ETIENNE
DECROUX E A MÍMICA CORPORAL DRAMÁTICA
Corinne Soum (Tradução George Mascarenhas)
Corinne Soum - foto em http://www.angefou.co.uk/biographies.html |
Corinne
Soum
formou-se em mímica corporal dramática com o mestre Etienne Decroux de quem foi
sua última assistente, ao lado de Steven Wasson. Atualmente, Wasson e Soum
dirigem a Ange Fou International Mime School de Londres e a companhia Théâtre
de l’Ange Fou.
Matéria publicada na
revista Mimus UFBA
BIOGRAFIA
Etienne
Marcel Decroux nasceu no dia 19 de julho de 1898, no 10eme Arrondissement
(bairro de Paris em torno da Gare de l’Est, Strasbourg-St. Denis, antigo bairro
de Paris). Ele é o caçula de uma família de dois filhos e tem uma irmã mais
velha.
Seu
pai, Marie-Edouard Decroux é da região de Savoie (leste da França), soldado
durante a guerra de 1870 (entre a França e a Prússia), depois deixa sua Savoie
natal e se emprega como mordomo em uma mansão, onde conhece sua mulher que é
chef de cozinha. Etienne Decroux sempre contou e até mesmo escreveu que ele
teve uma infância muito feliz. A família mora em Boulogne-Billancourt, em uma
casa construída por seu pai. Esta casa se tornará muito célebre porque, em seus
últimos vinte e cinco anos de vida, é onde ele instalará sua escola e por onde
passarão centenas de alunos vindos do mundo inteiro. Todavia, se por um lado
ele é feliz na casa, ele não faz nada na escola e é, como ele mesmo dizia, um
mau-aluno, ou seja, aquele que fica sentado no fundo da sala, que dorme ou que
sonha! Seu pai compensa esta falta de ardor pelos estudos e toma conta dele, o
leva ao espetáculo no “café concert” (musical francês), transmite-lhe seu gosto
pela escultura, ensina-lhe a discutir, a manejar ideias – ideias ateístas e
humanistas ao mesmo tempo – lê versos para ele.
Adolescência
(Profissões – 1917- Makno – Política – Guerra – 1923)
Etienne
Decroux deixa a escola aos 14 anos, em primeiro lugar porque não faz nada e
também porque isso é um fato comum no meio artesão. Ele passa por todos os
tipos de trabalhos, na construção civil, e também como aprendiz de açougueiro e
enfermeiro.
Até
os meus 25 anos, eu trabalhei, sobretudo, na construção civl, mas eu fiz de
tudo. Eu me lembro de ter sido pintor, encanador, marceneiro, colocador de
telhas, açougueiro, aterrador, estivador, reparador de vagões, lavador de
pratos, enfermeiro. Eu até coloquei tubos de borracha em portas de geladeiras
para mantê- las herméticas. Eu fiz de tudo. Assim mesmo, havia muitas coisas
para serem vistas. Há uns coitados que não viram nada disso e eu me pergunto
como eles fazem para encenar uma peça. Essas coisas vistas e mesmo manipuladas
passaram pouco a pouco para dentro de minha cabeça, desceram por trás dos meus
braços, chegaram às pontas dos dedos, onde mudaram minhas impressões digitais.
POLÍTICA
Quase
naturalmente, ele frequenta muito cedo os meios libertários anarquistas. Aliás,
é neste grupo dos “anarquistas de Romainville” que ele encontrará sua mulher,
Suzanne Lodieu, que é sapateira e cantora no contexto da propaganda anarquista.
Ele se apaixona por ela ao vê-la em cena, cantando, e dirá a um dos seus
camaradas: “eu finalmente encontrei uma cantora que não faz gestos ridículos”.
Ele
não fez e nunca fará parte das grandes formações políticas, nem do partido
comunista, nem do partido socialista, etc. Ele é muito independente. Ele
prefere os grupos minoritários que se dedicam a uma reflexão política idealista
e, ao mesmo tempo, a sessões de leituras poéticas, de escrita automática[i].
Em
1917, ele é convocado. É a Primeira Guerra Mundial. Ele será soldado por três
anos, particularmente como auxiliar de enfermagem e maqueiro.
Assim
que volta da guerra, ele trabalha no Hospital Beaujon como auxiliar de
enfermagem, sempre anarquista, sempre frequentando os pequenos grupos
libertários multiculturais, adepto de Proudhon, teórico anarquista francês que
prega a vida em falanstérios (comunidades).
De
acordo com Guy Benhaim, que fez uma tese sobre Etienne Decroux, o Centro
Nacional de Pesquisa sobre o Anarquismo de Marselha, na França, possui
informações muito ricas sobre o anarquista Etienne Decroux. Este engajamento é
muito sério. Aliás, entre 1924-25, Etienne Decroux não hesita em esconder em
sua casa o anarquista revolucionário russo Nestor Makno, que é perseguido por
toda a polícia e que tinha tentado implantar comunas libertárias na Ucrânia.
Hoje,
aliás, se Etienne Decroux continua esquecido na maior parte dos dicionários
teatrais, por outro lado, ele está presente no dicionário do movimento operário
francês e é frequentemente citado nas obras anarquistas por autores como Roger
Boutefeu, Nicolas Faucier, descrito de modo vibrante e afetuoso como um absolutista.
Então,
pouco a pouco, ele se destina a uma carreira política e, com a preocupação de
melhorar seus serviços de orador, quanto ao seu discurso e à sua presença, ele
decide tomar aulas no Instituto Filotécnico, que é uma instituição parisiense
muito antiga que oferece um ensino gratuito em todos os tipos de matérias,
matemática, canto, ginástica, música, história, etc... Decroux, segundo o que
ele me contou, hesitou então entre o curso de dança rítmica e as aulas de
dicção. Depois, em virtude de uma facilidade de horário, ele se decidiu pelo
curso de dicção. Esse foi o primeiro passo em direção à carreira teatral.
