quinta-feira, 25 de maio de 2017

UM CORPO PARA DOIS

Um corpo para dois.
O duplo e a gramática do absurdo

Tradução de Claudia Venturi

Texto para os amantes de clássicos romanos, como Plauto, Ovídio, Apuleio

Artigo publicado pelo Dipartimento di Filologia Classica e Italianistica Alma Mater Studiorum - Università di Bologna no site:
http://www.griseldaonline.it/temi/il-corpo/corpo-per-due-grammatica-assurdo-pasetti.html

Ille ego / Est ego qui loquitur / qui fuerim liber, eum nunc potivit pater servitutis / si anumque hanc…audire voles , quae te… amo. / Meus Lucius, meus asinus /
 
Foto Lucia no site http://www.corrierecomunicazioni.it/

1. Ille ego[i]

Certe edepol, quom illum contemplo et formam cognosco meam, / quem ad modum ego sum (saepe in speculum inspexi), nimis similest mei; / itidem habet petasum ac vestitum: tam consimilest atque ego; / sura, pes, statura, tonsus, oculi, nasum vel labra, / malae, mentum, barba, collus: totus. quid verbis opust? / si tergum cicatricosum, nihil hoc similist similius. / sed quom cogito, equidem certo idem sum qui semper fui. / novi erum, novi aedis nostras; sane sapio et sentio. / non ego illi obtempero quod loquitur; pultabo foris. «Certo, para Pólux, quando o olho e reconheço o meu aspecto, como eu sou – frequntemente me olho no espelho – com certeza se parece muito comigo. Tem o chapéu e as vestimentas iguais, se parece comigo como eu mesmo me pareço. Perna, pés, estatura, cabelos, olhos, nariz, lábios, bochechas, queixo, barba, pescoço, tudo. Para que servem as palavras? Se tem as costas cheias de cicatrizes, não existe uma semelhança mais semelhante do que esta. Mas, quanto mais eu penso nisso, realmente eu sou o mesmo que sempre fui: não há dúvida. Conheço o meu patrão, conheço a nossa casa, tenho o bom senso e os sentidos em ordem. “Não dou ouvidos àquilo que ele diz: baterei na porta» (Amph. 441-449)[ii].

Plauto - foto do site:
 http://artedramaticord.blogspot.com.br

Assim, em Anfitrião, de Plauto, o escravo Sosia reconhece, estupefato, a perfeita semelhança física entre si e o seu duplo. O caso se torna conhecido enquanto o rei Anfitrião está ocupado com uma guerra e Júpiter assume a sua identidade para seduzir a sua mulher, Alcmene. Mercúrio o assiste em sua trapaça, calado por sua vez no lugar de Sosia, o escravo do rei. Quando o servo e o patrão humanos retornam da guerra, as suas vidas estão bagunçadas pela presença dos respectivos duplos. Um dos momentos culminantes da crise é o encontro entre o verdadeiro e o falso Sosia[iii], uma cena sem precedentes, até então, na literatura ocidental, mas destinada a conhecer uma extraordinária sorte nos séculos sucessivos. Voltando ao monólogo de Sosia, é evidente que a percepção da identidade passa através do reconhecimento de cada parte do corpo: é o motivo lacaniano de “corpo fragmentado”, muito frequentemente associado ao tema do duplo[iv]. A aparição de um ser idêntico a ele lança Sosia em uma crise de identidade: o efeito produzido pelo duplo é aquele descrito por Freud através da categoria do perturbante. Inquieto e desorientado, o escravo procura de todas as formas de racionalizar o que houve e de reconfirmar a própria identidade. O tormento de Sosia encontrou um intérprete atento em Bettini[v], que mostrou como o escravo tenta reconduzir a situação absurda no leito da própria experiência: a visão de uma figura idêntica a sua, não pode mais do que recordar-lhes da imagem refletida no espelho, “um paradigma antropológico de longa duração” e como tal, quase onipresente na literatura sobre o duplo[vi]. Mas, na tentativa de explicar o outro, Sosia recorre também a modelos de referência típicos de sua cultura, por exemplo, questionando-se: ubi immutatus sum? “Onde me transformei?” (v. 456), exprime a suspeita de ter sido vítima de um feiticeiro que se apoderou do seu aspecto (nam hicquidem omnem imaginem meam, quae antehac fuerat, possidet “Porque, certamente, possui todo o meu aspecto, aquilo que era meu” v. 458). Chiarisce Bettini (2000, 170): “per l’immutatus Sosia existe, de fato, um recíproco, ou meglio, um complementar: se trata daquele ser medroso que, ele mesmo, é especificamente  evocado em O Anfitrião, o versipellis”; o termo versipelistroca a pele” recorre de fato, no prólogo da comédia, lá onde se diz de Júpiter ita vorsipellem se facit quando lubet “é tão bom trocando a pele quando o agrada” (v. 123). Immutatus e versipellis identificam então duas formas diferentes de viver o des-duplicamento, que se adequarão dolorosos presentes.
Mas em quais consequências implicam a ansiedade di Sosia sobre o plano da língua? Pensado como imagem refletida ou como furto de identidade[vii], o “des-duplicamento” – observa Fusillo (1998, 64) – “é um fenômeno que acompanha as categorias da lógica e da linguagem”; o uso dos pronomes pessoais é sentido em primeiro lugar[viii], do qual oferece um exemplo eficaz o confuso relato que Sosia faz a Anfitrião sobre a própria incrível experiência: neque, ita me di ament, credebam primo mihimet Sosiae, / donec Sosia ille egomet fecit sibi uti crederem. / ordine omne, uti quicque actum est, dum apud hostis sedimus, / edissertavit. tum formam una abstulit cum nomine. / neque lac lactis magis est simile quam ille ego similest mei. “Desde o princípio – os deuses me protejam – nem eu conseguia acreditar em mim mesmo. Sosia, até que aquele eu ali, Sosia, me constrangeu a acreditar nele. Contou-me nos mínimos detalhes tudo aquilo que aconteceu enquanto estávamos nas presas do inimigo: e além disso me roubou o aspecto junto com o nome. Duas gotas de água não se parecem mais do que aquele eu se assemelha a mim”. (597-601)
A confusão gerada pelo fato de que o pronome de primeira pessoa, ego, se aplique a duas referências, situações absurdas, em contraste com as leis da lógica e da gramática. A intenção de Sosia, que narra a Anfitrião aquilo que o aconteceu, é aquela de distinguir os dois termos em questão: si mesmo e o seu duplo. Responde ao objetivo a combinação “paradoxal” [ix]di ille a ego, (aquele eu), com o qual Sosia consegue efetivamente “marcar” o duplo, distanciando-o de si[x]. É, ao contrário, absolutamente falido – e exatamente por isso cômico – o insistente emprego do reforçado – met (egomet, “exatamente eu”) que acrescenta até mesmo a ambiguidade do pronome de primeira pessoa. A confusão atinge o auge quando Sosia, para a pergunta de Anfitrião, quis te verberavit? “Quem te bateu?”, responde egomet memet, qui nunc sum domi “eu mesmo me bati, eu que agora estou em casa” (607): aqui o pronome de primeira pessoa corresponde, em termos jackobsonianos, ao domínio da função emotiva. Dominado pelo tormento, Sosia renuncia a explicar aquilo que ele mesmo não consegue compreender, cedendo a um uso indiferenciado do pronome e atribuindo a si as ações do outro (qui nunc sum domi).

