, a própria voz, a imaginação, o espírito. As peças virão como conseqüência. Para isso, a partir de um roteiro simples, esquemático, cada um inventará a sua personagem, e a experimentará em muitas situações, confrontando-as com as de outras personagens. Desse modo o ator é também autor, poeta.
Desde o início essa equipe — cujas atividades serão interrompidas pela deflagração da Segunda Guerra Mundial — sabia o que pretendia alcançar: adquirir uma técnica sólida; constituir um instrumento dramático vigoroso e flexível; descobrir e instaurar pouco a pouco uma forma teatral jovem e viva, coletiva; constituir um material cênico transportável; representar nos bairros, na periferia, no interior do país, nos hospitais, nas cidades e nos campos; reagir contra o individualismo, contra o esnobismo, contra a cabotinagem e contra o diletantismo; fazer um teatro afinado com as necessidades da «alma popular».
Assim, inserido no âmbito do Centro Dramático de Estudos e Representações Teatrais, fundado por Chancerel, o grupo se responsabilizou também por assegurar um ensino direto (cursos regulares e estágios); por manter contato à distância com os interessados, através de cartas; por publicar um Boletim, instrumento de diálogo e de registro de suas ações. Sua atividade experimental, laboratorial (o organismo de Estudos e Pesquisas) era vivificada, nutrida, pela sua atividade de criação e representação, e vice-versa. Cursos teóricos e práticos abertos aos grupos de juventude e à comunidade em geral, «(...) como um meio de aperfeiçoamento espiritual e físico, pessoal e comunitário, e como um complemento de cultura»[14]; publicações relativas à arte dramática (entre elas, o Bulletin des Comédiens Routiers [Boletim dos Atores Itinerantes] e o Répertoire des Comédiens Routiers [Repertório dos Atores Itinerantes]); os espetáculos da companhia (dramas sacros, comédias, farsas, recitações corais, canções, intermédios, jogos dramáticos improvisados, com ou sem o uso da máscara, cuja credibilidade artística a trupe contribuiu para relançar e reafirmar) tornaram o ator também um pesquisador e um autor.
Desse modo, pacientemente, foram formados quadros para atuar na descentralização cultural ocorrida após 1945, quando, finalmente, houve um interesse do Estado francês em disseminar as artes e a cultura muito além dos «muros» parisienses.

Léon Chancerel - foto em babelio.com

A vasta e variada atividade de Léon Chancerel desencadeou, portanto, um movimento de renovação do teatro — e de interesse por este em atividades da infância, da juventude e de adultos, em situações de formação dramática, seja na escola, seja em comunidades, contribuindo para descentralizar a sua prática, e para aumentar a sua qualidade também junto ao teatro amador e profissional[15]. Sua influência foi sentida em muitos países do mundo. No Brasil, as atividades de Olga Reverbel (com seu TIPIE [Teatro Permanente do Instituto de Educação], em Porto Alegremas principalmente com a sua postura diante do fazer teatral em todos os níveis do ensino), em Porto Alegre, e Maria Clara Machado e O Tablado, no Rio de Janeiro, fizeram eco, na segunda metade do século XX, a esse trabalho, concebido como «serviço dramático», iniciado nos primórdios do século XX e instaurado por Chancerel a partir de 1929.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[BING, Suzanne & CHANCEREL, Léon.] Le Journal de bord des Copiaus; 1924-1929 [O Diário de Bordo dos Copiaus: 1924-1929]. Edition commentée par [edição comentada por] Denis GONTARD. Paris: Seghers, 1974.
BORGAL, Clément. Jacques Copeau. Paris: L´Arche, 1960.
CHANCEREL, Léon. Les Poèmes de T’sin Pao, «traduits du chinois par M. Sébastien Congre, archiviste-paléographe» [Os Poemas de T´sin Pao, traduzidos do chinês pelo Sr. Sebastião Congro, arquivista-paleógrafo], illustr. René Gabriel. Paris: Renaissance du Livre, 1920.
CHANCEREL, Léon. Journal [Diário], [Inédito.]
CHANCEREL, Léon. Bulletin des Comédiens Routiers [Boletim dos Atores Itinerantes]. 1932-1939.
CHANCEREL, Léon [Editorial], in ASSOCIATION DES AMIS DU THÉÂTRE POUR L´ENFANCE ET LA JEUNESSE. Théâtre, Enfance et Jeunesse. Paris, première année [primeiro ano], 1963, I-II. p 3.