A
IDADE ADULTA
Em
1923, Etienne Decroux leu um pequeno anúncio no jornal L’humanité (grande
jornal comunista francês) que propunha uma formação para o trabalho de ator
gratuitamente aos jovens que aceitassem fazer papéis de figuração no Théâtre du
Vieux Colombier. Etienne Decroux se apresentou, então, para uma entrevista com
Jacques Copeau, diretor do teatro e da escola. Segundo o que ele me contou,
essa foi a única vez em que ele mentiu: para a pergunta de Jacques Copeau de
“você gosta de teatro”?, Decroux respondeu: “sim”. Apesar de não ser verdade!
E,
então, graças ou apesar desta mentira, ele foi aceito na escola do Vieux
Colombier, que é a escola de vanguarda da época. Quando eu tinha oportunidade,
eu perguntava a ele o que de fato o tinha levado a se decidir entrar para esta
escola e as respostas eram muito variadas. Às vezes, ele ria, outras vezes, ele
dizia “mas, para que você quer saber isso?”. Uma vez, ele disse: “eu aspirava a
uma atividade distinta; era tarde demais para ser advogado, médico; então, ator
me parecia ser uma boa solução”. Outras vezes, ele afirmava ter sido motivado
pela única idéia de aprender o ofício de ator para melhorar suas capacidades de
orador político. Ele tinha até mesmo a idéia e o projeto de criar uma “escola
propagandista”, ou seja, de homens políticos formados não apenas nas idéias
anarquistas mas também na técnica oratória, a fim de serem mais eficazes.
Jean
d’Orcy, homem de teatro e dança francês, que fazia parte da École du Vieux
Colombier, na época em que Decroux era estudante conta:
Os
outros alunos o apelidaram de ‘o orador’, ele vestiase com as roupas dos
primeiros militantes socialistas: chapéu, paletó, gravata lavallière; ele
repetia sem parar: ‘acima da arte, há a política; a arte é uma cabotina, a
verdade é uma santa; uma santa não deve nunca se diminuir em favor de uma
cabotina’.
Mas,
enfim, apesar disso, Decroux começa cada vez mais a tornar-se um homem de
teatro e suas atividades de militante ficam um pouco em segundo plano.
L’ÉCOLE
DU VIEUX COLOMBIER
É
preciso que agora eu fale algumas palavras sobre Jacques Copeau e seu
empreendimento, mesmo que este não seja o tema desta conferência.
Quem
é Jacques Copeau? Em princípio, ele não é ator; é um crítico dramatúrgico que
cultiva uma mistura sábia de gosto e desgosto pela coisa teatral; ele está em
guerra contra os atores, seu modo de interpretaçao, ele denuncia o naturalismo,
o cabotinismo, os cenários, as maquinárias, ele está em guerra contra todos os
aspectos do teatro: a produção, os críticos, o público....
Em
1921, portanto, Jacques Copeau abre a École du Vieux Colombier, em paralelo ao
teatro. Os alunos levam uma vida de semi-internato e o programa era realmente
impressionante: teoria teatral, instinto dramático, história da civilização
grega, gramática, canto, dicção, música, dança clássica, hebertismo (forma de
ginástica natural inventada pelo Coronel Hebert), acrobacia e também o famoso
curso de “máscara”, que consideramos a origem da mímica corporal de Etienne
Decroux. Estas aulas de máscara eram ministradas por Suzanne Bing: os atores
vestiam roupas de ginástica, calçavam uma másara (um véu) e deviam interpretar
com a ajuda de seus corpos os diferentes temas da vida cotidiana, na cidade, no
campo, ou temas diferentes evocando os diversos ciclos da vida.
Destas
aulas, Jean d’Orcy nos conta:
Para
aquele que veste a máscara, o que acontece? Ele se isola do mundo exterior: a
noite que se impõe permitirá em primeiro lugar que ele rejeite tudo o que o
atrapalha e, em seguida, por um esforço de concentração, atinja o vazio; a
partir deste momento, ele poderá reviver e agir, mas, dramaticamente desta vez.
Então,
Decroux, que está na École du Vieux Colombier, assiste como aluno iniciante em
1924, a uma representação feita na escola pelos alunos mais antigos. Eis o que
ele diz:
Tranquilo
em minha poltrona, eu vi um espetáculo prodigioso. Era mímica e sons. Tudo sem
uma palavra, sem maquiagem, sem um figurino, sem um jogo de luz, sem
acessórios, sem móveis e sem cenário. O desenvolvimento da ação era inteligente
bastante para conter várias horas em alguns segundos e diversos lugares em um
só. Tínhamos simultaneamente sob os olhos o campo de batalha, a vida civil, o
mar e a cidade, os personagens passavam de um a outro com total
verossimilhança; o jogo era emocionante, compreensível, plástico e musical. Era
junho de 1924.
Como
vimos, Decroux ficou impressionado. E também era igualmente impressionado por
Jacques Copeau, embora este estivesse longe de pertencer à mesma seara política
que ele, mas, por outro lado, compartilhava seu ideal de pureza e de pesquisa
sobre a essência das coisas. As personalidades, alunos ou professores ou atores
que se engajam na aventura do Vieux Colombier, também impressionam Decroux.
Dullin, Jouvet, George Chenevière, Albert Lamarque, Daniel Lazarus, Lucienne
Lamballe, os Fratellini.