2. Est ego qui loquitur

O jogo com os pronomes, felizmente inaugurado por Plauto[xi], prossegue com um dos seus inúmeros epígonos[xii]: Vitale di Blois, autor do Geta, uma comédia elegíaca do século XII que repropôs o sujeito de Plauto, com algumas importantes variações atribuíveis à diferença de gênero e à fruição indireta do modelo[xiii]. Em primeiro lugar Anfitrião não é mais um valoroso comandante veterano de guerra, mas um estudante de filosofia que retorna para a sua pátria após um longo período de estudos em Atenas. Outras mudanças significativas intervêm no sistema dos personagens, no qual Sosia é substituído por Geta, um servo corrompido das características destacadamente plautianas. No complexo, todavia, o acontecimento segue o esquema habitual. Júpiter se aproveita da ausência do marido para substituí-lo e se enfiar no leito de Alcmene, enquanto que o seu ajudante Arcade (o equivalente ao Mercúrio de Plauto) assume o semblante de Geta. O encontro entre o verdadeiro e o falso Geta, que ocupa toda a parte central do texto (vv. 255-394), acontece sem que os dois se vejam: Arcade fala a Geta por trás da porta da casa, obstinando-se a não abrir. O efeito perturbador se dá pelo fato de que Geta reconhece a sua própria voz e, em seguida, recebe de Arcade uma detalhada descrição do seu aspecto físico e de seus (reprováveis) hábitos. Para afrontar a inevitável crise de identidade, Geta recorre aos instrumentos da dialética, aprendidos por ele durante os estudos em Atenas: desde o primeiro momento, reconhecendo a própria voz através da porta, ele recorre às suas noções de lógica para explicar o fenômeno: qui loquitur mecum voce est et corpore Geta: / voce loqui Gete quis nisi Geta potest? / Sed logici memorant quod vox erit uma duorum / atque duos nomen significabit idem; “Aquele que fala comigo tem a voz e o nome de Geta. Quem, se não Geta, pode falar com a voz de Geta? Mas os lógicos afirmam que uma só ‘voz’ pode se referir a duas coisas e que um só ‘nome’ poderá indicar duas pessoas”[xiv] (257 – 260). A tentativa mal feita que desfruta a ambiguidade de vox (seja “voz” ou “nome”), é somente a primeira de uma série de racionalizações destinadas a se encerrarem com o fracasso de Geta[xv] e o conseguinte repúdio do instrumento dialético: Sic sum, sic non sum. Pereat dialética per quam / sic perii penitus! Nunc scio: scire nocet “Raciocinando de certo modo eu existo, de outro não existo. Ao diabo a dialética, por culpa da qual eu acabei indo ao diabo! Oras eu sei: o saber é nocivo” (409-410). Um dos princípios que orientam as reflexões de Geta é, como mostrou Bertini, a fórmula di Boezio[xvi]: quidquid est, ideo est quia unum est, “o que quer que exista, existe exatamente porque é único”[xvii]. Contradita pela presença do duplo: (277-278) est ego qui mecum loquitur; sed nescio fiat / qua ratione qui prius unus erat, “Sou eu mesmo que falo comigo mesmo, mas não consigo compreender como consiga desdobrar-se quem antes era apenas um”. Além do princípio de Boezio, entra em crise até a gramática: est ego qui mecum loquitur repropõe a concordância paradoxal de antes (ego) e terceira pessoa (est) refletindo sobre o plano linguístico, o curto circuito lógico desencadeado pelo desdobramento. Observando bem, a distorção gramatical é ainda maior do que no plautiano ille ego, o suficiente para presumir a influência de um código linguístico diferente: atrás est ego se prevê o francês c’est moi. A comédia oferece outros exemplos de concordância anômala de ego com o verbo: ai vv. 355-356 Geta arremessa contra Arcade Dic, age, quo pacto, quibus Amphitrionem / fallis ut ET factis sis ego simque nichil! “Adiante, diga-me de que modo, com quais truques, engana Anfitrião porque até das suas ações emerge que você é eu e que eu não existo!”. O confronto verbal com o duplo se conclui assim (v. 393) “sis ego”, respondit, “ ego sum nichil!” “E então seja também eu”, responde, “eu não existo”.

