Entrevista com José Ronaldo Faleiro
José Ronaldo Faleiro traduz o livro
Apelos, de Jacques Copeau
Por Marco Vasques e Rubens da Cunha
O livro Apelos, de Jacques Copeau (1879 – 1949), publicado este ano pela editora Perspectiva, foi traduzido pelo ator e professor da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, José Ronaldo Faleiro, e consiste em uma contribuição definitiva à bibliografia do teatro brasileiro. A obra traz uma série de reflexões sobre o ator, o texto, a crítica, a vida dentro do teatro, o papel ético e estético da arte, enfim, se constitui em um grande caleidoscópio das ideias do pensador, ator, diretor e dramaturgo francês. Em entrevista inédita ao Notícias do Dia, Faleiro reflete mais sobre a importância de Copeau para seu tempo e para os dias atuais.
Como nasce o seu interesse pelas ideias teatrais de Jacques Copeau?
Jacques Copeau estava presente nas aulas de Gerd Bornheim, de Teoria Geral do Teatro/Poéticas do Espetáculo, no Curso de Arte Dramática (CAD) da UFRGS (guardo o caderno de 1968). Estudávamos com muito afinco os reformadores do teatro e suas ideias e ideais. Além disso, o CAD havia editado, em 1965, a talvez primeira publicação brasileira em livro sobre o Teatro do Vieux-Colombier: O Cinquentenário da Fundação do Vieux Colombier, de Georges Readers. Havia lido, também, as “lembranças” de Álvaro Moreyra e sua entrevista com Jouvet no Rio de Janeiro. Olga Reverbel, professora e norteadora, vira os espetáculos de Barrault, Dullin, Jouvet, em Paris, logo após a Segunda Guerra Mundial. Ela também me apresentou os Cadernos de Teatro, que traziam textos de Copeau. Dois anos depois de eu ter chegado a Paris, foi lançado na França o primeiro volume dos Registros, chamado Appels (1974), e assisti a uma mesa-redonda sobre ele, com Ariane Mnouchkine (diretora, naquele ano, de L´Âge d´or), Marie-Hélène Dasté (a primogênita de Copeau e organizadora do livro) e André Veinstein (diretor da coleção, na Gallimard). Começada aí, a ação desenvolvida por Marie-Hélène Dasté foi fundamental para reunir a obra de Copeau, para possibilitar a sua leitura. Catherine Dasté, diretora teatral e neta de Jacques Copeau, me ofertou o segundo volume, dedicado inteiramente a Molière, em 1977, com uma bela dedicatória, durante o terceiro ensaio corrido de seu espetáculo Visage de Sable. Posteriormente, quando fiz meu doutorado, lá estava novamente a figura do “Patron”. Desde os anos sessenta do século XX, a escrita, o entusiasmo e a exigência radical com que Copeau encarava o teatro me fascinam.
Qual é a importância de Jacques Copeau para a história do teatro no que tange à transformação da técnica do ator?
Copeau percebeu — e não foi o único, é claro; estava em boa companhia: com Stanislavski, Meyerhold, Appia, Dullin — que para reformar o teatro do século XX, para servi-lo, para superar o cabotinismo, a primeira coisa a fazer seria trabalhar (com) o ator. Não somente a sua técnica e a sua especialização limitante num ofício que o estiolasse. Ao contrário: num processo de ensino/aprendizagem, seria necessário suscitar no ator “desinteresse”, “paciência”, “método”, “inteligência”, “cultura”, “amor”, interesse por “bem fazer”. Portanto, técnica aliada à ética, empenho por doar-se ao teatro. Respeito ao autor, mas também uso da improvisação. Importância do texto, mas também trabalho com máscaras (como meio, não como fim) e preparação corporal intensa. Intuição, mas também leitura. Ator (atriz) como solista/intérprete numa orquestra harmoniosa.