Ainda
assim, ele continua um pouco desconfiado com relação ao mundo do teatro, que
ele suspeita de corrupção. Ele é muito provocador, quando sente a mínima
atmosfera de mundanidade, mas ele se engaja cada vez mais neste mundo. Ele fará
parte até mesmo da famosa experiência da Bourgogne ou os “Copiaux” (os
Copeauzinhos).
Jacques
Copeau decide partir para a Bourgogne com um grupo de atores e de professores,
para trabalhar mais profundamente, longe da agitação parisiense. Decroux é
escolhido para participar desta experiência em virtude de suas qualidades de
ator, mas também por suas qualidades de açougueiro. De fato, ele sabe cortar a
carne, o que é precioso para a vida da comunidade.
Marie
Helène Dasté, a filha de Jacques Copeau, célebre atriz francesa, se lembra de
Decroux, sem camisa, retalhando a carne de boi, a golpes de machado, sob o
olhar hipnotizado e admirado dos outros atores. Mas, finalmente, esta
comunidade se dispersa e assim termina a experiência da École du Vieux
Colombier.
No
entanto, apesar do tempo relativamente curto, podemos afirmar que Copeau mudou
o curso de evolução do teatro na França. Sua filha Marie Hélène Dasté, o marido
dela, Jean Dasté, Dullin, Jouvet, a Companhia dos 15, Gilles et Julien, Leon
Chancerel e Les Comédiens Routiers, para citar alguns, empreendem uma via
baseada em uma nova concepção do teatro e, dentre eles, evidentemente,
encontra-se Decroux. Decroux que vê no ensino que recebeu e, em particular, ao
assistir à renomada representação de 1924, uma síntese com a qual ele sonhava:
“o físico e o filosófico”. Ele, o meneador de idéias e ao mesmo tempo amoroso
da ação, do “fazer”, vê diante de sus olhos justamente a ação, mas desta vez
ainda mais sedutora do que aquelas produzidas pelos artesãos, operários,
escultores, porque desta vez o material é o próprio corpo do homem que serve
para remexer as idéias.
É
o homem que pensa ao se mover, ao fazer! Mais tarde, a propósito disso, ele
explicará:
[Por
que a mímica corporal?] Em primeiro lugar, existe a minha natureza. Por
natureza, eu sou o que se poderia chamar de materialista espiritual. Isto
significa que me sinto subjugado pelo espiritual quando ele doa sua forma ao
material.
Ou
ainda:
O
que caracteriza nosso mundo é que ele está sentado. O mímico corporal se coloca
de pé, ele se diverte ao representar o mundo. Estar na mímica é uma espécie de
lição, estar na mímica é ser um militante, um militante do movimento em um
mundo que está sentado.
DECROUX
, ATOR. OS QUATRO PAIS
A
primeira experiência profissional de Decroux, como ator, remonta a 1925, com
Gaston Baty. Depois, ele se engaja no teatro do Atelier com Charles Dullin,
onde permanecerá de 1925 a 1934. Decroux inicia, então, uma brilhante carreira
de ator que se estenderá até 1945. Mais ou menos a partir desta data, ele se
dedicará unicamente a suas próprias pesquisas, relativas ao que ele chama de
mímica corporal dramática.
Este
período, no qual ele conduz pesquisas pessoais, carreira de ator, atividades
radiofônicas e cinematográficas - ele de fato rodará mais de 30 filmes sob a
direção dos Préverts, de Marcel Carné, Julien Duviviver -, é certamente o
momento em que nasce a maior parte de suas idéias, as quais ele passará o resto
da vida a desenvolver, explorar e aperfeiçoar.
Os quatro pais
Antes
de avançar em sua biografia, eu gostaria de resumir o seguinte fato. É sempre
muito difícil determinar quem influenciou um gênio; nunca há explicações
completamente satisfatórias, mas eu me arriscaria a dizer que podemos
reconhecer quatro pais para Etienne Decroux.
1º.)
Jacques Copeau, com quem ele passou de militante profissional a ator profissional,
e onde teve a revelação de um possível teatro do corpo, em particular graças
àquela representação de junho de 1924, resultado das aulas de máscara.
2º.)
Charles Dullin: diretor absolutamente excepcional, diretor do Théâtre de
l’Atelier, com quem ele permanecerá durante dez anos. Dullin é um ator
extraordinário, proveniente do movimento de Jacques Copeau, também com um gosto
pelo teatro distante do verismo que, como diretor, dá muita liberdade a
Decroux, permite-lhe compor verdadeiramente seus papéis, empresta-lhe o palco
para suas primeiras experiências de mímica, permite que ele dê aulas na
estrutura do Théâtre de l’Atelier.
Decroux,
como ator, tem seu público que segue com entusiasmo as suas invenções. Ele é
intérprete de múltiplos papéis, de múltiplos autores – Aristófanes, Strindberg,
Shakespeare, Molière, Tolstoi, Pirandello, Marcel Achard, Jules Romain.
Entre
outras coisas, Decroux dirá sobre Dullin: “Dullin me formou, me deu bom gosto”.
É
no contexto do Théâtre de l’Atelier que ele se encontrará com JeanLouis
Barrault, que será o companheiro de suas primeiras pesquisas, seu parceiro nas
primeiras peças como La vie primitive (A
vida primitiva) e Le combat antique
(O combate antigo), e no célebre filme dirigido por Marcel Carné, Les enfants du paradis (O boulevard do
crime). É ainda no contexto do Atelier que ele se encontrará mais tarde com
Marcel Marceau, que será seu aluno de 1944 a 1948.
3º.)
Louis Jouvet. Ator, diretor, cenógrafo, especialista em Girandoux, Louis Jouvet
é uma grande figura do teatro francês e foi imortalizado pelo cinema dos anos
1930-40. É também alguém que vem do grupo de Copeau. Ele tem uma dicção muito
precisa, incisiva, e uma presença física completamente particular. Decroux
falará sobre Jouvet: “Jouvet me inspirou pelo estilo, eu sentia em seu trabalho
o perfume da marionete, sentia o homem articulado”.