3. qui fuerim liber, eum nunc potivit pater servitutis

Anfitrione - foto da editora Einaudi
Mas tornemos a Plauto. L’Anfitrione não restitui apenas o ponto de vista dos humanos imutáveis, mas também, ainda se em medida mais limitada, dos deuses artífices do desdobramento. Mercúrio è o responsável pelas desgraças de Sosia, ao qual há subtraído a identidade: é então um charlatão, um ser capaz de se transformar a seu gosto. De outro lado é por sua vez vítima de Júpiter, que o impôs que abandonasse as vestes do deus para vestir aquela desagradabilíssima do escravo[xviii]. Quando, em sua primeira aparição em cena, Sosia, ainda desconhecedor de tudo, reclama de sua condição de servo, Mercúrio, sem ser visto, comenta em um “a parte”: Satiust me queri illo modo servitutem: / hodie qui fuerim líber, / eum nunc potivit pater servitutis – “Seria mais justo que fosse eu a reclamar daquela forma de escravidão. Eu, que até hoje era livre, acabei na escravidão do meu pai” (177 -178). A tradução perde um aspecto importante do texto de Plauto no qual está presente um forte anacoluto [xix], não fácil de ser restituído para o italiano. Uma restituição mais próxima do original poderia ser: “eu que fui livre até hoje, aquela pessoa (eum), meu pai agora a tornou escrava”. A primeira pessoa, delatora da participação emotiva, é gramaticalizada no verbo (qui fuerim) e é reservada para a evocação do passado, a terceira (eum) serve para distanciar a identidade servil, que Mercúrio é submetido no presente. A passagem brusca de uma para outra gera o anacoluto, o sinal linguístico do desconforto que a metamorfose produziu no deus[xx].

4. si anumque hanc…audire voles, quae te… amo.

Metamorfose de Ovídio. Foto:
 Metamorphoses, 1618. Da BEIC, biblioteca digitale

Junto ao desdobramento, a metamorfose é uma das variantes fundamentais no tema do duplo, produzidas pela literatura antiga. Em ambos os casos entram em jogo dois corpos associados a uma única identidade, mas, enquanto no desdobramento os corpos subsistem contemporaneamente (os duplos podem se encontrar), na metamorfose não estão presentes ao mesmo tempo. O eu migra de um corpo para o outro, conservando, às vezes, intactos os pensamentos e sentimentos. A transformação física, quando é imposta por uma força superior não faz mais do que se tornar traumática e perturbante[xxi], mas também se acontece sob o pleno controle do sujeito, mesmo se equivale a um simples travestimento[xxii], pode dar lugar a conflitos entre o eu e a sua máscara, conflitos dos quais a língua conserva os traços. Um exemplo interessante se encontra nas Metamorfosi de Ovídio: trata-se do episódio do deus Vertumno (14, 622-771), que, como revela o nome ( de vertor, me transformo)[xxiii], é um versipellis, capaz de assumir qualquer figura. Apaixonado por Pomona que o repele, Vertumno se transforma em uma idosa – a velha cafetina bem conhecida na comédia[xxiv] - propondo ele mesmo para a garota como sendo o melhor entre todos os pretendentes: sed tu, si sapies, si te bene iungere anumque / hanc audire voles, quae te plus omnibus illis, / plus quam credis, amo, vulgares reice taedas. “mas você, se for sabia, se quiser casar-se bem e escutar esta velha, eu que te amo mais do que todos aqueles, mais do que você possa acreditar, recuse as núpcias vulgares”. (met.14,675-677). Mesmo neste caso a persona loquens refere-se a si mesma, ou melhor a sua face fictícia – a velha – empregando a terceira pessoa (hanc anum)[xxv], mas torna repentinamente a dizer “eu”, quando, até na ficção do travestimento, encontra-se a expressar os seus sentimentos (quae te... amo). Emerge aqui um tipo de “ironia cômica”, evidente na elucidação plus quam credis: o leitor sabe que nas vestes da velha se esconde, na verdade, Vertumno e é por isso capaz de distinguir – diferente de Pomona – a ambiguidade das suas palavras[xxvi]. Até o anacoluto faz parte do jogo irônico: o repentino retorno à primeira pessoa (amo), que transgride às regras da concordância (o antecedente do relativo é hanc anum), parece ao leitor como um tipo de lapso, não privado de efeitos cômicos. Com a mudança brusca de sujeito, o eu do apaixonado se faz ouvir através do travestimento. O discurso persuasivo da “velha”, sustentado por uma robusta estrutura lógica (a dupla hipotética) e tudo projetado sobre a interlocutora (tu, ti), deixa subitamente espaço à expressão direta dos sentimentos de Vertumno[xxvii]. A interrupção se recompõe no segmento final (vulgares reice taedas) que encerra a estrutura lógica e sintática do período relatando em primeiro plano a repreensão, mas, no entanto, mesmo que só por um momento, o domínio da função conativa se interrompeu e a urgência emotiva do eu conquistou a evidência.

