A
obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica
Nesta semana resolvemos resgatar um
texto de um filósofo do século passado, devido a pertinência de suas ideias,
com relação às obras de arte e a cultura, ideia aplicável ainda em nossos dias.
Texto
de Walter Benjamin publicado em 1955, extraído do blog: http://www.mariosantiago.net/
(http://www.mariosantiago.net/textos%20em%20pdf/a%20obra%20de%20arte%20na%20era%20da%20sua%20reprodutibilidade%20t%C3%A9cnica.pdf)
(http://www.mariosantiago.net/textos%20em%20pdf/a%20obra%20de%20arte%20na%20era%20da%20sua%20reprodutibilidade%20t%C3%A9cnica.pdf)
Walter Benjamin foto em nextnature.net |
Walter Benedix Schönflies Benjamin nasceu em Berlim, em 15 de julho de 1892, falecendo em setembro de 1940. Foi um ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu alemão.
Associado à Escola de Frankfurt e
à Teoria Crítica, foi fortemente inspirado tanto por autores marxistas, como Bertolt
Brecht, como pelo místico judaico Gershom
Scholem. O seu trabalho, combinando
ideias aparentemente antagônicas do idealismo alemão, do materialismo dialético
e do misticismo judaico, constitui um contributo original para a teoria estética. Entre as suas obras mais
conhecidas, contam-se A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica
(1936), Teses Sobre o Conceito de História (1940) e a monumental e
inacabada Paris, Capital do século XIX, enquanto A Tarefa do Tradutor
constitui referência incontornável dos estudos literários.
Primeira
Versão[i]
Quando
Marx empreendeu a análise do modo de produção capitalista, esse modo de
produção ainda estava em seus primórdios. Marx orientou suas investigações de
forma a dar-lhes valor de prognósticos. Remontou às relações fundamentais da
produção capitalista e, ao descrevê-las, previu o futuro do capitalismo.
Concluiu que se podia esperar desse sistema não somente uma exploração
crescente do proletariado, mas também, em última análise, a criação de
condições para a sua própria supressão.
Em
sua essência, a obra de arte sempre foi reprodutível.
Tendo
em vista que a superestrutura se modifica mais lentamente que a base econômica,
as mudanças ocorridas nas condições de produção precisaram mais de meio século
para refletir-se em todos os setores da cultura. Só hoje podemos indicar de que
forma isso se deu. Tais indicações devem por sua vez comportar alguns
prognósticos. Mas esses prognósticos não se referem a teses sobre a arte de
proletariado depois da tomada do poder, e muito menos na fase da sociedade sem
classes, e sim a teses sobre as tendências evolutivas da arte, nas atuais
condições produtivas. A dialética dessas tendências não é menos visível na
superestrutura que na economia. Seria, portanto, falso subestimar o valor
dessas teses para o combate político. Elas põem de lado numerosos conceitos
tradicionais - como criatividade e gênio, validade eterna e estilo, forma e
conteúdo - cuja aplicação incontrolada, e no momento dificilmente controlável,
conduz à elaboração dos dados num sentido fascista. Os conceitos seguintes,
novos na teoria da arte, distinguem-se dos outros pela circunstância de não
serem de modo algum apropriáveis pelo fascismo. Em compensação, podem ser
utilizados para a formulação de exigências revolucionárias na política
artística.
Karl Marx foto no site Resumo Escolar |
Reprodutibilidade técnica
Em
sua essência, a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens faziam
sempre podia ser imitado por outros homens. Essa imitação era praticada por
discípulos, em seus exercícios, pelos mestres, para a difusão das obras, e
finalmente por terceiros, meramente interessados no lucro. Em contraste, a
reprodução técnica da obra de arte representa um processo novo, que se vem
desenvolvendo na história intermitentemente, através de saltos separados por
longos intervalos, mas com intensidade crescente. Com a xilogravura, o desenho
tornou-se pela primeira vez tecnicamente reprodutível, muito antes que a
imprensa prestasse o mesmo serviço para a palavra escrita. Conhecemos as
gigantescas transformações provocadas pela imprensa - a reprodução técnica da
escrita. Mas a imprensa representa apenas um caso especial, embora de
importância decisiva, de um processo histórico mais amplo. À xilogravura, na
Idade Média, seguem-se à estampa em chapa de cobre e a água-forte, assim como a
litografia, no inicio do século XIX.
Mesmo
na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra
de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra. E nessa
existência única, e somente nela, que se desdobra à história da obra.
Com
a litografia, a técnica de reprodução atinge uma etapa essencialmente nova.
Esse procedimento muito mais preciso que distingue a transcrição do desenho
numa pedra de sua incisão sobre um bloco de madeira ou uma prancha de cobre,
permitiu às artes gráficas pela primeira vez colocar no mercado suas produções
não somente em massa, como já acontecia antes, mas também sob a forma de
criações sempre novas. Dessa forma, as artes gráficas adquiriram os meios de
ilustrar a vida cotidiana. Graças à litografia, elas começaram a situar-se no
mesmo nível que a imprensa. Mas a litografia ainda estava em seus primórdios,
quando foi ultrapassada pela fotografia. Pela primeira vez no processo de
reprodução da imagem, a mão foi liberada das responsabilidades artísticas mais
importantes, que agora cabiam unicamente ao olho. Como o olho apreende mais
depressa do que a mão desenha, o processo de reprodução das imagens
experimentou tal aceleração que começou a situar-se no mesmo nível que a
palavra oral. Se o jornal ilustrado estava contido virtualmente na litografia,
o cinema falado estava contido virtualmente na fotografia. A reprodução técnica
do som iniciou-se no fim do século passado. Com ela, a reprodução técnica
atingiu tal padrão de qualidade que ela não somente podia transformar em seus
objetos a totalidade das obras de arte tradicionais, submetendo-as a
transformações profundas como conquistar para si um lugar próprio entre os
procedimentos artísticos. Para estudar esse padrão, nada é mais instrutivo que
examinar como suas duas funções - a reprodução da obra de arte e a arte
cinematográfica repercutem uma sobre a outra.
Foto sobre o processo litográfico, extraída do flickr de Alejandro Soto |
Autenticidade
Mesmo
na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra
de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra. E nessa
existência única, e somente nela, que se desdobra à história da obra. Essa
história compreende não apenas as transformações que ela sofreu, com a passagem
do tempo, em sua estrutura física, como as relações de propriedade em que ela
ingressou. Os vestígios das primeiras só podem ser investigados por análises
químicas ou físicas, irrealizáveis na reprodução; os vestígios das segundas são
o objeto de uma tradição, cuja reconstituição precisa partir do lugar em que se
achava o original.
Na
medida em que ela multiplica a reprodução, substitui a existência única da obra
por uma existência serial.
O
aqui e agora do original constitui o conteúdo da sua autenticidade, e nela se
enraíza uma tradição que identifica esse objeto, até os nossos dias, como sendo
aquele objeto, sempre igual e idêntico a si mesmo. A esfera da autenticidade,
como um todo, escapa a reprodutibilidade técnica, e naturalmente não apenas à
técnica. Mas, enquanto o autêntico preserva toda a sua autoridade com relação à
reprodução manual, em geral considerada uma falsificação, o mesmo não ocorre no
que diz respeito à reprodução técnica, e isso por duas razões. Em primeiro
lugar, relativamente ao original, reprodução técnica tem mais autonomia que a
reprodução manual. Ela pode, por exemplo, pela fotografia, acentuar certos
aspectos do original, acessíveis à objetiva - ajustável e capaz de selecionar
arbitrariamente o seu ângulo de observação, mas não acessíveis ao olhar humano.
Ela pode, também, graças a procedimentos como a ampliação ou a câmera lenta,
fixar imagens que fogem inteiramente à ótica natural. Em segundo lugar, a
reprodução técnica pode colocar a cópia do original em situações impossíveis
para o próprio original. Ela pode, principalmente, aproximar do indivíduo a
obra, seja sob a forma da fotografia, seja do disco. A catedral abandona seu
lugar para instalar-se no estúdio de um amador; o coro, executado numa sala ou
ao ar livre, pode ser ouvido num quarto.
Mesmo
que essas novas circunstâncias deixem intacto o conteúdo da obra de arte, elas
desvalorizam, de qualquer modo, o seu aqui e agora. Embora esse fenômeno não
seja exclusivo da obra de arte, podendo ocorrer, por exemplo, numa paisagem,
que aparece num filme aos olhos do espectador, ele afeta a obra de arte em um
núcleo especialmente sensível que não existe num objeto da natureza: sua
autenticidade. A autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo o que foi
transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material
até o seu testemunho histórico. Como este depende da materialidade da obra,
quando ela se esquiva do homem através da reprodução, também o testemunho se
perde. Sem dúvida, só esse testemunho desaparece, mas o que desaparece com ele
a autoridade da coisa, seu peso tradicional.
O
conceito de aura permite resumir essas características: o que se atrofia na era
da reprodutibilidade técnica da obra de arte é sua aura. Esse processo é
sintomático, e sua significação vai muito além da esfera da arte.