A José Ronaldo Faleiro é professor-pesquisador no Departamento de Artes Cênicas do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). — Estas páginas foram escritas a partir do artigo intitulado «Leon Chancerel e o Trabalho com a Infância e a Juventude», publicadas na Revista do 10º FENATIB [Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau]. Blumenau: Prefeitura Municipal de Blumenau/Fundação Cultural de Blumenau, julho de 2007. p. 16-19.
[1] Léon CHANCEREL, [Editorial], in ASSOCIATION DES AMIS DU THÉÂTRE POUR L´ENFANCE ET LA JEUNESSE. Théâtre, Enfance et Jeunesse. Paris, première année,  1963, I-II. p 3.
[2] Id., Journal [Diário], 16 de março de 1920 [inédito].                                      
[3] Id., ib., 13 de março de 1920 [inédito].
[4] Id., ib., 19 de junho de 1920 [inédito].MOUDOÈS, op. cit., p. 115, notes 17 et 18.
[5] Id., ib., 26 de junho de 1921 [inédito].
[6] Léon CHANCEREL, «Courrier» [Correio]. 216. Bulletin des Comédiens Routiers [Boletim dos Atores Itinerantes], 2(11), nov. 1933, p. 213-219.
[7] Léon CHANCEREL, «Feuilles de Route» [2], nº 20, p. 26. Bulletin des Comédiens Routiers d’Ile-de-France [Boletim dos Atores Itinerantes], da Ilha-da-França 1(1), décembre 1932, p. 26.
[8] Le Journal de bord des Copiaus; 1924-1929 [O Diário de Bordo dos Copiaus: 1924-1929]. Edition commentée par Denis GONTARD. Paris: Seghers, 1974.
[9] Les Poèmes de T’sin Pao, «traduits du chinois par M. Sébastien Congre, archiviste-paléographe» [Os Poemas de T´sin Pao, traduzidos do chinês pelo Sr. Sebastião Congro, arquivista-paleógrafo], illustr. René Gabriel. Paris: Renaissance du Livre, 1920.
[10] V. «Feuilles de Route» [Páginas de Orientação], p. 10. Bulletin des Comédiens Routiers d’Ile-de-France [Boletim dos Atores Itinerantes da Ilha-da-França], 1(1), novembro de 1932, p. 10-11 et passim, em que assina «Sébastien» [Sebastião]. V. também «Théâtre de l’Oncle Sébastien» [Teatro do Tio Sebastião], p. 464, Bulletin des Comédiens Routiers, 3(24-25), [fevereiro e] março de 1935, p. 464: «(...) esse complexo Sebastião, tornando-se o Tio (menos dos espectadores que das personagens) encontrou a ocasião de se definir, em função da idade, das incumbências como diretor, e das relações diárias como chefe de companhia (capo comico, diziam os atores italianos) juntamente com os seus jovens colaboradores».
[11] «Nada me fere mais e nada me irrita mais, nada é mais doloroso para mim do que alguém vir me dizer : ‘Você vive sonhando. É um poeta’». Léon CHANCEREL, «Ce qui est important» [O que é importante], p. 3. Bulletin du Centre d’Études et de Représentations Dramatiques [Boletim do Centro de Estudos e de Representações Dramáticas], nº 61, hiver 1939, septième année, quatrième série [inverno de 1939, sétimo ano, quarta rie], p. 1-9.
[12] « Feuilles de Route » [2], não assinado, nº 15, p. 26. Bulletin des Comédiens Routiers d’Ile-de-France [Boletim dos Atores Itinerantes da Ilha-da-França], 1(2), décembre 1932, p. 26-27.
[13] Les Louveteaux [Os Lobinhos], cujo lema é « Faites de votre mieux » [Faça o melhor que puder], são admitidos dos 8 aos 12 anos; os Escoteiros, com o lema «Soyez prêts» [Estejam Prontos/Sempre Alerta], são admitidos dos 11 aos 18; les Routiers [Os Veteranos] são admitidos a partir dos 17 anos e a sua divisa é «Servir». Chancerel constituiu a sua equipe com os Routiers. (Os Scouts de France [Escoteiros da França] preferiram traduzir por «Routiers» a expressão «Rovers-Scouts». Rover vem de «rove», «circular», «vagamundear», «andar de terra em terra», e em inglês geralmente significa «pirata», «corsário», ou também «cavaleiro andante».)
[14] «Centre d´Études Dramatiques d´Île de France», p. 13a do Suplemento de 16p., in Bulletin des Comédiens Routiers d’Ile-de-France [Boletim dos Atores Itinerantes da Ilha-da-França], (1)1, novembro de 1932.
[15] «Não esqueçamos o traço de união que foi Léon Chancerel. (...) Escolhido, na Borgonha, para formar os adolescentes no jogo ritmado, nas semi-improvisações, nas expressões coletivas com a utilização alternada de palavra, canto e dança, a influência de Chancerel, escreve Dussane, foi rápida e imensa. ‘Quase se poderia dizer, sem grande exagero, que todo o teatro não-profissional na França (e a sua importância é considerável) provém dele.’ Quanto aos discípulos desse discípulo : ‘De Chancerel saíram os Comédiens Routiers [Atores Itinerantes]; dos Routiers [Itinerantes], mais ou menos diretamente, les Compagnons de la Chanson [Companheiros da Canção], les Frères Jacques [Irmãos Tiago], le Trio des Quatre [Trio dos Quatro]; enfim, a brilhante Compagnie Grenier-Hussenot [Companhia Grenier-Hussenot].. ‘Acrescentemos os Théophiliens [Teofilianos], de Gustave Cohen, de quem  Chancerel foi inicialmente o conselheiro» (Clément BORGAL. Jacques Copeau. Paris: L´Arche, 1960. p. 295).