6. Meus Lucius, meus asinus

Lucio Apuleio - foto:
 http://www.romanoimpero.com/2014/05/lucio-apuleio.html


Voltando à metamorfose propriamente dita, é inevitável o confronto com Apuleio. A narração apuleiana elabora o tema da transformação indesejada e por isso traumática. O protagonista, Lucio, assumindo um filtro mágico que deveria transformá-lo em pássaro, reencontrou-se, por engano, transformado em asno, um animal desagradável por muitos pontos de vista, o mesmo símbolo da burrice. Prisioneiro no corpo do asno, Lucio enfrentará múltiplas peripécias. Somente a intervenção divina poderá libertá-lo de sua condição desconfortável, restituindo-lhe à comunidade humana. A metamorfose não deixa de mostrar consequências na linguagem de Lucio que é, ao mesmo tempo, protagonista e narrador. Para medir tais consequências bastará lembrar a entristecida oração que o immutatus dirige à Iside para recuperar a forma humana. Após ter invocado a deusa segundo as formulas do ritual, o suplicante expressa finalmente o seu pedido: depelle quadripedis diram faciem, redde me conspectui meorum, redde me meo Lucio – “afugenta as horríveis aparência do quadrúpede, restitui-me à vista dos meus, restitui-me ao meu Lucio” (met.11,2). Que Lucio persona loquens, apresente a forma animal como um elemento estranho a si, designando-a desdenhosamente como quadripedis diram faciem, não desperta estupor, trata-se, de fato, de uma identidade monstruosa que se precipita como não natural[xxviii] e, como tal, oposta a forma humana que Lucio reivindica como sua. Esperar-se-ia então que ele, pedindo para Iside para que o re-tornasse homem, dissesse redde me mihi “resitua-me a mim mesmo”[xxix], contrário ao esperado pronome é substituído pelo próprio nome (meo Lucio). Casos semelhantes de “remoção’ do reflexivo são disseminados do resto em todo o romance, a partir do momento no qual o protagonista, ainda antes de ser transformado em asno, preocupado pede a Fodite; sed, quod sciscitari paene praeterivi, quo dicto factove rursum exutis pinnulis illis ad meum redibo Lucium? “Mas havia quase me esquecido de lhe perguntar, com quais palavras ou ações me despirei daquelas plumas e voltarei a ser o Lucio de antes?” (3,23). Também aqui é claro que ad meum Lucium redibo, propriamente “voltarei ao meu Lucio”, substitui ad me redibo “voltarei a mim”. Somente o adjetivo possessivo atenua parcialmente  a ausência do pronome, sublinhando um vínculo com o eu[xxx]. A oposição entre “eu” “Lucio” e “asno” é então evidente na reevocação nostálgica do passado humano ao qual o narrador se abandona em met.7,2: veteris fortunae ET illius beati Lucii praesentisque aerumnae et infelicis asini facta comparatione, medullitus ingemebam “eu, comparando a felicidade passada e aquele beato Lucio de então, com a presente miséria e o infeliz asno de agora, me afligia no mais profundo da alma”. Aqui Lucius e asinus são termos autônomos e reciprocamente distanciados no tempo.[xxxi] Deste fato deriva uma divisão linguística do indivíduo (ego / Lucius / asinus) que não deixou de desencadear leituras do tipo psicoanalítico: bastará recordar aquela de Jung, de Von Franz[xxxii], que individua na metamorfose de Lucio “uma divisão neurótica da personalidade” (p. 58). Mais próxima à cultura de Apuleio estão outros modelos hermenêuticos, por exemplo, no plano da fábula, parece interessante a proposta de Zimmerman[xxxiii], que comparou a divisão do protagonista em “ego” e “Lucius” à tópica separação dos apaixonados no romance grego, em ambos os casos as duas partes (do eu e do casal) vem divididos para depois reunir-se no final, após inumeráveis peripécias, a nível linguístico, a hipótese encontra uma confirmação no frequente emprego do possessivo afetivo (meus Lucius)[xxxiv]. Um modelo interpretativo talvez ordinário, mas assim mesmo eficaz[xxxv], é então aquele da viagem: após a metamorfose, o eu cumpre um percurso que o reconduz do asno a Lucio. A metáfora odisseica é explícita em uma das tantas reflexões do protagonista: nec inmerito priscae poeticae divinus auctor apud Graios summae prudentiae virum monstrare cupiens multarum civitatium obitu et variorum populorum cognitu summas adeptum virtutes cecinit. Nam et ipse gratas gratias asino meo memini, quod me suo celatum tegmine variisque fortunis exercitatum, etsi minus prudentem, multiscium reddidit “Não sem razão o divino autor da antiga poesia junto aos gregos, querendo descrever um homem de grande sabedoria, disse que ele havia adquirido as maiores virtudes visitando muitas cidades e conhecendo vários povos. Por isso eu também lembro do meu velho asno com muita gratidão porque, tendo me mantido escondido sob a sua pele e fazendo-me experimentar várias vicissitudes, me tornou se não um sábio, ao menos especialista  em tantas coisas” (9,13). Aqui o eu narrador institui uma comparação entre si mesmo e Odisseo, chegando a reavaliar a experiência da metamorfose porque os consentiu de ampliar o conhecimento do mundo[xxxvi]. Até essa leitura encontra justificativas no plano lexical, nas já mencionadas oposições entre o presente rejeitado e o passado reinvocado com nostalgia (o prior Lucius de quem fala Gianotti)[xxxvii] pode-se facilmente reconhecer uma “retórica do retorno” típica do modelo odisséico.