Copeau pensava o teatro como um palco nu e com “verdadeiros atores”, pois a força do teatro estaria na palavra do poeta e no corpo do ator. Diante de tanta pirotecnia teatral vista nos dias de hoje, como o senhor vê essa questão da busca por um teatro centrado na palavra e no corpo?
Voltamos à questão da formação do ator, à busca do equilíbrio, à necessidade de trabalho corporal-e-vocal, à sensibilidade para o valor sonoro e também para o do sentido: tudo isso trazido por um/num corpo que respira, que pulsa, que repousa. Lembro-me de uma tarde em que, paralelamente ao espetáculo noturno, o Piccolo Teatro apresentou uma sessão na qual um ator se aventurava no difícil e delicado exercício de dizer poemas. Substituiu Giorgio Strehler, que deveria ter vindo dizer trechos da Divina Comédia. Essa também era uma tarefa dos alunos de Copeau: descobrir a importância da Palavra, do Poeta, da Ação-da-Palavra (Marcel Jousse tem um livro que se chama A Antropologia do Gesto e outro que se intitula A Manducação da Palavra). Nos espetáculos de Ariane Mnouchkine e nos de Peter Brook (também nos de Eugenio Barba, apesar da grande ênfase dada aos movimentos e às ações do corpo), encontrei o equilíbrio, a síntese, a dosagem de corpo-voz em sintonia. Abandonar o rebuscamento e, num sentido amplo, “caminhar sobre a cena”. A busca é incessante.
Faz dois meses que seu livro Apelos foi lançado pela editora Perspectiva, uma das mais importantes editoras sobre teatro no Brasil. A que você atribui o silêncio sepulcral em relação à obra, já que Copeau nunca teve uma publicação desta envergadura por aqui?
São cada vez mais raros os espaços nos meios de comunicação para publicar assuntos relacionados ao teatro. Acredito que o livro trará benefícios para os que o lerem. Tenho certeza de que a publicação que a Perspectiva houve por bem realizar com tanto esmero contribuirá para pensar em lançar uma série de autores ainda não traduzidos em português: Decroux, Dullin, Jouvet, Barrault, Baty, Chancerel.
Copeau nutria uma grande ironia em relação aos críticos de sua época. No entanto, em Apelos, percebemos que ele reconhece a necessidade dessa figura que perambula pelo meio teatral. Você não acha que está na hora de vermos o crítico de teatro como um criador e como apenas mais um trabalhador da arte teatral?
Ser/estar crítico (a) teatral é profissão muito difícil; é “trabalho duro e ingrato”, como diz Copeau. E muito necessário. Com rigor, imparcialidade e vontade de servir ao teatro, ele pode auxiliar muito os que exercem o ofício teatral; lançar luz sobre o que é feito; encontrar as palavras para ver o que pode ser melhorado e ter a coragem e a serenidade de dizê-lo àqueles que se afeiçoam ao próprio trabalho como a uma propriedade ou como a um ser amado — dizê-lo (ou escrevê-lo) de tal modo que o “outro lado” possa aceitar a observação, o reparo, a “crítica”. “Ajudar” e “convencer”, e não “ferir” ou “prejudicar”. Sua tarefa pode causar grande benefício para o aprimoramento de um espetáculo, para as perspectivas de um artista ou de todo um grupo de artistas. Para isso, sem dúvida, cabe ao (à) crítico (a) criar, trabalhar, conviver com a cena e com os bastidores. Lembro-me do prazer e do proveito com que lia, jovem estudante, a coluna de Fernando Peixoto e a de Marcelo Renato, e mais tarde, as críticas de Cláudio Heemann e Antônio Hohlfeldt, e as obras de Décio de Almeida Prado, Yan Michalski, Edélcio Mostaço e Sábato Magaldi, muitos deles pessoas com muita familiaridade com a prática da cena teatral.
Qual é o maior ensinamento ou o princípio teatral de Copeau, que você destacaria e aconselharia às novas gerações?
Amar o teatro. Servir ao teatro. Trabalhar com entusiasmo. “Doar-se”. Para isso, “primeiro possuir-se”.