Generalizando, podemos, dizer que a técnica da reprodução destaca o domínio da
tradição o objeto reproduzido. Na medida em que ela multiplica a reprodução,
substitui a existência única da obra por uma existência serial. E, na medida em
que essa técnica permite à reprodução vir ao encontro do espectador, em todas
as situações, ela atualiza o objeto reproduzido. Esses dois processos resultam
num violento abalo da tradição, que constitui o reverso da crise atual e a
renovação da humanidade. Eles se relacionam intimamente com os movimentos de
massa, em nossos dias. Seu agente mais poderoso é o cinema. Sua função social
não é concebível, mesmo em seus traços mais positivos, e precisamente neles,
sem seu lado destrutivo e catártico: a liquidação do valor tradicional do
patrimônio da cultura. Esse fenômeno é especialmente tangível nos grandes
filmes históricos, de Cleópatra e Ben Hur até Frederico, o Grande e Napoleão. E
quando Abel Gance, em 1927, proclamou com entusiasmo: "Shakespeare,
Rembrandt, Beethoven, farão cinema... Todas as lendas, todas as mitologias e
todos os mitos todos os fundadores de novas religiões, sim, todas as
religiões... aguardam sua ressurreição luminosa, e os heróis se acotovelam às
nossas portas" ele nos convida, sem o saber talvez, para essa grande
liquidação.
Filme Ben Hur (1959) Foto extraída do site Plano Crítico |
Destruição da aura
No
interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades
humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência. O modo pelo
qual se organiza a percepção humana, o meio em que ela se dá, não é apenas
condicionado naturalmente, mas também historicamente. A época das invasões dos
bárbaros, durante a qual surgiram as indústrias artísticas do Baixo Império
Romano e a Gênese de Viena, não tinha apenas uma arte diferente da que
caracterizava o período clássico, mas também outra forma de percepção. Os
grandes estudiosos da escola vienense, Riegl Wickhoff, que se revoltaram contra
o peso da tradição classicista, sob o qual aquela arte tinha sido soterrada,
foram os primeiros a tentar extrair dessa arte algumas conclusões sob a organização
da percepção nas épocas em que ela estava em vigor. Por mais penetrantes que
fossem, essas conclusões estavam limitadas pelo fato de que esses pesquisadores
se contentaram em descrever as características formais do estilo percepção
característico do Baixo Império. Não tentaram, talvez não tivessem a esperança
de consegui-lo, mostrar as convulsões sociais que se exprimiram nessas
metamorfoses da percepção. Em nossos dias, as perspectivas de empreender com
êxito semelhante pesquisa são mais favoráveis, e, se fosse possível compreender
as transformações contemporâneas da faculdade perceptiva segundo a ótica do
declínio da aura, as causas sociais dessas transformações se tornariam
inteligíveis.
Em
suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e
temporais: a aparição única de uma coisa distante por mais perto que ela
esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no
horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a
aura dessas montanhas, desse galho. Graças a essa definição, é fácil
identificar os fatores sociais específicos que condicionam o declínio atual da
aura. Ela deriva de duas circunstâncias, estreitamente ligadas à crescente
difusão e intensidade dos movimentos de massas. Fazer as coisas "ficarem
mais próximas" é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como
sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua
reprodutibilidade. Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o
objeto, de tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na sua
reprodução. Cada dia fica mais nítido a diferença entre a reprodução, como ela
nos é oferecida pelas revistas ilustradas e pelas atualidades cinematográficas,
e a imagem. Nesta, a unidade e a durabilidade se associam tão intimamente como,
na reprodução, a transitoriedade e a repetibilidade. Retirar o objeto do seu
invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja
capacidade de captar "o semelhante no mundo” é tão aguda, que graças à
reprodução ela consegue captá-lo até no fenômeno único. Assim se manifesta na
esfera sensorial a tendência que na esfera teórica explica a importância
crescente da estatística. Orientar a realidade em função das massas e as massas
em função da realidade é um processo de imenso alcance, tanto para o pensamento
como para a intuição.
o
valor único da obra de arte “autentica” tem sempre um fundamento teológico
Ritual e política
A
unicidade da obra de arte é idêntica à sua inserção no contexto da tradição.
Sem dúvida, essa tradição é algo de vivo, de extraordinariamente variável. Uma
antiga estátua de Vênus, por exemplo, estava inscrito numa certa tradição entre
os gregos, que faziam dela um objeto de culto, e em outra tradição na Idade
Média, quando os doutores da Igreja viam nela um ídolo malfazejo. O que era
comum às duas tradições, contudo, era a unicidade da obra ou, em outras
palavras, sua aura. A forma mais primitiva de sua inserção da obra de arte no
contexto da tradição se exprimia no culto. As mais antigas obras de arte, como
sabemos, surgiram a serviço de um ritual, inicialmente mágico, e depois
religioso. O que é de importância decisiva é que esse modo de ser aurático da
obra de arte nunca se destaca completamente de sua função ritual. Em outras
palavras: o valor único da obra de arte “autentica” tem sempre um fundamento
teológico, por mais remoto que seja: ele pode ser reconhecido, como ritual
secularizado, mesmo nas formas mais profanas do culto do Belo. Essas formas,
profanas do culto do Belo, surgidas na Renascença e vigente durante três
séculos, deixaram manifesto esse fundamento quando sofreram seu primeiro abalo
grave. Com efeito, quando o advento da primeira técnica de reprodução
verdadeiramente revolucionária - a fotografia, contemporânea do início do
socialismo - levou a arte a pressentir a proximidade de uma crise, que só fez
aprofundar-se nos cem anos seguintes, ela reagiu ao perigo iminente com a
doutrina da arte pela arte, que é no fundo uma teologia da arte. Dela resultou
a teologia negativa da arte, sob a forma de uma arte pura, que não rejeita
apenas toda função social, mas também qualquer determinação objetiva (Na
literatura, foi Mallarmé o primeiro a alcançar esse estágio.). É indispensável levar
em conta essas relações em um estudo que se propõe estudar a arte na era de sua
reprodutibilidade técnica. Porque elas preparam o caminho para a descoberta
decisiva: com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se emancipa, pela
primeira vez na história, de sua existência parasitária, destacando-se do
ritual: Á obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma obra de
arte criada para ser reproduzida. A chapa fotográfica, por exemplo, permite uma
grande variedade de cópias; a questão da autenticidade das cópias não tem
nenhum sentido. Mas, no momento em que o critério da autenticidade deixa de
aplicar-se à produção artística, toda a função social da arte' se transforma.
Em vez de fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se em outra práxis: a
política.
Nas
obras cinematográficas, a reprodutibilidade técnica do produto não é, como no
caso da literatura ou da pintura, uma condição externa para sua difusão maciça.
A reprodutibilidade técnica do filme tem
seu fundamento imediato na técnica de sua produção. Esta não apenas permite, da
forma mais imediata, a difusão em massa da obra cinematográfica, como a torna
obrigatória. A difusão se torna obrigatória, porque a produção de um filme é
tão cara que um consumidor que poderia, por exemplo, pagar um quadro, não pode
mais pagar um filme. O filme é uma criação da coletividade. Em 1927,
calculou-se que um filme de longa metragem, para ser rentável, precisaria
atingir um público de nove milhões de pessoas. É certo que o cinema falado
representou, inicialmente, um retrocesso; seu público restringiu-se ao
delimitado pelas fronteiras linguísticas, e esse fenômeno foi concomitante com
a ênfase dada pelo fascismo aos interesses nacionais. Mais importante, contudo,
que registrar esse retrocesso, que de qualquer modo será em breve compensado
pela sincronização, é analisar sua relação com o fascismo. A simultaneidade dos
dois fenômenos se baseia na crise econômica. As mesmas turbulências que de modo
geral levaram à tentativa de estabilizar as relações de propriedade vigentes
pela violência aberta, isto é, segundo formas fascistas, levaram o capital
investido na indústria cinematográfica, ameaçado, a preparar o caminho para o
cinema falado. A introdução do cinema falado aliviou temporariamente a crise. E
isso não somente porque com ele as massas voltaram a frequentar as salas de
cinema, como porque criou vínculos de solidariedade entre os novos capitais da
indústria elétrica e os aplicados na produção cinematográfica, Assim, se numa
perspectiva externa, o cinema falado estimulou interesses nacionais, visto de
dentro ele internacionalizou a produção cinematográfica numa escala ainda
maior.