L'asino d'oro - di Apuleio.
Foto: http://www.romanoimpero.com/2014/05/lucio-apuleio.html

O discurso interpretativo permanece de qualquer forma aberto. Certo, a tripartição do indivíduo evoca um fascínio que sobrevive intacto na linguagem moderna da metamorfose. Bastará recordar a página final do romance de Stevenson, a carta na qual um escandalizado Dr. Jekyll, quase na vigília do suicídio, entrega a confissão da sua trágica experiência de desdobramento: “Estava ainda imerso nestas conjecturas quando, em um momento de maior lucidez, me cai o olhar sobre a mão. Como você mesmo pode observar, a mão de Henry Jekyll havia um quê de profissional por forma e dimensão: grande, firme, branca e bem modelada. Mas aquela que agora me aparecia na luz amarelo pálida da manhã londrina, abandonada e revelada sobre os edredons, era mísera, toda tendões e juntas, de uma palidez de clorose, sombreada por uma densa pilosidade. Era a mão de Edward Hyde”[xxxviii].


Dr. Jekyll e Mr. Hide - Foto: https://flipquiz.me


Notas:




[i] O ille ego do qual se fala aqui não tem a ver com o módulo gramatical ille ego (sum) mais expressão relativa («eu sou aquele que… »): uma fórmula de autoapresentação frequente no epigrama e nas epigrafes e concretizada na célebre proposição da Eneida (de Virgilio): ille ego qui quondam gracili modulatus avena / carmen et egressus silvis vicina coegi, / ut quamvis avido parerent arva colono, / gratum opus agricolis, at nunc horrentia Martis / arma virumque cano, «Eu sou aquele que modula o canto com uma frágil flauta e, saindo dos bosques, constrangeu os campos vizinhos a satisfazer os desejos do agricultor, por mais ávido que fosse – obra que agrada aos colonos – mas agora canto as terríveis armas de Marte e o herói… ». Sobre estes versos, relatados por Donato (Vita Verg. 42), por Servio (ad Aen. 1,1) e, quase certamente não virgilianos, se vê L. Gamberale, in Enciclopedia Virgiliana IV, Roma, IEI, 1988, pp. 259-261, s.v. Preproemio dell'Eneide.
[ii] A tradução é - aqui como mais adiante – aquela de Oniga (Tito Maccio Plauto, Anfitrião, de Renato Oniga, introdução de M. Bettini, Veneza, Marsílio, 1997). Para um comentário sobre a passagem em questão, veja-se também, além do próprio Oniga (p. 207), A. Traina, Comoedia. Antropologia della palliata, Padova, Cedam, 2000, pp 50 – 51.
[iii] De outra forma, se perdeu – resta apenas algum fragmento – a cena do encontro entre os dois Anfitriões, que deveria representar “o ápice da confusão e da tensão ramática”. (cf. Oniga 1997, p. 228 ad frr. XV-XX).
[iv] Veja-se a propósito M. Fusillo, L’altro e ló stess. Teoria e storia del doppio” Firenze, La Nuova Italia, 1998: em particular, pp. 63 e 233. No estudo – aquele que se fará referência mais vezes – dois capítulos são dedicados ao Anfitrião de Plauto (pp59-80) e aos seus seguidores (pp. 81-103), tratados como exemplos de “identidade roubada” (cf. infra, n.7)
[v] Cf. M. Bettini, Sosia e il suo sosia: pensare il doppio a Roma, em Le orecchie di Ermes, Torino, Einaudi, 2000, pp. 148-176
[vi] Assim Fusillo 1998, p. 63; o tema é aprofundado através da análise do filme expressionista Lo Studente di Praga 91913), no qual o diabo se apodera da imagem refletida do protagonista (cf. Pp. 152-171). No que se trata do mundo antigo, cf. G. Guidorizzi, lo specchio e la mente: un sistema d’intersezioni, em M. Bettini, La Maschera, il doppio e il ritratto, Bari, Laterza, 1991, pp. 31-45: vem sublinhado o poder mágico e perturbante do espelho, “autônomo criador de formas” capaz de trazer para a superfície fantasmas ou aspectos escondidos da personalidade.
[vii] Fusillo define “identidade roubada” a situação na qual o duplo se coloca como antagonista do personagem, substituindo ele: entre as obras que exemplificam o tema são examinados o Anphitruo, a Elena de Eurípedes, Gli elisir del diavolo de Hoffmann, Le confessioni di un peccatoreeletto  de Hoegg, até Petrolio de Pasolini.
[viii] Cf. Bettini 2000, p. 159: “Quando a linguagem pretende descrever a perda da identidade, espera-se que as linhas normais do discurso se deformem: e essa sorte acontece, antes de tudo, com os pronomes pessoais.
[ix] A definição é de Fusillo 1998, p. 67.
[x] Eu me refiro, em particular, ao v. 601, menos certa é a interpretação do v. 598, na qual alguns editores leem illic egomet. A combinação retorna quase ao final do diálogo, quando Anfitrião pede pela enésima vez a Sosia do que estava falando e o servo irritado responde: Sosia, inquam, ego ille. “Sosia, digo-te, aquele eu ali”. (625)