4º.)
Enfim, o quatro pai, o grande pensador do teatro da primeira metade do século
XX, o inglês Gordon Craig, cujas obras serão lidas por Decroux e com quem vai
se encontrar diversas vezes. Decroux escreveu longamente sobre Craig em seu
livro Paroles sur le mime. O personagem agradalhe como outros seus
contemporâneos, homens de teatro como Adolfo Appia, Meyerhold, Stanislavski e,
mesmo mais tarde, Antonin Artaud. Craig luta para encontrar um teatro baseado
na redescoberta do corpo e das possibilidades físicas do ator. Em um período de
sua vida, Craig tem até uma posição extrema: ele sonha em substituir o ator
deficitário por uma supermarionete. Para as diferentes questões levantadas por
Craig para revolucionar a arte teatral, Decroux tem sua resposta: a mímica
corporal dramática. Quais são essas questões: descobrir as leis do teatro, o
domínio da emoção, o pudor, o estilo e o símbolo, a necessidade de visualidade
no teatro, a aprendizagem prolongada antes de representar, inspirar-se no
método das outras artes, desconfiar dos outros artistas quando desejam ajudar o
teatro sem serem legitimados. É verdade que quando vemos essas questões,
observamos que Decroux em toda a sua vida se dedicou a encontrar uma solução.
Craig, por sua vez, saudará muitas vezes o trabalho de Etienne Decroux,
notadamente a propósito de um célebre espetáculo apresentado por Decroux, seus
alunos, Jean-Louis Barrault e Eliane Guyon na Salle da la Chimie em junho de
1945.
Retomemos,
agora, o curso da vida de Decroux. Sua primera peça de mímica propriamente
dita, remonta a 1931: La vie primitive (A vida primitiva) que ele monta com sua
mulher e encena no Théatre Lancry, em Paris.
Anteriormente,
ao mesmo tempo em que levava sua atividade como ator, ele teve diversas
pequenas companhias – “Une Graine”, “1787” – que se situam no contexto da
propaganda anarquista e que propõem espetáculos que mesclam pesquisas corporais
e poemas. Mas, muito rapidamente, Decroux se distancia de um teatro de
propaganda. Interessa-lhe mudar a base do teatro e não as histórias que ali são
contadas. A propósito disso, ele dirá:
Eu
não creio que a função da mímica seja mostrar especialmente que uma doutrina é
melhor do que outra, que o capitalismo é melhor do que o socialismo; a mímica é
uma arte prometeica, ela dá vontade de se colocar de pé.
Decroux,
fala, portanto de uma revolução em profundidade.
Em
1937, ele cria Le Menuisier (O
carpinteiro) que ainda hoje continua sendo uma obra-prima; em 1939-40, L’Usine (A fábrica), La lessive (A lavadeira), L’halterophile (O halterofilista), Le professeur de boxe (O professor de
boxe).
É
a segunda guerra mundial. Decroux é fichado como anarquista e enterra seus
livros no jardim.
Em
1942, Passage des hommes sur la terre
(Passagem dos homens sobre a terra). 1945, Le
Combat Antique (com Barrault na Comédie Française, dentro da montagem de
Antônio e Cleópatra, de Shakespeare), Le
lutteur (O lutador), Le bureaucrate
(O burocrata), L’esprit malin (O
espírito travesso). 1946, Le ballet des
machines en songe (O balé das máquinas em devaneio), Les arbres (As árvores)... 1950, Les petits soldats (Os
soldadinhos), sua peça mais longa com uma grande manipulação de objetos,
intervenções vocais e canto. Além disso, ele tem cada vez mais alunos. Os anos
passam e Etienne Decroux cria sem parar, incansavelmente.
A
partir de 1945, como mencionei anteriormente, ele pode se dedicar apenas às
suas pesquisas, ele ensina, ele faz turnês pela Europa – Itália, Suíça,
Holanda, Áustria, Suécia, Dinamarca. Toda a vanguarda do teatro europeu entra
em contato com ele, cedo ou tarde, de Giorgio Strehler a Eugenio Barba. Nos
anos 50, ele também se encontrará com Martha Graham, a célebre coreógrafa
americana durante sua turnê em Paris.
Entre
1957-58, dá-se a criação de La méditation
(A meditação), um dos carros-chefe de sua obra.
Não
se pode deixar de mencionar também, claro, o constante suporte de sua esposa e
de seu filho Maximilien, que será um fiel colaborador durante anos.
A
partir de 1958-1959, ele parte para os Estados Unidos, onde permanece em duas
temporadas, convidado como professor no Actor’s Studio, depois em diferentes
universidades, em particular a Waco, no textas e depois a New York University.
É
um período muito feliz em sua vida. Ele tem alunos, ele pode recriar uma
companhia, ele cria novas peças, Les
gangstères (Os gângsteres), Rêve
d’amour (Sonho de amor), La glace
prend feu (O gelo pega fogo), Scene
du Parc (Cena do parque), Table
d’hôtes (Mesa de convidados), Conference
(Conferência), retoma Les Arbres,
L’usine, Passage des hommes sur la terre, Le combat antique. Este período
americano marca uma etapa importante em sua carreira. A técnica se torna
precisa, se intensifica no contato com este mundo novo que são os Estados
Unidos, onde tudo é maior e mais rápido.
Nesta
época, ele é definitivamente um mestre da mímica corporal, expert na arte do corpo dramático. Deste corpo, ele dirá: “É o
corpo que paga, é o corpo que sofre. Quando vejo um corpo se levantar, é como
se eu sentisse a humanidade se levantar”.