Valor de culto e valor de exposição
Seria
possível reconstituir a história da arte a partir do confronto de dois polos,
no interior da própria obra de arte, e ver o conteúdo dessa história na
variação do peso conferido seja a um polo, seja a outro. Os dois polos são o
valor de culto da obra e seu valor de exposição. A produção artística começa
com imagens a serviço da magia. O que importa, nessas imagens é que elas
existem, e não que sejam vistas. O alce copiado pelo homem paleolítico nas
paredes de sua caverna é um instrumento de magia, só ocasionalmente exposto aos
olhos dos outros homens: no máximo, ele deve ser visto pelos espíritos. O valor
de culto como tal, quase obriga a manter secretas as obras de arte: certas
estátuas divinas somente são acessíveis ao sumo sacerdote, na cella, certas madonas permanecem
cobertas quase o ano inteiro, certas esculturas em catedrais da Idade Média são
invisíveis, do solo, para o observador. À
medida que as obras de arte se emancipam do seu uso ritual, aumentam as
ocasiões para que elas sejam expostas. A exponibilidade de um busto, que
pode ser deslocado de um lugar para outro, é maior que a de uma estátua divina,
que tem sua sede fixa no interior de um templo. A exponibilidade de um quadro é
maior do que a de um mosaico ou de um afresco, que o precederam. E se a exponibilidade
de uma missa, por sua própria natureza, não era talvez menor que a de uma
sinfonia, esta surgiu num momento em que sua exponibilidade prometia ser maior
que a da missa. A exponibilidade de uma obra de arte cresceu em tal escala, com
os vários métodos de sua reprodutibilidade técnica, que a mudança de ênfase de
um polo para outro corresponde a uma mudança qualitativa comparável à que
ocorreu na pré-história. Com efeito, assim como na pré-história a
preponderância absoluta do valor de culto conferido à obra levou-a a ser
concebida em primeiro lugar como instrumento mágico, e só mais tarde como obra
de arte, do mesmo modo a preponderância absoluta conferida hoje a seu valor de
exposição atribui-lhe funções inteiramente novas, entre as quais a "artística",
a única de que temos consciência, talvez se revele mais tarde como secundária.
Uma coisa é certa: o cinema nos fornece a base mais útil para examinar essa
questão. É certo, também, que o alcance histórico dessa refuncionalização da
arte, especialmente visível no cinema, permite um confronto com a pré-história
da arte, não só do ponto de vista metodológico como material. Essa arte
registrava certas imagens a serviço da magia, com funções práticas, seja como
execução de atividades mágicas, seja a titulo de ensinamento dessas práticas
mágicas, seja como objeto de contemplação, à qual se atribuíam efeitos mágicos.
Os temas dessa arte eram o homem e seu meio, copiados segundo exigências de uma
sociedade cuja técnica se fundia inteiramente com o ritual. Essa sociedade é a
antítese da nossa, cuja técnica é a mais emancipada que jamais existiu. Mas
essa técnica emancipada se confronta com a sociedade moderna sob a forma de uma
segunda natureza, não menos elementar que a sociedade primitiva, como provam as
guerras e as crises econômicas. Diante dessa segunda natureza que o homem
inventou, mas há muito não controla, somos obrigados a render, como outrora
diante da primeira. Mais uma vez, a arte põe-se a serviço desse aprendizado.
Isso se aplica, em primeira instância, ao cinema. O filme serve para exercitar
o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo
papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho
técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas - é essa a tarefa
histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido.
Fotografia
Eugène Atget Foto do site moma.org |
Com
a fotografia, o valor de culto começa a recuar, em todas as frentes, diante do
valor de exposição. Mas o valor de culto não se entrega sem oferecer
resistência. Sua última trincheira é o rosto humano. Não é por acaso que o
retrato era o principal tema das primeiras fotografias. O refúgio derradeiro
valor de culto foi o culto da saudade, consagrada aos ausentes ou defuntos. A aura
acena pela última vez na expressão fugaz de um rosto nas antigas fotos. É o que
lhes dá sua beleza melancólica e incomparável. Porém, quando o homem se retira
da fotografia, o valor de exposição supera pela primeira vez o valor de culto.
O mérito inexcedível de Atget é ter radicalizado esse processo ao fotografar as
ruas de Paris, desertas de homens, por volta de 1900. Com justiça, escreveu-se
dele que fotografou as ruas como quem fotografa o local de um crime. Também
esse local é deserto. É fotografado por causa dos indícios que ele contém. Com o
valor único da obra de arte “autentica” tem sempre um fundamento teológico, as
fotos se transformam em autos no processo da história. Nisso a sua significação
política é latente. Essas fotos orientam a recepção num sentido predeterminado.
A contemplação livre é adequada a eles. Elas inquietam o observador, que
pressente que deve seguir um caminho definido para se aproximar delas. Ao mesmo
tempo as revistas ilustradas começam a mostrar-lhe indicadores de caminho -
verdadeiros ou falsos pouco importa. Nas revistas as legendas explicativas se
tornam pela primeira vez obrigatórias. É evidente que esses textos têm um
caráter completamente distinto dos títulos de quadro. As instruções que o
observador recebe dos jornais ilustrados através das legendas se tornarão, em
seguida, ainda mais precisas e imperiosas no cinema, em que a compreensão de
cada imagem é condicionada pela sequencia de todas as imagens anteriores.
Valor de eternidade
Belerofonte enfrentando a quimera - terracota de III a.C. foto em profjuliososa.com.br |
Os
gregos só conheciam dois processos técnicos para a reprodução de obras de arte:
o molde e a cunhagem. As moedas e terracotas eram as únicas obras de arte por
eles fabricadas em massa. Todas as demais eram únicas e tecnicamente
irreprodutíveis. Por isso, precisavam ser únicas e construídas para a
eternidade. Os gregos foram obrigados,
pelo estágio sua da técnica, a produzir valores eternos. Devem a essa
circunstancia o seu lugar privilegiado na história da arte e sua capacidade de
marcar, com seu próprio ponto de vista, toda a evolução artística posterior.
Não há dúvida de que esse ponto de vista se encontra no polo oposto ao nosso.
Nunca as obras arte foram reprodutíveis tecnicamente, em tal escala e
amplitude, como em nossos dias. O filme é uma forma cuja característica é em
grande parte determinado por sua reprodutibilidade. Seria ocioso confrontar
essa forma em todas as suas particularidades, com a arte grega. Mas num ponto
preciso esse confronto é possível. Com o cinema a obra de arte adquiriu um
atributo decisivo que os gregos ou não aceitariam, ou considerariam o menos
essencial de todos: a perfectibilidade O filme acabado não é produzido de um só
jato, e sim montado a partir de inúmeras imagens isoladas e de sequencias de
imagens entre as quais o montador exerce seu direito de escolha - imagens
aliás, que poderiam, desde o início da filmagem, ter sido corrigidas sem
qualquer restrição. Para produzir A opinião
pública, com uma duração de 3 000 metros Chaplin filmou 125 000 metros. O
filme, pois, a mais perfectível das obras de arte. O fato de que essa
perfectibilidade se relaciona com a renúncia radical aos valores eternos pode
ser demonstrado por uma contraprova. Para os gregos, cuja arte visava à
produção de valores eternos, a mais alta das artes era a menos perfectível, a
escultura, cujas criações se fazem literalmente a partir de um só bloco. Daí o
declínio inevitável da escultura na era da obra de arte montável.
Charles Chaplin foto no blog intrinseca.com.br |
Fotografia e cinema como arte
A
controvérsia travada no século XIX entre a pintura e a fotografia quanto ao
valor artístico de suas respectivas produções parece-nos hoje irrelevante e
confusa. Mas, longe de reduzir o alcance dessa controvérsia, tal fato serve, ao
contrário, para sublinhar sua significação. Na realidade essa polêmica ou a
expressão de uma transformação histórica, que como tal, não se tornou
consciente para nenhum dos antagonistas. Ao se emancipar dos seus fundamentos
no culto, na era da reprodutibilidade técnica, a arte perdeu qualquer aparência
de autonomia. Porém a época não se deu conta da refuncionalização da arte,
decorrente dessa circunstância.
Ela
não foi percebida, durante muito tempo, nem sequer no século XX, quando o
cinema se desenvolveu. Muito se escreveu, no passado, de modo tão sutil como
estéril, sobre a questão de saber se a fotografia era ou não uma arte, sem que se
colocasse sequer a questão prévia de saber se
a invenção da fotografia não havia alterado a própria natureza da arte.
Hoje,
os teóricos do cinema retomam a questão na mesma perspectiva superficial. Mas
as dificuldades com que a fotografia confrontou a estética tradicional eram
brincadeiras infantis em comparação com as suscitadas pelo cinema. Daí a
violência cega que caracteriza os primórdios da teoria cinema - topográfica.
Assim, Abel Gance compara o filme com os hieróglifos. "Nous voilà, par un prodigieux retour en
arrière, revenussur le plan d'éxpression des Egyptiens... Le langage des image
n’est pas encore au point parce que nos yeux ne sont pas encore faits pour
elles. II n'y a pas encore assei de respect, e culte, pour ce qu'elles
exprinient." Ou, como escreve Séverin-Mars: "Quel art eut un rêve...plus poétique à Ia fois et plus réel.