[xi] O emprego paradoxal e dos pronomes é, em efeito, uma característica da comicidade de Plauto, os faz um recurso até quando o motivo do desdobramento não é funcional à estrutura dramática (como ocorre em “L’Anfitrione” e em “Menecmi”), mas somente à brincadeira extemporânea, inteiramente jogado sobre o plano da língua: veja-se a respeito C. Bernal Lavessa, El motivo della suplantación de personalidad em la técnica compositiva de Plauto, in K. Andresen – J. Vicente Bañuls – F. de Martino, La dualitat em el teatre, Levante, 2000, pp. 45–66; entre os exemplos reportados da autora (pp. 62-65), vou relembrar apenas Stico (729-734), no qual o escravo Stico se anima em compartilhar a mesma mulher com Sagarino: haec facetiast, amare inter se rivalis duos, / uno cantharo potare, unum scortum ducere. / hoc memorabilest: ego tu sum, tu ES ego, unianimi sumus, / unam amicam mamamus ambo, mecum ubi est, tecum est tamen; / tecum ubi autem est, mecum ibi autemst: neuter neutri in videt. “que divertimento o querer bem entre rivais, beber em uma só taça, ter uma mesma amante. Isto merece ser contado: eu sou você, você é eu, somos um só coração, amamos todos os dois uma única mulher; quando ela está comigo, está também com você; quando então está com você, está também comigo. Nenhum tem ciúmes do outro”. Até aqui é evidente o jogo com o pronome: ego tu sum, tu ego es.
[xii] A comédia de Plauto conheceu uma sorte extraordinária da idade Média até a Idade contemporânea; entre os numerosos estudos dedicados ao tema basta recordar conforme F. Bertini, Anfitrione e il suo doppio, de Plauto a Guilherme de Figueredo, e em Plauto e dintorni, Roma – Bari, Laterza, 1997, pp. 67-94;M. Bettini, Anfitrione prima e dopo Plauto em Bettini 2000, 184-204; e o já citado capítulo deFusillo 1998, pp. 81-103.
[xiii] À respeito do modelo, parece provável que Vitale conhecesse Plauto através de uma reforma na prosa da antiguidade tardia. Sobre a questão, conforme a introdução de Bertina para a Vitale di Blois, Geta, por F. B., na Comédia Latina dos séculos XII e XIII, Genova, Publicações do Instituto de Filologia Clássica e Medieval, 1980, volume III, pp. 145-151; além disso, se vê do mesmo autor, Da Menandro e Plauto alla commedia latina Del XII secolo, em Bertini, 1997, pp. 125-126.
[xiv] Esta e as traduções sucessivas são de Bertini (Vitale di Blois, Geta, pp. 182-241)
[xv] Sobre cultura filosófica de Vitale, cf. F. Bertini, Il Geta di Vitale di Blois e la scuola di Abelardo, “Sandalion” 2, 1979, pp. 257-265.
[xvi] Bertini 1979, pp. 258-259.
[xvii] Trata-se do incipt do De unitate et uno (PL 63, col. 1075 A)
[xviii] Um papel socialmente desavantajado e, portanto, detestado. A certo ponto o mesmo Sosia queria se aproveitar da situação para se libertar da condição servil: Ibo ad portum atque ut sunt facta, erro dicam meo: / nisi etiam is quoque me ignorabit. Quodille faxitIuppiter, / ut ego hodie raso capite calvos capiam pilleum – “Não me resta outro que ir ao porto e relatar ao meu dono como as coisas aconteceram: a menos que ele mesmo não me reconheça mais! Que Júpiter faça realmente esta graça, assim que hoje eu possa me barbear e colocar o boné dos livres” (pp. 460-463).
[xix] A irregularidade é produzida pela contaminação de duas construções:qui fuerim líber, me potivitpater servitutis (“o pai me tornou escravo, eu que era livre”) e qui fuerit liber, eum potivit pater servitutis (“o pai que tornou escravo aquele que era livre”). Um caso parecido pode ser individuado em Virgílio (ecl.4, 63) qui non risere parentes, / nec deus hunc mensa, dea necdignata cubilist, assim interpretado por Traina em Virgílio. A utopia e a história. O livro XII da Eneide e Antologia das operas, de A. Traina, Torino, Loescher, 1997, p. 27: “ Quem não sorrir para os pais” e um singular, hunc, “nem um deus o dignou...”): se trata de uma concordância de sentido, o “sentido”.
[xx] Sobre a origem psicológica do anacoluto, cf. J. B. Hofmann – A. Szantyr, Stilistica latina, de A. Traina, Bologna, Patron, 2002 (Ed or München, 1965), pp. 74 – 78.
[xxi]Sobre um aspecto particularmente perturbante do embrutecimento nas Metamorfoses de Ovidio, a perda da palavra logomorfosi, veja-se em L. Landolfi, Posse logui eripitur (Ov.Met.2,483). Perda de palavra ,  perda de identidade nas Metamorfoses, em L. Landolfi – P. Monella, Ars adeo latetarte sua. Reflexões sobre a intertestualidade de Ovídio. Le Metamorfosis, Palermo, Flaccovio, 2003, pp.29-58
[xxii]Uma casuística da metamorfise em Ovídio (ativa, imposta, experienciada de forma passiva) é encontrado em E. Rossi, Ruoli e escambi di ruoli nelle Metamorfosi ovidiane, ASNP serie IV, vol. II. 2,1997, pp. 454-555: os casos examinados têm a ver com a transformação da identidade sexual. Particular atenção é direcionada à metamorfose como meio de sedução, funcional a um “projeto de fraude” (pp.459s), categoria na qual se recupera o episódio de Vertumno.