Não
é mais um militante anarquista ativo, mas suas idéias são sempre as mesmas e eu
diria que ele, ainda mais, procura sempre se perdoar por não ser mais do que um
ator. No íntimo, ele tem um pouco de vergonha de ainda não estar morto como
herói trotskista. Então, ele tem uma espécie de bússola moral que o empurra
também a pesquisar alguma coisa que contenha um desafio. Ator, sim, mas não
simplesmente para contar [histórias], mas para fazer, fazer com seu corpo, se
colocar em perigo. Em 1978, durante uma conferência, ele dirá: “O ator é um
mentiroso que acredita em suas mentiras”.
Em
1962-63, ele volta para a França. Em 1963, dá-se o lançamento do livro Paroles
sur le mime. Depois, é o período de Boulogne Billancourt. Ele se instala de
novo na casa de seu pai, com sua esposa onde ele poderá abrir sua escola e onde
permanecerá até o dia 12 de março de 1991, quando deixou esta terra.
Em
minha opinião, é de fato graças a este período de BoulogneBillancourt que a
técnica da mímica corporal dramática é hoje tão precisa. Decroux está em sua
própria casa, as coisas acontecem no ritmo que ele decide. Pouco a pouco, ele
se afasta da vida pública para se dedicar unicamente a seus alunos e a suas
pesquisas. Ele continuará criando até o final: numerosos duos amorosos, peças
que tratam das relações sociais, do lirismo poético, da relação com Deus, da
memória... numerosos títulos, que levariam muito tempo para serem enumerados.
Ele retoma também incansavelmente, para benefício dos novos intérpretes, as
peças antigas. Ele dá precisão a suas pesquisas de modo cada vez mais familiar,
para seus assistentes e alunos vindos do mundo inteiro.
A
MÍMICA CORPORAL DRAMÁTICA
Enfim,
o que é esta mímica corporal dramática, que vai ocupar toda a vida de Etienne
Decroux? É uma maneira de pensar o teatro, uma maneira de fazer. Alguns vêem
nela apenas um treinamento de ator, uma base. Outros, um propósito, uma arte.
Copeau via uma seção do teatro. Rapidamente, Decroux vê o inverso. Eu o cito:
“A mímica tem mais a fazer do que completar uma outra arte. Ela pode se tornar
suficiente por si só, superior ao teatro, igual à dança. A mímica é a essência
do teatro o qual é um acidente da mímica”.
Ou
ainda:
Quando
o ator se abstiver de aparecer em cena acompanhado do seu corpo, ele podera se
abster de estudar a arte do corpo. O teatro de vanguarda[ii] é
o ator e pronto. O ator é tudo. Podemos abrir mão de tudo, menos do ator. O
teatro é a arte do ator!
Então,
se quisermos resumir seu pensamento por um sofisma:
O
teatro é o ator
O
ator é a arte do corpo
Então,
o teatro é a arte do corpo
Mas,
enfim, qual arte do corpo, porque no fundo há a dança que é muito rica e que
oferece, com todos os seus diferentes gêneros, uma expressão cênica corporal
imensa.
Então,
se quisermos resumir seu pensamento por um sofisma: O teatro é o ator O ator é
a arte do corpo Então, o teatro é a arte do corpo Mas, enfim, qual arte do
corpo, porque no fundo há a dança que é muito rica e que oferece, com todos os
seus diferentes gêneros, uma expressão cênica corporal imensa.
Esta
tendência aliás de sempre pesquisar as causas, as fontes, fará parte integrante
de sua maneira de trabalhar no nível conceitual, bem como no nível prático.
Muito
rapidamente, logo no início, a favor de suas primeiras pesquisas e peças, ele
observará que o ponto comum entre todos os seres e os objetos habitantes deste
mundo – idade, cultural, origem misturados – é a submissão e luta contra a
gravidade terrestre.
“Tudo
pesa”, dira ele. “O inimigo é o peso”. Eis, portanto, este drama original que
vai permitir-lhe edificar sua arte, e não é escondendo esta luta contra a
gravidade, este acorrentamento à terra, mas expressando-a e expressando as mil
e uma maneiras de lutar contra ou de ir a favor dela. Muitas de suas primeiras
obras, aliás, abordam temas que tratam de relações com a matéria ou diferentes
luas da vida (A Vida Primitiva, A
Fábrica, O Carpinterio, A Lavadeira, O Combate, O Halterofilista, etc.).
Ele não abandonará jamais esta idéia de força, pois ela é o fundamento desta
arte prometeana. É o que ele chama de L’homme
de sport (Homem de Esporte): o ator mostra seu esforço, representa o
esforço de modo muscular, mecânico, em suas relações com o espaço, com os
outros, os objetos, a matéria imaginária, os sentimentos, consigo mesmo. Ele
expõe sua luta objetiva ou subjetiva, suas impossibilidades. Decroux terá uma
frase célebre a propósito disso: “é no desconforto que o mímico fica
confortável”.
Como
ele trabalha tudo isso? As pessoas que não o conheceram bem ou que não foram
seus alunos próximos, o descrevem frequentemente como um “gramático” ou um
teórico. Isso é falso. Ele era antes de tudo um homem de ação e, neste sentido,
um autêntico homem de teatro. E ele só fazia reflexões por escrito e teorizava
depois de ter experimentado – e até hoje – as centenas de exercícios escolares
que constituem uma espécie de “barra” (como a barra da dança), para os atores,
foram estruturados, pouco a pouco à luz das peças criadas.
O
que é apaixonante é que ele é também seu primeiro instrumento: ele cria, ele
experimenta tudo, não tem medo de errar, ele é dotado de uma vitalidade
excepcional, tem muita audácia corporal e, claro, ele também cria com os
outros, seus camaradas, alunos discípulos. Portanto, desde o início ele tem
esta tripla atividade de criador, pedagogo, teórico.