Considéré ainsi, le cinématographe deviendrait un moyen d'expressioii tout à
falt exceptionnei, et dans son, inosphère ne devraient se mouvoir que des
personnages de peiisée Ia plus supéricure, aux nionients le plus parlaits et
les plus mystérieux de leur course".[ii] É
revelador como o esforço de conferir ao cinema a dignidade da "arte"
obriga esses teóricos, com uma inexcedível brutalidade, a introduzir na obra
elementos vinculados ao culto. E, no entanto, na época em que foram publicadas
essas especulações, já existiam obras como a opinião pública ou “Em busca do ouro”, o que não impediu
Abel Gance de falar de uma escrita sagrada e Séverin-Mars falar do cinema como
quem fala das figuras de Fra Angelico. É típico que ainda hoje autores
especialmente reacionários busquem na mesma direção o significado do filme e o
vejam, senão na esfera do sagrado, pelo menos na do sobrenatural. Comentando a
transposição cinematográfica, por Reinhardt do Sonho de uma noite de verão,
Werfel observa que é a tendência estéril de copiar o mundo exterior, com suas
ruas, interiores, estações, restaurantes, automóveis e praças, que têm impedido
o cinema de incorporar-se ao domínio da arte. “O cinema ainda não compreendeu seu verdadeiro sentido, suas
verdadeiras possibilidades... Seu sentido está na sua facilidade característica
de exprimir, por meios naturais e com uma incomparável força de persuasão, a
dimensão do fantástico do miraculoso e do sobrenatural."[iii].
Abel Gance foto wikipedia |
Cinema e teste
Fotografar
um quadro é um modo de reprodução; fotografar num estúdio um acontecimento
fictício é outro. No primeiro caso, o objeto reproduzido é uma obra de arte, e
a re-produção não o é. Pois o desempenho do fotógrafo manejando sua objetiva
tem tão pouco a ver com a arte como o de um maestro regendo uma orquestra
sinfônica: na melhor das hipóteses, é um desempenho artístico. O mesmo não
ocorre no caso de um estúdio cinematográfico. O objeto reproduzido não é mais
uma obra de arte, e a reprodução não o é tampouco, como no caso anterior. Na
melhor das hipóteses, a obra de arte surge através da montagem, na qual cada
fragmento é a reprodução de um acontecimento que nem constitui em si uma obra
de arte, nem engendra uma obra de arte, ao ser filmado. Quais são esses
acontecimentos não-artísticos re-produzidos no filme?
A
resposta está na forma sui generis
com que o ator cinematográfico representa o seu papel. Ao contrário do ator de
teatro, o intérprete de um filme não representa diante de um público qualquer a
cena a ser reproduzida, e sim diante de um grêmio de especialistas - produtor,
diretor, operador, engenheiro do som ou da iluminação, etc. - que a todo o
momento tem o direito de intervir. Do ponto de vista social, é uma característica
muito importante. A intervenção de um grêmio de técnicos é, com efeito, típica
do desempenho esportivo e, em geral, da execução de um teste. É uma intervenção
desse tipo que determina, em grande parte, o processo de produção
cinematográfica. Como se sabe, muitos trechos são filmados em múltiplas
variantes. Um grito de socorro, por exemplo, pode ser registrado em várias
versões. O montador procede então à seleção, escolhendo uma delas como quem
proclama um recorde. Um acontecimento filmado no estúdio distingue-se assim de
um acontecimento real como um disco lançado num estádio, numa competição
esportiva, se distingue do mesmo disco, no mesmo local, com a mesma trajetória
e cujo lançamento tivesse como efeito a morte de um homem. O primeiro ato seria
a execução de um teste, mas não o segundo.
Porém
a execução desse teste, por parte do ator de cinema, tem uma característica
muito especial. Ela consiste em ultrapassar certo limite que restringe num
âmbito muito estreito o valor social dos testes. Esse limite não se aplica à
competição esportiva e sim aos testes mecanizados. O esportista só conhece, num
certo sentido, os testes naturais. Ele executa tarefas impostas pela natureza,
e não por um aparelho, salvo casos excepcionais, como o do atleta Nurmi, de
quem se dizia que "corria contra o relógio". Ao contrário, o processo
do trabalho submete o operário a inúmeras provas mecânicas, principalmente
depois da introdução da cadeia de montagem. Essas provas ocorrem
implicitamente: quem não as passa com êxito, é excluído do processo do
trabalho. Elas podem também ser explícitas, como nos institutos de orientação
profissional. Num e noutro caso, aparece o limite acima referido. Ele consiste
no seguinte: essas provas não podem ser mostradas, como seria desejável, e como
acontece com as provas esportivas. E esta é a especificidade do cinema: ele torna mostrável a execução do teste, na
medida em que transforma num teste essa "mostrabilidade". O
intérprete do filme não representa diante de um público, mas de um aparelho. O
diretor ocupa o lugar exato que o controlador ocupa num exame de habilitação
profissional. Representar à luz dos refletores e ao mesmo tempo atender às
exigências do microfone é uma prova extremamente rigorosa. Ser aprovado nela
significa para o ator conservar sua dignidade humana diante do aparelho. O
interesse desse desempenho é imenso. Porque é diante de um aparelho que a
esmagadora maioria dos citadinos precisa alienar-se de sua humanidade, nos
balcões e nas fábricas, durante o dia de trabalho. À noite, as mesmas massas
citaram os cinemas para assistirem à vingança que o intérprete executa em nome
delas, na medida em que o ator não somente afirma diante do aparelho sua
humanidade (ou o que aparece como tal aos olhos dos espectadores), como coloca
esse aparelho a serviço do seu próprio triunfo.
O intérprete cinematográfico
“...
a arte dramática é de todas a que enfrenta a crise mais manifesta. Pois nada
contrasta mais radicalmente com a obra de arte sujeita ao processo de
reprodução técnica, [...], do que a obra teatral, caracterizada pela atuação
sempre nova e originária do ator.”
Para
o cinema é menos importante o ator representar diante do público um personagem
do que ele representar a si mesmo diante do aparelho. Pirandello foi um dos
primeiros a pressentir essa metamorfose do ator através da experiência do
teste. A circunstância de que seus comentários, no romance Si gira, limitam-se a salientar o lado negativo desse processo, em
nada diminui o alcance de tais observações. Elas não são afetadas tampouco pelo
fato de que está se referindo ao cinema mudo, pois o cinema falado não trouxe a
esse processo qualquer modificação decisiva. O importante é que o intérprete representa
para um aparelho, ou dois, no caso do cinema falado. "O ator de
cinema", diz Pirandello, "sente-se exilado. Exilado não somente do
palco, mas de si mesmo. Com um obscuro mal-estar, ele sente o vazio
inexplicável resultante do fato de que seu corpo perde a substância,
volatiliza-se, é privado de sua realidade, de sua vida, de sua voz, e até dos
ruídos que ele produz ao deslocar-se, para transformar-se numa imagem muda que
estremece na tela e depois desaparece em silêncio. A câmara representa com sua
sombra diante do público e ele próprio deve resignar-se a representar diante da
câmara."[iv]
Luigi Pirandello foto no blog de Maura Voltarelli |
Com
a representação do homem pelo aparelho a auto - alienação humana encontrou uma
aplicação altamente criadora. Essa aplicação pode ser avaliada pelo fato de que
a estranheza do intérprete diante do aparelho, segundo a descrição de
Pirandello, é da mesma espécie que a estranheza do homem, no período romântico,
diante de sua imagem no espelho, tema favorito de Jean-Paul, como se sabe. Hoje
essa imagem especular se torna destacável e transportável. Transportável para
onde? Para um lugar em que ela possa ser vista pela massa. Naturalmente o
intérprete tem plena consciência desse fato, em todos os momentos. Ele sabe,
quando está diante da câmara, que sua relação é, em última instância, com a
massa. É ela que vai controlá-lo. E ela, precisamente, não está visível, não
existe ainda, enquanto o ator executa a atividade que será por ela controlada.
Mas a autoridade desse controle é reforçada por tal invisibilidade. Não se
deve, evidentemente, esquecer que a utilização política desse controle terá que
esperar até que o cinema se liberte da sua exploração pelo capitalismo. Pois o
capital cinematográfico dá um caráter contra-revolucionário às oportunidades revolucionárias
imanentes a esse controle. Esse capital estimula o culto do estrelato, que não
visa conservar apenas a magia da personalidade, há muito reduzida ao clarão
putrefato que emana do seu caráter de mercadoria, mas também o seu complemento,
o culto do público, e estimula, além disso, a consciência corrupta das massas,
que o fascismo tenta por no lugar de sua consciência de classe.
A arte contemporânea será tanto
mais eficaz quanto mais se orientar em função da reprodutibilidade e, portanto,
quanto menos colocar em seu centro a obra original.
É óbvio, à luz dessas reflexões, por que a arte dramática é de todas a que
enfrenta a crise mais manifesta. Pois nada contrasta mais radicalmente com a
obra de arte sujeita ao processo de reprodução técnica, e por ele engendrada, a
exemplo do cinema, do que a obra teatral, caracterizada pela atuação sempre
nova e originária do ator. Isso é confirmado por qualquer exame sério da
questão. Desde muito, os observadores especializados reconheceram que "os
maiores efeitos são alcançados quando os atores representam o menos
possível". Segundo Arnheim, em 1932, "o estágio final será atingido
quando o intérprete for tratado como um acessório cênico, escolhido por suas
características... e colocado no lugar certo".[v] Há
outra circunstância correlata, o ator de teatro, ao aparecer no palco, entra no
interior de um papel. Essa possibilidade é muitas vezes negada ao ator de
cinema. Sua atuação não é unitária, mas decomposta em várias sequencias
individuais cuja concretização é determinada por fatores puramente aleatórios,
como o aluguel do estúdio, disponibilidade dos outros atores, cenografia, etc.