[xxiii]A etimologia é explicita em Properzio 4,2,47-49: at mihi, quod formas unus vertebar in omnis, / nomen ab eventu pátria língua dedit. Outras possíveis etimologias (ou paretimologias) são lembradas por F. Boldrer, Il mito di Vertumno tra Properzio e Ovidio, ARF3, 2001, pp. 87-88, em. 6.
[xxiv]A presença de elementos cômicos no episódio foi revelada mais vezes: G. Rosati, Narciso e Pigmalione. Illusione e espettacolo nelle Metamorfosi d’Ovidio, Firenze, Sansoni, 1983, pp. 106-110, individua pontos evidentes de contato com a comédia na trama baseada no travestimento e na cumplicidade entre autor e leitor por trás de quem sofre a fraude Pela contaminação de lírica, épica e comédia no episódio e, em particular, pela presença da cafetina, veja-se também E. Fantham, Sunt quibus in plures ius est transire figuras: Ovid’s self-transformers in the Metamorphoses, CW 87/2, 1993, pp. 21-36.
[xxv] O vínculo entre a idosa e a persona loquens é hic, o demonstrativo de primeira pessoa: Vertumno aponta o dedo idealmente sobre o seu travestimento: “esta velha aqui”. O uso da terceira pessoa ao invés da primeira é, segundo Bömer (P. Ovidius Naso, Metamorphosen, Kommentar Von F. Bömer, Buch XIV-XV, Heidelberg, C. Winter, 1986, p. 210, ad met. 675), um trato peculiar da língua de uso, transferido para a poesia, encontram-se vários exemplos em Plauto, entre os tantos citados, bastará recordar Bacch. 640 hunc hominem (=me) decet auro expendi, como também nos poetas do período de augustos. Nestes casos registra-se tipicamente o emprego de hic.
[xxvi] Cf. M.von Albrecht, Dichter und Leseer; am Beispiel Ovids; “Gymnasium” 88, 1981, pp. 222-234;in part. Cf. p. 234: o jogo é concretizado também mais adiante, quando a velha diz de Vertumno: neque enim sibi ille notior est quam mihi “ele não é conhecido a si mesmo mais do que a mim” (14, 679) e miserere ardentis, ET ipsum, / quod petit, ore meo praesentem crede precari “tenha piedade dele, que queima de amor e providencia que seja ele pessoalmente a dirigir esta súplica pela minha boca” (14, 691-692). Para “a postura de cumplicidade entre autor e espectador em frente à ignorância do personagem ridicularizado” cf. Rosati 1983, p. 110.
[xxvii] A urgência da paixão de Vertumno se manifesta na conclusão do episódio: pois que o discurso se revelou ineficaz, o deus, abandonados os trajes da velha, se prepara para violentar Pomona (vimque parat, 14, 770). A ninfa, todavia, impressionada pela sua beleza, cede a ele espontaneamente. Sobre o recurso final à violência, cf. W.R. Johnson, Vertumnus in Love, CPh 92 (4), 1997, p. 367 e R. Gentilcore, The landscape of desire: the tale of Pomona and Vertumnus in Ovid’s Metamorphosis, “Phoenix” 49 1995, pp. 110-120; diga-se, todavia, que uma excessiva insistência sobre o aspecto violento e destrutivo da paixão de Vertumno acaba por anular a dimensão irônica do episódio.
[xxviii] Particularmente apropriado o emprego do adjetivo dirus (depelle quadripedis diram faciem), que sublinha o trato da não naturalidade: sobre a semântica do lexema, veja-se A. Traina, Dira libido. Sobre a linguagem de Lucrecio de Eros, em Poeti latini (e neolatini). Note e saggi filologici, Bologna, Patron, 19912, pp.11-34.
[xxix] Com uma fórmula já amplamente experimentada, por exemplo, por Cícero, no Discorso di ringraziamento AL senato (Cic. Post. Red. 8, 25)Princeps P. Lentulus, parens ac deus nostrae vitae, fortunae, memoriae, nominis, hoc indicium animi, hoc lumen consulatus sui fore putavit, si me mihi, si vobis, si rei publicae reddidisset “Em primeiro Publio Lentulo, pai e deus protetor da minha vida, sorte, glória e nome, considera prova de valor, demonstração de coragem e glória do seu consulado a restituição de mim a mim mesmo, aos meus queridos, a vocês, ao estado” (trad. De G. Bellandi, em M.Tullio Cicerone,  Le orazioni, por G. B., Torino, Utet, vol. III, p. 97). Trazido do exílio, o orador agradece pela restituição da sua identidade civil e social. A mesma locução se refere à recuperação de um estilo de vida autêntico em Horácio (epist.1,14, 1-2) vilice silvarum et mihi me reddentis agelli / quem tu fastidis “fazendeiro dos meus bosques e do campinho que me restabelece a mim mesmo e, ao contrário, te chateia”. A tradução é de C. Carena, em Q. Orazio Flacco, Le opere, Roma, Istituto Poligrafico e Zecca dello Stato, 1997, Vol. III/2, p. 841. Veja-se também o comentário de P. Fedeli, no vol. III/4, pp. 1193-1194 “mihi me reddentis faz entender que o retorno para o campo restitui a Horácio aquele pleno domínio de si mesmo que ele não consegue exercitar na cidade, junto à capacidade de viver como melhor deseja.” Mas é em Sêneca que a fórmula entra em pleno título na linguagem filosófica da interioridade: dial. 10, 8,5 nemo restituet annos, nemo iterum te tibi reddet “ninguém te devolverá os anos, ninguém te restituirá de novo a você mesmo”. Sobre a presença de fórmulas similares em Sêneca e em Agostino, veja-se Comento di Traina, Torino, Loescher, 19967, p. 20).