Então,
em paralelo a este homem de esporte do qual falei antes, ele se interessa em
representar a vida dos homens e das mulheres em outas condições do que aquela
do esforço. E ele define três outros “contextos” que vão determinar três outras
categorias de estilo de jogo.
De
fato, Etienne Decroux não propõe uma maneira, um estilo único, mas diversos, um
corpo múltiplo. E, claro, essas 4 categorias de jogo são bem definidas, mas
podem se casar no interior de uma mesma criação. Podemos até adiantar que
existiria uma quinta categoria, que é o domínio, a assimilação e a síntese das
quatro primeiras. É por isso que, para mim, o ator da mímica cororal se torna
um verdadeiro artista criador.
Então,
ao lado do Homem de Esporte existe L’Homme
de Salon (o Homem de Salão): o Homem de Salão trata da representação
das atividades humanas que não têm como objetivo a produção. É, por exemplo, o
ser em situação social que se comporta, desloca objetos, tem uma certa relação
com os outros, com o espaço, mas não produz. Seu esforço é, portanto,
diferente. Este “salão” não é simplesmente um cômodo na casa. É uma maneira de
ser, sem esforço aparente. “É o ser que faz sem fazer e que está sempre
tranquilo” – descreve Etienne Decroux.
Em
seguida temos a Statuaire Mobile (a
Estatuária Móvel). Este modo de jogo que descreve um modo de deslocamento, dos
orgãos do tronco, não descreve um personagem, mas tenta representar o
encadeamento, o processo do pensamento. É o que Etienne Decroux chama de
retrato visível do invisível. O corpo descreve as curvas no espaço, curvas
simples ou contraditórias, com ritmos diferentes. O corpo se torna como um
trem, “o trem do pensamento” e se desloca vagão por vagão.
Esta
“corrente”, como se fosse um colar feito de movimento, é uma espécie de
analogia corporal que evoca não um pensamento em particular, mas antes o
próprio procedimento da atividade de pensar, o nascimento de uma idéia, seu desenvolvimento,
a dúvida, a contradição, o retorno, a progressão. Há estatuária móvel em
praticamente todas as obras de Etienne Decroux e, também, há outras que
utilizam mais especificamente este modo. As
árvores, em 1945, A meditação (57-58), O
profeta, Le lyrisme poétique (O lirismo poético), Duo Amoroso no Parque St.
Cloud.
Finalmente,
L’homme de songe (O homem de sonho),
que não é uma categoria de movimento propriamente dita, nem um personagem, mas
uma maneira de fazer, uma maneira de ofegar. Um movimento com um certo ritmo,
uma certa textura muscular que faz com que o corpo tenha um ar dilatado e não
faz o retrato do momento presente. Entramos, então, no domínio do sonho, do
devaneio. O corpo é instrumento da memória. Eu cito: “os seres e as coisas se
deslocam como em uma sociedade de nuvens”.
São,
certamente, todas as maneiras diferentes de fazer movimentos ligados, lentos,
mas também acelerações, desde que sintamos que as coisas não pertençam à
realidade presente, mas ao surgimento da lembrança. É também a categoria do
equilíbrio instável, do movimento em suspensão. Se podemos dizer que o Homem de Esporte é o herói, o Homem de Sonho é o herói que se lembra e
que adquire assim um status de anjo, flutuando acima das consequências e das
causas do presente.
Eu
poderia continuar essa descrição por muito tempo e a análise desta arte da
mímica corporal, mas seria necessário que esta conferência durasse ao menos cem
anos. Espero simplesmente ter compartilhado um pouco desta grande visão da
representação corporal proposta por Etienne Decroux e para terminar este
capítulo, eu vou lir uma outra citação: “o corpo é uma luva cujos dedos seriam
o pensamento; nosso pensamento empurra nossos gestos, como um polegar de
escultor empurra formas e nosso corpo esculpido a partir do interior se dilata.
O mímico é, ao mesmo tempo, escultor e escultura”
“O
mímico é o ator dilatado.”
foto em: http://kanopydance.org/guest-artist-workshop-corporeal-mime-physical-theatre/ |
REPERTÓRIO
Agora,
eu gostaria de falar um pouco mais especificamente sobre o repertório de
Etienne Decroux, de suas peças. Podemos, certamente, afirmar que este
repertório está diretamente ligado à evolução da técnica, mas como hoje a
mímica corporal é uma técnica utilizada por diferentes criadores que se
utilizam dela em seus próprios estilos, eu penso que é importante continuar
estudando, interpretando e assistindo ao repertório de Etienne Decroux.
Mais
de 80 peças, uma centena de figuras, cerca de cinquenta marchas. As durações
das peças são variáveis, mas em geral são obras curtas, poemas corporais, de 2
a 35 minutos.
Elas
não foram escritas, nem anotadas em um sistema de notação do movimento (durante
a vida do autor). Elas foram comentadas por escrito pelo autor, frequentemente
filmadas. Elas foram portanto criadas por ele, em seu corpo ou com outras
pessoas e uma parte deste repertório está viva hoje graças à transmissão
aluno-professor (como na dança).
É
um repertório extremamente variado, de solos, duos, trios, grupos que,
permanecendo no contexto da mímica corporal, apresentam aspectos estéticos
muito diferentes. Às vezes, temos a impressão de que elas não pertencem ao
mesmo autor.