Assim, pode-se filmar, no estúdio, um ator saltando de um andaime, como se
fosse uma janela, mas a fuga subsequente será talvez rodada semanas depois,
numa tomada externa. Exemplos ainda mais paradoxais de montagem são possíveis.
O roteiro pode exigir, por exemplo, que um personagem se assuste, ouvindo uma
batida na porta. O desempenho do intérprete pode não ter sido satisfatório.
Nesse caso, o diretor recorrerá ao expediente de aproveitar a presença
ocasional do ator no local da filmagem e, sem aviso prévio, mandará que
disparem um tiro às suas costas. O susto do intérprete pode ser registrado
nesse momento e incluído na versão final. Nada demonstra mais claramente que a
arte abandonou a esfera da "bela aparência", longe da qual, como se
acreditou muito tempo, nenhuma arte teria condições de florescer.
O
procedimento do diretor, que para filmar o susto do personagem provoca
experimentalmente um susto real no intérprete, é totalmente adequado ao
universo cinematográfico. Durante a
filmagem, nenhum intérprete pode reivindicar o direito de perceber o contexto
total no qual se insere sua própria ação. A exigência de um desempenho
independente de qualquer contexto vivido, através de situações externas ao
espetáculo, é comum a todos os testes, tanto os esportivos como os
cinematográficos. Esse fato foi ocasionalmente posto em evidência por Asta
Nielsen, de modo impressionante. Certa vez, houve uma pausa no estúdio.
Rodava-se um filme baseado em O idiota,
de Dostoievski. Asta Nielsen, que representava o papel de Aglaia, conversava
com um amigo. A cena seguinte, uma das mais importantes, seria o episódio em
que Aglaia observa de longe o príncipe Mishkin, passeando com Nastassia
Filippovna, e começa a chorar. Asta Nielsen, que durante a conversa recusara
todos os elogios do seu interlocutor, viu de repente a atriz que fazia o papel
de Nastassia, tomando seu café da manhã, enquanto caminhava de um lado para
outro. "Veja, é assim que eu compreendo a arte de representar no
cinema", disse Asta Nielsen a seu visitante, encarando-o com olhos que se
tinham enchido de lágrimas, ao ver a outra atriz, exatamente como teria que
fazer na cena seguinte, e sem que um músculo de sua face se tivesse alterado.
Asta Nielsen foto Pinterest - Explore Senhoras do vintage... |
As
exigências técnicas impostas ao ator de cinema são diferentes das que se
colocam para o ator de teatro. Os astros cinematográficos só muito raramente
são bons atores, no sentido do teatro. Ao contrário, em sua maioria foram
atores de segunda ou terceira ordem, aos quais o cinema abriu uma grande
carreira. Do mesmo modo, os atores de cinema que tentaram passar da tela para o
palco não foram, em geral, os melhores, e na maioria das vezes a tentativa
malogrou. Esse fenômeno está ligado à natureza especifica do cinema, pela qual
é menos importante que o intérprete represente um personagem diante do público
que ele represente a si mesmo diante da câmara. O ator cinematográfico típico
só representa a si mesmo. Nisso, essa arte é a antítese da pantomima. Essa circunstância
limita seu campo de ação no palco, mas o amplia extraordinariamente no cinema.
Pois o astro de cinema impressiona seu público, sobretudo porque parece abrir a
todos, a partir do seu exemplo, a possibilidade de "fazer cinema". A ideia
de se fazer reproduzir pela câmara exerce uma enorme atração sobre o homem
moderno. Sem dúvida, os adolescentes de outrora também sonhavam em entrar no
teatro. Porém o sonho de fazer cinema tem sobre o anterior duas vantagens
decisivas. Em primeiro lugar é realizável, porque o cinema absorve muito mais
atores que o teatro, já que no filme cada intérprete representa somente a si
mesmo. Em segundo lugar, é mais audacioso, porque a ideia de uma difusão em
massa da sua própria figura, de sua própria voz, faz empalidecer a glória do
grande artista teatral.
O
rádio e o cinema não modificam apenas a função do intérprete profissional, mas
também a função de quem se representa a si mesmo diante desses dois veículos de
comunicação, como é o caso do político.
Exposição perante a massa
A
metamorfose do modo de exposição pela técnica de produção é visível também na
política. A crise da democratização pode ser interpretada como utopia, crise
nas condições de exposição do político profissional. As democracias expõem o
político de forma imediata, em pessoa, diante de certos representantes. O
Parlamento é seu público. Mas, como as novas técnicas permitem ao orador ser
ouvido e visto por um número ilimitado de pessoas, a exposição do político
diante dos aparelhos passa ao primeiro plano. Com isso os parlamentos atrofiam,
juntamente com o teatro. O rádio e o cinema não modificam apenas a função do
intérprete profissional, mas também a função de quem se representa a si mesmo
diante desses dois veículos de comunicação, como é o caso do político. O
sentido dessa transformação é o mesmo no ator cinema e no político, qualquer
que seja a diferença entre suas tarefas especializadas. Seu objetivo é tornar
"mostráveis", sob certas condições sociais, determinadas ações de
modo que todos possam controla-las e compreendê-las, da mesma forma como o
esporte o fizera antes, sob certas condições naturais. Esse fenômeno determina
um novo processo de seleção, uma seleção diante do aparelho, do qual emergem,
como vencedores, o campeão, o astro e o ditador.
Exigência de ser filmado
A
técnica do cinema assemelha-se à do esporte no sentido de que nos dois casos os
espectadores são semi-especialistas. Basta, para nos convencermos disso,
escutarmos um grupo de jovens jornaleiros, apoiados em suas bicicletas,
discutindo resultados de uma competição de ciclismo. No que diz respeito ao
cinema, os filmes de atualidades provam com clareza que todos têm a
oportunidade de aparecer na tela. Mas isto não é tudo. Cada pessoa, hoje em
dia, pode reivindicar o respeito de ser filmado. Esse fenômeno pode ser
ilustrado pela situação histórica dos escritores em nossos dias. Durante
século, houve uma separação rígida entre um pequeno número de escritores e um
grande número de leitores. No fim do século passado, a situação começou a
modificar-se. Com a ampliação gigantesca da imprensa, colocando à disposição
dos leitores uma quantidade cada vez maior de órgãos políticos, religiosos,
científicos, profissionais e regionais, a situação começou a modificar-se e um
número crescente de leitores começou a escrever, a princípio esporadicamente.
No início essa possibilidade limitou-se à publicação de suas correspondências
na seção "Cartas dos leitores". Hoje em dia, raros são os europeus
inseridos no processo de trabalho que em princípio não tenham uma ocasião
qualquer para publicar um episódio de sua vida profissional, uma reclamação ou
uma reportagem. Com isso a diferença essencial entre autor e público está a
ponto de desaparecer. Ela se transforma numa diferença funcional e contingente.
A cada instante, o leitor está pronto a converter-se num escritor. Num processo
de trabalho cada vez mais especializado, cada indivíduo se torna bem ou mal um
perito em algum setor, mesmo que seja num pequeno comércio, e como tal pode ter
acesso à condição de autor. O mundo do trabalho toma a palavra. Saber escrever
sobre o trabalho passa a fazer parte das habilitações necessárias para
executá-lo. A competência literária passa a fundar-se na formação politécnica,
e não na educação especializada, convertendo-se, assim, em coisa de todos.
Vale
para o capital cinematográfico o que vale para o fascismo no geral: ele explora
secretamente, no interesse de uma minoria de proprietários, a inquebrantável
aspiração por novas condições sociais.
Tudo
isso é aplicável sem restrições ao cinema, onde se realizaram numa década
deslocamentos que duraram séculos no mundo das letras. Pois essa evolução já se
completou em grande parte na prática do cinema, sobretudo do cinema russo.
Muitos dos atores que aparecem nos filmes russos não são atores em nosso
sentido, e sim pessoas que se auto-representam, principalmente no processo do
trabalho. Na Europa Ocidental, a exploração capitalista do cinema impede a
concretização da aspiração legítima do homem moderno de ver-se reproduzido. De
resto, ela também é bloqueada pelo desemprego, que exclui grandes massas do
processo produtivo, no qual deveria materializar-se, em primeira instância,
essa aspiração. Nessas circunstâncias, a indústria cinematográfica tem todo
interesse em estimular a participação das massas através de concepções
ilusórias e especulações ambivalentes. Seu êxito maior é com as mulheres. Com
esse objetivo, ela mobiliza um poderoso aparelho publicitário, põe a seu
serviço a carreira e a vida amorosa das estrelas, organiza plebiscitos, realiza
concursos de beleza. Tudo isso para corromper e falsificar o interesse original
das massas pelo cinema, totalmente justificado, na medida em que é um interesse
no próprio ser e, portanto, em sua consciência de classe. Vale para o capital
cinematográfico o que vale para o fascismo no geral: ele explora secretamente,
no interesse de uma minoria de proprietários, a inquebrantável aspiração por
novas condições sociais. Já por essa razão a expropriação do capital
cinematográfico é uma exigência prioritária do proletariado.
Toda
forma de arte amadurecida está no ponto de intersecção de três linhas
evolutivas. Em primeiro lugar, a técnica atua sobre uma forma de arte
determinada. Antes do advento do cinema, havia álbuns fotográficos, cujas
imagens, rapidamente viradas pelo polegar, mostravam ao espectador lutas de
boxe ou partidas de tênis, e havia nas passagens aparelhos automáticos,
mostrando uma sequencia de imagens que se moviam quando se acionava uma
manivela. Em segundo lugar, em certos estágios do seu desenvolvimento as formas
artísticas tradicionais tentam laboriosamente produzir efeitos que mais tarde
serão obtidos sem qualquer esforço pelas novas formas de arte. Antes que se
desenvolvesse o cinema, os dadaístas tentavam com seus espetáculos suscitar no
público um movimento que mais tarde Chaplin conseguiria provocar com muito
maior naturalidade. Em terceiro lugar, transformações sociais muitas vezes imperceptíveis
acarretam mudanças na estrutura da recepção, que serão mais tarde utilizadas
pelas novas formas de arte. Antes que o cinema começasse a formar seu público,
o Panorama do Imperador, em Berlim, mostrava imagens, já a essa altura móveis,
diante de um público reunido. Também havia um público nos salões de pintura,
porém a estruturação interna do seu espaço, ao contrário, por exemplo, do
espaço teatral, não permitia organizar esse público. No Panorama do Imperador,
em compensação, havia assentos cuja distribuição diante dos vários
estereoscópios pressupunha um grande número de espectadores. Uma sala vazia
pode ser agradável numa galeria de quadros, mas é indesejável no Panorama do
Imperador e inconcebível no cinema. E, no entanto, cada espectador, nesse
Panorama, dispunha de sua própria sequencia de imagens, como nos salões de
pintura. Nisso, precisamente, fica visível a dialética desse processo:
imediatamente antes que a contemplação das imagens experimentasse com o advento
do cinema uma guinada decisiva, tornando-se coletiva, o principio da
contemplação individual se afirma, pela última vez, com uma força inexcedível,
como outrora, no santuário, a contemplação pelo sacerdote da imagem divina.
Pintor e cinegrafista
A
realização de um filme, principalmente de um filme sonoro, oferece um
espetáculo jamais visto em outras épocas. Não existe, durante a filmagem, um
único ponto de observação que nos permita excluir do nosso campo visual as câmaras,
os aparelhos de iluminação, os assistentes e outros objetos alheios à cena.
Essa exclusão somente seria possível se a pupila do observador coincidisse com
a objetiva do aparelho, que muitas vezes quase chega a tocar o corpo do
intérprete. Mais que qualquer outra, essa circunstância torna superficial e
irrelevante toda comparação entre uma cena no estúdio e uma cena no palco. Pois
o teatro conhece esse ponto de observação, que permite preservar o caráter
ilusionístico da cena. Esse ponto não existe no estúdio. A natureza
ilusionística do cinema é de segunda ordem e está no resultado da montagem. Em
outras palavras, no estúdio o aparelho impregna tão profundamente o real que o
que aparece como realidade "pura", sem o corpo estranho da máquina, é
de fato o resultado de um procedimento puramente técnico, isto é, a imagem é
filmada por uma câmara disposta num ângulo especial e montada com outras da
mesma espécie. A realidade, aparentemente depurada de qualquer intervenção
técnica, acaba se revelando artificial, e a visão da realidade imediata não é
mais que a visão de uma flor azul no jardim da técnica.
Esses
dados, obtidos a partir do confronto com o teatro, se tornarão mais claros
ainda a partir de um confronto com a pintura. A pergunta aqui é a seguinte:
qual a relação entre o cinegrafista e o pintor? A resposta pode ser facilitada
por uma construção auxiliar, baseada na figura do cirurgião. O cirurgião está
no polo oposto ao do mágico. O comportamento do mágico, que deposita as mãos
sobre um doente para curá-lo, é distinto do comportamento do cirurgião, que
realiza uma intervenção em seu corpo. O mágico preserva a distância natural
entre ele e o paciente, ou antes, ele a diminui um pouco graças à sua mão
estendida, e a aumenta muito, graças à sua autoridade. O contrário ocorre com o
cirurgião. Ele diminui muito sua distância com relação ao paciente, ao penetrar
em seu organismo, e a aumenta pouco, devido à cautela com que sua mão se move
entre os órgãos. Em suma, diferentemente do mágico (do qual restam alguns
traços no prático), o cirurgião renuncia, no momento decisivo, a relacionar-se
com seu paciente de homem a homem e em vez disso intervém nele, pela operação.
O mágico e o cirurgião estão entre si como o pintor e o cinegrafista. O pintor
observa em seu trabalho uma distância natural entre a realidade dada e ele
próprio, ao passo que o cinegrafista penetra profundamente as vísceras dessa
realidade. As imagens que cada um produz são, por isso, essencialmente
diferentes. A imagem do pintor é total, do operador é composta de inúmeros
fragmentos, que se recompõem segundo novas leis. Assim, a descrição
cinematográfica da realidade é para o homem moderno infinitamente mais
significativa que a pictórica, porque ela lhe oferece o que temos o direito de
exigir da arte: um aspecto da realidade livre de qualquer manipulação pelos
aparelhos, precisamente graças ao procedimento de penetrar, com os aparelhos,
no âmago da realidade.
Recepção dos quadros
A
reprodutibilidade técnica da obra de arte modifica a relação da massa com a
arte. Retrógrada diante de Picasso, ela se torna progressista diante de
Chaplin. O comportamento progressista se caracteriza pela ligação direta e
interna entre o prazer de ver e sentir, por um lado, e a atitude do
especialista, por outro. Esse vínculo constitui um valioso indício social.
Quanto mais se reduz a significação social de uma arte, maior fica a distância,
no público, entre a atitude de fruição e a atitude crítica, como se evidencia
com o exemplo da pintura. Desfruta-se o que é convencional, sem criticá-lo;
critica-se o que é novo, sem desfrutá-lo. Não é assim no cinema. O decisivo,
aqui, é que no cinema, mais que em qualquer outra arte, as reações do
indivíduo, cuja soma constitui a reação coletiva do público são condicionadas,
desde o início, pelo caráter coletivo dessa reação. Ao mesmo tempo em que essas
reações se manifestam, elas se controlam mutuamente. De novo, a comparação com
a pintura se revela útil. Os pintores queriam que seus quadros fossem vistos
por uma pessoa, ou poucas. A contemplação simultânea de quadros por um grande
público, que se iniciou no século XIX, é um sintoma precoce da crise da
pintura, que não foi determinada apenas pelo advento da fotografia, mas
independentemente dela, através do apelo dirigido às massas pela obra de arte.
Na
realidade, a pintura não pode ser objeto de uma recepção coletiva, como foi
sempre o caso da arquitetura, como antes foi o caso da epopeia, e como hoje é o
caso do cinema. Embora esse fato em si mesmo não nos autorize a tirar uma
conclusão sobre o papel social da pintura, ele não deixa de representar um
grave obstáculo social, num momento em que a pintura, devido a certas
circunstâncias e de algum modo contra a sua natureza, se vê confrontada com as
massas, de forma imediata. Nas igrejas e conventos da Idade Média ou nas cortes
dos séculos XVI, XVII e XVIII, a recepção coletiva dos quadros não se dava
simultaneamente, mas através de inúmeras mediações. A situação mudou e essa
mudança traduz o conflito específico em que se envolveu a pintura, durante o
século passado, em consequência de sua reprodutibilidade técnica. Por mais que
se tentasse confrontar a pintura com a massa do público, nas galerias e salões,
esse público não podia de modo algum, na recepção das obras, organizar-se e
controlar-se. Teria que recorrer ao escândalo para manifestar abertamente o seu
julgamento. Em outros termos: a manifestação aberta do seu julgamento teria
constituído um escândalo. Assim, o mesmo público, que tem uma reação
progressista diante de um filme burlesco, tem uma reação retrógrada diante de
um filme surrealista.
Camundongo Mickey
Mickey Mouse desenho disponível no site do Mercado Livre |
Uma
das funções sociais mais importantes do cinema é criar um equilíbrio entre o
homem e a aparelho. O cinema não realiza essa tarefa apenas pelo modo com que o
homem se representa diante do aparelho, mas pelo modo com que ele representa o
mundo, graças a esse aparelho. Através dos seus grandes planos, de sua ênfase
sobre pormenores ocultos dos objetos que nos são familiares, e de sua
investigação dos ambientes mais vulgares sob a direção genial da objetiva, o
cinema faz-nos vislumbrar, por um lado, os mil condicionamentos que determinam
nossa existência, e por outro assegura-nos um grande e insuspeitado espaço de
liberdade. Nossos cafés e nossas ruas, nossos escritórios e nossos quartos
alugados, nossas estações e nossas fábricas pareciam aprisionar-nos inapelavelmente.