A
fonte de inspiração é muito vasta. Eu vou citar Etienne Decroux a propósito
disso: “nossa arte é depurar e ampliar, depurar e ampliar o que? O que fazemos
na vida, todas a vezes em que não dançamos. É reconstruir a natureza, partindo
do corpo. Então, isso se torna um programa muito vasto e oferece temas bastante
clássicos, como a luta, o trabalho, as relações amorosas, a guerra, o fervor
político, a relação com Deus, as relações em sociedade e também alguma coisa
que lhe é completametne própria: a ausência. A ausência, por exemplo, de um
ente querido”.
O
que é, por outra lado, completamente nova é a maneira de tratar estes temas,
que nunca serão adaptações corporais de uma obra literária, mas sempre
criações, peças originais. Uma peça com Etienne Decroux nasce frequentemente ao
longo de uma sessão de improvisação. Ou ele tem um tema em mente e pede a seus
alunos que improvisem, ou ele não tem uma idéia especial antes de começar e e
sua genialidade de esolher, como dizia Jean-Louis Barrault, o fará observar um
gesto, uma atitude, um ritmo e assim um tema se revelará pouco a pouco, à
medida em que o trabalho acontece.
Ele
parte, então, primeiro da realidade, do que ele vê, uma realidade que pode ser,
portanto, objetiva - um gesto esportivo, uma profissão, uma atividade, um gesto
amoroso, um comportamento social -, ou mesmo uma realidade imaginada, de quem a
priori não se vê o vôo do pensamento. Portanto, essas realidades objetivas ou
imaginadas constituem o que ele nomeia de l’original
supposé [o suposto original ou suposto concreto]. Ele nunca tenta traduzir
palavras em gesto. Eu posso dizer até que seu repertório mostra o que as
palavras não podem dizer e isso graças à predominância da “maneira”, do “como”
sobre a história (a intriga). Uma ação, por exemplo, por mais concreta que
seja, não será jamais inserida unicamente em sua realidade fotográfica, mas
apresentada através dos diferentes ângulos subjetivos, do pensamento e da
memória, do que ele denomina de ponto de vista.
Etienne
Decroux não nos apresenta em sua mímica apenas o que se mostra ao olho nú, mas
também as realidades escondidas das ações, os efeitos internos, as raízes, as
consequências. É um pintor cubista. Ele mostra simultaneamente o direito e o
avesso de uma imagem, de uma ação.
“O
que é precioso”, ele dirá, “é a dupla impressão do já visto e do ainda não
visto”.
Assim,
estre tratamento que mostra a maneira e o ato ao mesmo tempo, revela uma
verdade profunda dos seres, revela o estado de espírito do autor do ato, o que
é um procedimento, certamente, teatral, e que, aplicado ao corporal resulta no
que ele chama de palavra dramática.
Por
exemplo, em uma de seus peças célebres, A
Lavadeira, e mais precisamente, em uma parte que ele chama “a costura”, o
fio da costura, ao invés de diminuir à medida em que o trabalho avança,
aumenta, aumenta, para evocar um sentimento que também aumenta: o sonho
acordado e amoroso da Lavadeira. Através desta ampliação não realista do gesto,
ele nos indica a distorção do tempo e da ação através do prisma de um
sentimento.
Ele
também permanece afastado das modas. Ele não gosta da anedota, não gosta de
histórias excessivamente ligadas, próximas demais da realidade do dia
O
Combate Antigo, por exemplo, que
representa a luta de dois homens, poderia se situar tanto na antiguidade quanto
no presente.
Seu
teatro é estilizado, quase sagrado. Isso, aliás, permite que ele aborde
domínios que na cena seriam dificilmente suportáveis se a maneira fosse realista:
a guerra, o sofrimento, a morte ou a sexualidade. Ele diz, aliás, a propósito
disso, uma coisa muito bonita: “é preciso estar longe e perto ao mesmo tempo, o
gesto deve ser desconhecido e, no entanto, reconhecido”.
Não
apenas seu teatro é estilizado, mas ele se utiliza também para tratar de temas
que o inspiram, do que ele chama de “metáfora pelo avesso”: o espetáculo com
tal ou qual ação vai sugerir a ideia, ao invés do procedimento teatral
tradicional que se constitui em colocar na cena, dar forma e criar imagens de ideias
já escritas em sua totalidade. A fim de explicar ao mesmo tempo o procedimento
do trabalho artístico ele teve numerosas fórmulas verbais: “Uma direita moral é
uma direita material antes de ser moral” ou “quando falamos de Diderot que ele
tinha um espírito vasto, as coisas são vastas na matéria, antes de serem vastas
no espírito de Diderot”. “A mímica corporal”, diz ainda Etienne Decroux, “faz a
coisa e o espectador, ao ver a coisa material pensa em sua analogia com o
espiritual”.
A
maior parte das peças de Etienne Decroux segue estes procedimentos, seja em sua
totalidade ou parcialmente.
A
meditação, por exemplo, que representa as interrogações, as dúvidas e as
contradições de um homem que pensa, que estabelece estratégias, encadeia um
raciocínio, nos apresenta um ator com o rosto coberto que recorta o espaço,
esculpe uma matéria imaginária, empurra, puxa forças exteriores, desenha
paisagens. Então, Decroux não faz uma “mímica propriamente dita” da
perplexidade, por exemplo, ou da dúvida. Ele faz a mímica de outra coisa e esta
outra coisa nos faz pensar ainda melhor sobre a coisa em si. O mesmo fenômeno
acontece em peças como “Le Toucher”
(O tato) que é uma peça sobre a sensibilidade através de sua analogia material
– tocar -, ou As árvores que, ao
representar os ciclos da vida das árvores, nos lembra o ciclo da vida dos
homens.
Outra
característica: a não linearidade do tempo.
Deste
modo, vê-se frequentemente representar na cena, ao mesmo tempo, ações que não
acontecem no mesmo momento.