Veio então o cinema, que fez explodir esse universo carcerário com a dinamite
dos seus décimos de segundo, permitindo-nos empreender viagens aventurosas
entre as ruínas arremessadas à distância. O espaço se amplia com o grande
plano, o movimento se torna mais vagaroso com a câmara lenta. É evidente, pois,
que a natureza que se dirige à câmara não é a mesma que a que se dirige ao
olhar. A diferença está principalmente no fato de que o espaço em que o homem
age conscientemente é substituído por outro em que sua ação é inconsciente. Se
podemos perceber o caminhar de uma pessoa, por exemplo, ainda que em grandes
traços, nada sabemos, em compensação, sobre sua atitude precisa na fração de
segundo em que ela dá um passo. O gesto de pegar um isqueiro ou uma colher nos
é aproximadamente familiar, mas nada sabemos sobre o que se passa
verdadeiramente entre a mão e o metal, e muito menos sobre as alterações
provocadas nesse gesto pelos nossos vários estados de espírito. Aqui intervém a
câmara com seus inúmeros recursos auxiliares, suas imersões e emersões, suas
interrupções e seus isolamentos, suas extensões e suas acelerações, suas
ampliações e suas miniaturizações. Ela nos abre, pela primeira vez, a
experiência do inconsciente ótico, do mesmo modo que a psicanálise nos abre a
experiência do inconsciente pulsional. De resto, existem entre os dois
inconscientes as relações mais estreitas. Pois os múltiplos aspectos que o
aparelho pode registrar da realidade situam-se em grande parte fora do espectro
de uma percepção sensível normal. Muitas deformações e estereotipias,
transformações e catástrofes que o mundo visual pode sofrer no filme afetam
realmente esse mundo nas psicoses, alucinações e sonhos. Desse modo, os
procedimentos da câmara correspondente aos procedimentos graças aos quais a
percepção coletiva do público se apropria dos modos de percepção individual do
psicótico ou do sonhador. O cinema introduziu uma brecha na velha verdade de
Heráclito segundo a qual o mundo dos homens acordados é comum, o dos que dormem
é privado. E o fez menos pela descrição do mundo onírico que pela criação de
personagens do sonho coletivo, como o camundongo Mickey, que hoje percorre o
mundo inteiro. Se levarmos em conta as perigosas tensões que a tecnização, com
todas as suas consequências, engendrou nas massas - tensões que em estágios
críticos assumem um caráter psicótico -, perceberemos que essa mesma tecnização
abriu a possibilidade de uma imunização contra tais psicoses de massa através
de certos filmes, capazes de impedir, pelo desenvolvimento artificial de
fantasias sadomasoquistas, seu amadurecimento natural e perigoso. A hilaridade
coletiva representa a eclosão precoce e saudável dessa psicose de massa. A
enorme quantidade de episódios grotescos, atualmente consumidos no cinema,
constituem um índice impressionante dos perigos que ameaçam a humanidade,
resultantes das repressões que a civilização traz consigo. Os filmes grotescos,
dos Estados Unidos, e os filmes de Disney, produzem uma explosão terapêutica do
inconsciente. Seu precursor foi o excêntrico. Nos novos espaços de liberdade
abertos pelo filme, ele foi o primeiro a sentir-se em casa. E aqui que se situa
Chaplin, como figura histórica.
Dadaísmo
Uma
das tarefas mais importantes da arte foi sempre a de gerar uma demanda cujo
atendimento integral só poderia produzir-se mais tarde. A história de toda
forma de arte conhece épocas críticas em que essa forma aspira a efeitos que só
podem concretizar-se sem esforço num novo estágio técnico, isto é, - numa nova
forma de arte. As extravagâncias e grosserias artísticas daí resultantes e 'que
se manifestam' sobretudo nas chamadas "épocas de decadência" derivam,
na verdade, do seu campo de forças historicamente mais rico. Ultimamente, foi o
dadaísmo que se alegrou com tais barbarismos. Sua impulsão profunda só agora
pode ser identificada: o dadaísmo tentou produzir através da pintura (ou da
literatura) os efeitos que o público procura hoje no cinema.
Toda
tentativa de gerar uma demanda fundamentalmente nova, visando à abertura de
novos caminhos, acaba ultrapassando seus próprios objetivos. Foi o que ocorreu
com o dadaísmo, na medida em que sacrificou os valores de mercado intrínsecos
ao cinema, em benefício de intenções mais significativas, das quais
naturalmente ele não tinha consciência, na forma aqui descrita. Os dadaístas
estavam menos interessados em assegurar a utilização mercantil de suas obras de
arte que em torná-las impróprias para qualquer utilização contemplativa.
Tentavam atingir esse objetivo, entre outros métodos, pela desvalorização
sistemática do seu material. Seus poemas são "saladas de palavras",
contêm interpelações obscenas e todos os detritos verbais concebíveis. O mesmo
se dava com seus quadros, nos quais colocavam botões e bilhetes de trânsito.
Com esses meios, aniquilavam impiedosamente a aura de suas criações, que eles
estigmatizavam como reprodução, com os instrumentos da produção. Impossível,
diante de um quadro de Arp ou de um poema de August Stramm, consagrar algum
tempo ao recolhimento ou à avaliação, como diante de um quadro de Derain ou de
um poema de Rike. Ao recolhimento, que se transformou, na fase da
degenerescência da burguesia, numa escola de comportamento antissocial, opõe-se
a distração, como uma variedade do comportamento social. O comportamento social
provocado pelo dadaísmo foi o escândalo. Na realidade, as manifestações
dadaístas asseguravam uma distração intensa, transformando a obra de arte no
centro de um escândalo. Essa obra de arte tinha que satisfazer uma exigência
básica: suscitar a indignação pública. De espetáculo atraente para o olhar e
sedutor para o ouvido, a obra convertia-se num tiro. Atingia, pela agressão, o
espectador. E com isso esteve a ponto de recuperar para o presente a qualidade
tátil, a mais indispensável para a arte nas grandes épocas de reconstrução
histórica. O dadaísmo colocou de novo em circulação a fórmula básica da
percepção onírica, que descreve ao mesmo tempo o lado tátil da percepção artística:
tudo o que é percebido e tem caráter sensível é algo que nos atinge. Com isso,
favoreceu a demanda Pelo cinema, cujo valor de distração é fundamentalmente de
ordem tátil, isto é, baseia-se na mudança de lugares e ângulos, que golpeiam
intermitentemente o espectador. O dadaísmo ainda mantinha, por assim dizer, o
choque físico embalado no choque moral; o cinema o libertou desse invólucro. Em
suas obras mais progressistas, especialmente nos filmes de Chaplin, ele
unificou os dois eleitos de choque, num nível mais alto.
Compare-se
a tela em que se projeta o filme com a tela em que se encontra o quadro. Na
primeira, a imagem se move, mas na segunda, não. Esta convida o espectador à
contemplação; diante dela, ele pode abandonar-se às suas associações. Diante do
filme, isso não é mais possível. Mas o espectador percebe uma imagem, ela não é
mais a mesma. Ela não pode ser fixada, nem como um quadro nem como algo de
real. A associação de ideias do espectador é interrompida imediatamente, com a
mudança da imagem. Nisso se baseia o efeito de choque provocado pelo cinema,
que, como qualquer outro choque, precisa ser interceptado por uma atenção
aguda. O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existenciais mais
intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo. Ele corresponde a
metamorfoses profundas do aparelho perceptivo, como as que experimenta o
passante, numa escala individual, quando enfrenta o tráfico, e como as
experimenta, numa escala histórica, todo aquele que combate a ordem social vigente.
“A
massa é a matriz da qual emana, no momento atual, toda uma atitude nova com
relação à obra de arte. A quantidade converteu-se em qualidade.”
Recepção tátil e recepção ótica
A
massa é a matriz da qual emana, no momento atual, toda uma atitude nova com
relação à obra de arte. A quantidade converteu-se em qualidade. O número
substancialmente maior de participantes produziu um novo modo de participação.
O fato de que esse modo tenha se apresentado inicialmente sob uma forma
desacreditada não deve induzir em erro o observador. Afirma-se que as massas
procuram na obra de arte distração, enquanto o conhecedor a aborda com
recolhimento. Para as massas, a obra de arte seria objeto de diversão, e para o
conhecedor, objeto de devoção. Vejamos mais de perto essa crítica. A distração
e o recolhimento representam um contraste que pode ser assim formulado: quem se
recolhe diante de urna obra de arte mergulha dentro dela e nela se dissolve, como
ocorreu com um pintor chinês, segundo a lenda, ao terminar seu quadro. A massa
distraída, pelo contrário, faz a obra de arte mergulhar em si, envolve-a com o
ritmo de suas vagas, absorve-a em seu fluxo. O exemplo mais evidente é a
arquitetura. Desde o início, a arquitetura foi o protótipo de uma obra de arte
cuja recepção se dá coletivamente, segundo o critério da dispersão. As leis de
sua recepção são extremamente instrutivas.
Os
edifícios acompanham a humanidade desde sua pré-história. Multas obras de arte
nasceram e passaram. A tragédia se origina com os gregos, extingue-se com eles,
e renasce séculos depois. A epopeia, cuja origem se situa na juventude dos
povos, desaparece na Europa com o Fim da Renascença. O quadro é uma criação da
Idade Média, e nada garante sua duração eterna. Mas a necessidade humana de
morar é permanente. A arquitetura jamais deixou de existir. Sua história é mais
longa que a de qualquer outra arte, e é importante ter presente que a sua
influência faz cair qualquer tentativa de compreender a relação histórica entre
as massas e a obra de arte.
‘O
cinema se revela assim, também desse ponto de vista, o objeto atualmente mais
importante daquela ciência da percepção que os gregos chamavam de estética.”
Os
edifícios comportam uma dupla forma de recepção: pelo uso e pela percepção. Em
outras palavras: por meios táteis e óticos. Não podemos compreender a
especificidade dessa recepção se a imaginarmos segundo o modelo do
recolhimento, atitude habitual do viajante diante de edifícios célebres. Pois
não existe nada na recepção tátil que corresponda ao que a contemplação
representa na recepção ótica. A recepção tátil se efetua menos pela atenção que
pelo hábito. No que diz respeito à arquitetura, o hábito determina em grande
medida a própria recepção ótica. Também ela, de início, se realiza mais sob a
forma de uma observação casual que de uma atenção concentrada. Essa recepção,
concebida segundo o modelo da arquitetura, tem em certas circunstâncias um
valor canônico. Pois as tarefas impostas ao aparelho perceptivo do homem, em
momentos históricos decisivos, são insolúveis na perspectiva puramente ótica:
pela contemplação. Elas se tornam realizáveis gradualmente, pela recepção
tátil, através do hábito. Mas o distraído também pode habituar-se. Mais:
realizar certas tarefas, quando estamos distraídos, prova que realizá-Ias se
tornou para nós um hábito. Através da distração, como ela nos é oferecida pela
arte, podemos avaliar, indiretamente, até que ponto nossa percepção está apta a
responder a novas tarefas. E, como os indivíduos se sentem tentados a
esquivar-se a tais tarefas, a arte conseguirá resolver as mais difíceis e
importantes sempre que possa mobilizar as massas. É o que ela faz, hoje em dia,
no cinema. A recepção através da distração, que se observa crescentemente em
todos os domínios da arte e constitui o sintoma de transformações profundas nas
estruturas perceptivas, tem no cinema o seu cenário privilegiado. E aqui, onde
a coletividade procura a distração, não falta de modo algum a dominante tátil,
que rege a reestruturação do sistema perceptivo. É na arquitetura que ela está
em seu elemento, de forma mais originária. Mas nada revela mais claramente as
violentas tensões do nosso tempo que o fato de que essa dominante tátil
prevalece no próprio universo da ótica. É justamente o que acontece no cinema,
através do eleito de choque de suas sequencias de imagens. O cinema se revela
assim, também desse ponto de vista, o objeto atualmente mais importante daquela
ciência da percepção que os gregos chamavam de estética.
Estética da guerra
A
crescente proletarização dos homens contemporâneos e a crescente massificação
são dois lados do mesmo processo. O fascismo tenta organizar as massas
proletárias recém surgidas sem alterar as relações de produção e propriedade
que tais massas tendem a abolir. Ele vê sua salvação no fato de permitir às
massas a expressão de sua natureza, mas certamente não a dos seus direitos.
Deve-se observar aqui, especialmente se pensarmos nas atualidades
cinematográficas, cuja significação propagandística não pode ser superestimada,
que a reprodução em massa corresponde de perto à reprodução das massas. Nos
grandes desfiles, nos comícios gigantescos, nos espetáculos esportivos e
guerreiros, todos captados pelos aparelhos de filmagem e gravação, a massa vê o
seu próprio rosto. Esse processo, cujo alcance é inútil enfatizar, está
estreitamente ligado ao desenvolvimento das técnicas de reprodução e registro.
De modo geral, o aparelho apreende os movimentos de massas mais claramente que
o olho humano. Multidões de milhares de pessoas podem ser captadas mais
exatamente numa perspectiva a voo de pássaro. E, ainda que essa perspectiva
seja tão acessível ao olhar quanto à objetiva, a imagem que se oferece ao olhar
não pode ser ampliada, como a que se oferece ao aparelho. Isso significa que os
movimentos de massa e, em primeira instância, a guerra constituem uma forma do
comportamento humano especialmente adaptada ao aparelho. As massas têm o
direito de exigir a mudança das relações de propriedade; o Fascismo permite que
elas se exprimam conservando, ao mesmo tempo, essas relações. Ele desemboca, consequentemente,
na estetização da vida política. A política se deixou impregnar, com
d'Annunzio, pela decadência, com Marinetti, pelo futurismo, e com Hitler, pela
tradição de Schwabing (Bairro Boêmio de Viena). Todos os esforços para
estetizar a política convergem para um ponto. Esse ponto é a guerra. A guerra,
e somente a guerra, permite dar um objetivo aos grandes movimentos de massa,
preservando as relações de produção existentes. Eis como o fenômeno pode ser
formulado do ponto de vista político. Do ponto de vista técnico, sua formulação
é a seguinte: somente a guerra permite mobilizar em sua totalidade os meios técnicos
do presente, preservando as atuais relações de produção. É óbvio que a apoteose
fascista da guerra não recorre a esse argumento. Mas seria instrutivo lançar os
olhos sobre a maneira com que ela é formulada. Em seu manifesto sobre a guerra
colonial da Etiópia, diz Marinetti: "Há vinte e sete anos, nós futuristas
contestamos a afirmação de que a guerra é antiestética... Por isso, dizemos:
...a guerra é bela, porque graças às máscaras de gás, aos megafones
assustadores, aos lança chamas e aos tanques, funda a supremacia do homem sobre
a máquina subjugada. A guerra é bela, porque inaugura a metalização onírica do
corpo humano. A guerra é bela, porque enriquece um prado florido com as
orquídeas de fogo das metralhadoras. A guerra é bela, porque conjuga numa
sinfonia os tiros de fuzil, os canhoneiros, as pausas entre duas batalhas, os
perfumes e os odores de decomposição. A guerra é bela, porque cria novas
arquiteturas, como a dos tanques, dos esquadrões aéreos em formação geométrica,
das espirais de fumaça pairando sobre aldeias incendiadas, e muitas outras.
Poetas e artistas do futurismo ... lembrai-vos desses princípios de uma
estética da guerra, para que eles iluminem vossa luta por uma nova poesia e uma
nova escultural".
Esse
manifesto tem o mérito da clareza. Sua maneira de colocar o problema merece ser
transposta da literatura para a dialética. Segundo ele, a estética da guerra
moderna se apresenta do seguinte modo: como a utilização natural das forças
produtivas é bloqueada pelas relações de propriedade, a intensificação dos
recursos técnicos, dos ritmos e das fontes de energia exige uma utilização
antinatural. Essa utilização é encontrada na guerra, que prova com suas
devastações que a sociedade não estava suficientemente madura para fazer da
técnica o seu órgão, e que a técnica não estava suficientemente avançada para
controlar as forças elementares da sociedade. Em seus traços mais cruéis, a
guerra imperialista é determinada pela discrepância entre os poderosos meios de
produção e sua utilização insuficiente no processo produtivo, ou seja, pelo
desemprego e pela falta de mercados. Essa guerra é uma revolta da técnica, que
cobra em "material humano" o que lhe foi negado pela sociedade. Em
vez de usinas energéticas, ela mobiliza energias humanas, sob a forma dos
exércitos. Em vez do tráfego aéreo, ela regulamenta o tráfego de fuzis, e na
guerra dos gases encontrou uma forma nova de liquidar aura. "Fiat ars,
pereat mundus", diz o fascismo e espera que a guerra proporcione a
satisfação artística de uma percepção sensível modificada pela técnica, como
faz Marinetti. É a forma mais perfeita do art pour l'art. Na época de Homero, a
Humanidade oferecia-se em espetáculo aos deuses olímpicos agora, ela se
transforma em espetáculo para si mesma. Sua auto alienação atingiu o ponto que
lhe permite viver sua própria destruição como uni prazer estético de primeira
ordem. Eis a estetização da política, como a pratica o fascismo. O comunismo
responde com a politização da arte.
[i]
O texto aqui publicado é
inédito no Brasil. O ensaio traduzido em português por José Lino Grünnewald e
publicado em A idéia do cinema (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1696) e
na coleção Os pensadores, da Abril Cultural, é a segunda versão alemã, que
Benjamin começou a escrever em 1936 e só foi publicada em 1955.
[ii] Lart cinématographíque 11. Paris,
1927. p. 101 e 102.
[iii] Werfel, Franz. Ein
Sommernachtstraum, Ein Film von Shakespeare u Reipihardi. Ncues WienerJournal,
citado por Lu, 15 de novembro de 1935.
[iv] Citado por Leon Pierre-Quint:
Signification du cinéma. In: L’Art Cinématographique II. Paris, 1927. p. 14-5.
[v] Arnheim, Rudolf, Film als Kunst.
Berlim, 1923. p. 176-7.