Por
exemplo, em Passagem dos Homens sobre a Terra, vemos um grupo que caminha – que
é o futuro. Um homem para: o presente. Uma mulher que grita: o passado. É o
tempo do pensamento e não uma cronologia cotidiana.
Há
também um modo de encadear as ações que se parece mais com a montagem
cinematográfica do que com o teatro tradicional. Ele não mostra tudo, ele
dilata, acelera, corta como em O
Carpinteiro e A lavadeira. Ele
não descreve. Ele interpreta, o que dá a impressão de densidade em suas peças.
Ele gosta de ir até a essência das coisas.
Esteticamente,
ele mistura sabiamente um espírito geométrico, um amor pelas curvas e uma arte
da tensão e do relaxamento, influência da escultura.
Em
A fábrica, por exemplo, peça que
representa o trabalho em série, impessoal, que acontece nas fábricas, a
geometria é muito presente e visualmente evidente. De fato, não podemos
identificar exatamente o que os atores empurram e puxam, mas o ritmo e a
precisão dos planos, as linhas descritas pelos braços e troncos, nos mergulham
completamente no mundo das cadências infernais.
Ao
lado desta arquitetura da linha, há uma paixão e um entusiasmo pela curva no
repertório de Etienne Decroux: a curva é a paixão, diz Decroux, e podemos ver
esta arte da curva nos numerosos duos amorosos onde os corpos dos atores se
enrolam e se desenrolam em concavidade e convexidade complementares. A curva,
tão bem descrita pela Estatuária Móvel,
e notadamente a curva em três dimensões, permite mostrar o caminho percorrido
entre a raiz e o propósito, como uma planta que se curva ao vento, ou deseja o
sol.
E
em todos os lugares, o movimento alterna entre tensão e relaxamento, entre
choque e ressonância. O choque é o movimento brusco.
A
maior parte das peças é representada apenas por meio do corpo, mas ele utiliza
também objetos simples - uma cadeira, uma mesa, tecidos, bastões - e
rapidamente esses objetos tomam uma dimensão simbólica ou metafórica.
A
cadeira na peça Le fauteuil de l’absent
(A poltrona do ausente) representa o ser amado que se foi.
Etienne
Decroux não acredita que o silêncio seja a condição única da existência da
mímica. Contrariamente a uma idéia reinante, a mímica pode utilizar a expressão
verbal, a música, intervenções cantadas. Ele recomenda simplesmente que se
preste atenção para o que som não obscureça o jogo corporal.
Termos
sido alunos e assistentes de Etienne Decroux, foi para Steven Wasson e para
mim, uma experiência determinante. Seu ensino, sua personalidade, sua fé
absoluta no fato de que a mímica corporal tinha uma missão: salvar o mundo do
sedentarismo e da preguiça, nos entusiasmaram. Sua escola, situada na casa de
Bologne Billancourt se tornou uma espécie de país ideal, onde a maravailhosa
utopia teatral que representa a mímica reinava em soberania absoluta
Etienne
Decroux era um professor sem concessões para o menor sinal de preguiça. Ele se
doava o tempo interiro, todos os dias; ele explodia de vida, de imaginação e de
cultura. Este apetite pelo belo, pelo bem-fazer, pelo bemconceber, não parecia
nunca enfraquecer, apesar da idade relativamente avançada que tinha quando nós
o encontramos (no final dos anos 70 até 1984).
A
atmosfera da escola era alegre, estudantil, e tinha o perfume dos partidos
políticos clandestinos. Decroux, às vezes, tinha terríveis acessos de coléra
que se abatiam como grandes tempestades de final de estação. Os alunos prendiam
a respiração, fascinados por tanta paixão.
O
trabalho como assistentes, a seu lado, foi definitivamente o elemento mais
formador que nós tivemos chance de viver. Era preciso colaborar com ele e sua
esposa em sua vida cotidiana, assegurar o bom funcionamento administrativo da
escola, ensinar e ensaiar sob sua direção. Este último aspecto está impresso
para sempre em nossas mentes e modelou nosso modo de fazer teatro.
Etienne
Decroux criou quatro peças com Steve e comigo: O profeta, Duo Amoroso no Parque St. Cloud, La Femme Oiseau (A mulher
passarinho), A poltrona do ausente. Tudo partia de sessões de improvisação
e seguiam o renomado princípio da metáfora pelo avesso que eu descrevi antes.
As sessões tinham ares de encontros secretos: dois assistentes, às vezes um ou
dois convidados de Decroux, eternamente inspirado, vestindo majestuosa e invariavelmente
um velho roupão, um pouco como os boxeadores antes de uma luta.
No
início, não havia temas, nem indicações. Decroux falava de uma coisa ou de
outra e, depois, em um certo momento, ele dizia: façam qualquer coisa. Tudo
surgia de uma imobilidade presente, que se preenchia pouco a pouco de
lembranças e impressões vividas ou imaginárias. Então, surgia um movimento, uma
ação, um gesto.... que vem desta memória profunda que cada um possui, mas que
precisa ser solicitada.
Ao
nos observar, pouco a pouco, um tema se estabelecia, e ele construía,
infatigável, como um escultor – escultor do espaço, do corpo, inventando o
corpo pensante, trabalhando pela eternidade e pelos deuses. Eu sempre admirei a
perspicácia de Decroux, diretor. Além de seu próprio gênio, ele sabia sempre
trazer à luz a personalidade verdadeira de seus intérpretes e lhes permitia
assim chegar a um nível de reflexão e execução talvez insuspeito até então. Nós
nunca esqueceremos esses anos passados em Boulogne Billancourt.
Hoje,
nós tentamos com nossa escola e nossa companhia continuar a magia Decrouxiana e
reinventá-la através de nosso mundo do Théâtre de l’Ange Fou.