[xxx] A distribuição dos sintagmas meus Lucius / meus asinus no romance foi analizado por J.J. Winkler, Auctor&actor, a Narratological Reading of Apuleius Golden Ass, Berkeley, Los Angeles, London, University of California Press, 1985, pp. 149-153, que ilustrou a funcionalidade narratológica. Parece, de fato, que qualquer um dos dois sintagmas corresponda a uma diferente modalidade de focalização. Em particular, meus asinus (= “the ass I was) revela o ponto de vista de Lucio-auctor, que então já havia retornado a ser homem. Conta o que lhe aconteceu (aquele que Winkler define o narrador “agostiniano”, colocado em um tempo então distante da época da metamorfose e disposto a refletir sobre o passado). Por outro lado, meus Lucius (“the Lucius I was) assinalaria a focalização interna: o olhar é aquele de Lucio-actor (ou agens), o personagem diretamente envolvido na ação, que pensa com nostalgia à sua figura humana. Apuleio demonstra assim saber atuar em um hábil jogo de perspectiva que não encontra precedentes na literatura antiga.
[xxxi] Frequentemente a evocação de Lucio se acompanha ao relevo da distância temporal: a exemplo em 9,13 veterisque Lucii fortunam recordatus “recordando a felicidade de Lucio de um tempo”, ou em 10,29 plane tenui specuça solabar clades ultimas, quod... spirantes cinnameos odores promicarent rosae, quae me priorimeo Lucio redderent “somente com uma pequena esperança me consolava com as últimas desgraças... dispersando o perfume de canela deles, desabrochavam as rosas que me teriam restituído ao meu Lucio de antes.” Este aspecto foi observado por G.F. Gianotti, Romanzo e ideologia, Napoli, Liguori, 1986, p. 43 em 29, que individua uma contraposição entre o Lucius anterior, precedente à metamorfose, e o novo Lucio, tornado homem para o benefício de Iside. Após a re-transformação a identidade humana do protagonista seria totalmente renovada e substancialmente diferente daquela do passado.
[xxxii] Cf. M. L. Von Franz, L’asino d’oro, Torino, Boringhieri, 1985 (ed. or. Frankfurt 1980).
[xxxiii] Apuleius Madaurensis, Metamorphoses, Book X, Text, Introduction and Commentary by Zimmerman, Groningen, Egbert Forsten, 2000, p. 357 ad 10, 29.
[xxxiv] A repreensão pode-se recordar que a expressão meus Lucius aparece na boca de Fotide, amante de Lucio na primeira parte do romance: 3,25 exibis asinum statimque in meum Lucium postliminio redibis, afirma a garota, tentando tranquilizar o protagonista após tê-lo transformado, por engano, em um asno. Além disso, na oração à Iside de 11,2: redde me meo Lucio, redde me conspectui meorum, o paralelismo entre meo Lucio e conspectui meorum põe a forma humana do protagonista pelo menos no mesmo plano de uma pessoa querida.
[xxxv] Modelo carregado de ressonâncias filosóficas na cultura medioplatônica do autor: cf. Gianotti1986, pp. 98-99, com bibliografia.
[xxxvi] Cf. o comentário de Mattiacci al passo (Apuleio, Le novelle dell1adulterio, Metamorfosi IX, a cura di S. Mattiacci, Firenze, Le Lettere, 1996, p. 140), com os adiamentos de Gianotti 1986, p. 100 e a H. v. Thiel, Der Eselroman. I. Untersuchungen, München, C.H.Beck, 1971, pp. 136-138. Em particular, sobre a natureza da consciência adquirida por Lucio (não sabedoria filosófica, mas superficial sofistica), veja-se E.J. Kenney, In the Mill with Slaves: Lucius Looks Backin Gratitude, TPhS 133, 2003, pp. 159-192.
[xxxvii] Cf. n. 34.
[xxxviii] Cf. R.L. Stevenson, O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Senhor Hyde, em R.L.S., Romanzi, racconti e saggi, a cura di A. Brilli, Milano, Mondadori, 1982 (ed or. 1886), p.635. Para uma leitura freudiana da obra, cf. R. Rutelli, Il desiderio del diverso. Saggio sul doppio, Napoli, Liguori, 1984,pp. 44-64; a autora individuou três actantes internos na narração: Hyde (o mal, ou seja, o impulso do Id), Jekyll, (o Eu ou a consciência) e a tendência de Jekyll de reprimir violentamente os próprios impulsos (o Super-eu, designado no conto como o “upright twin” de Hyde).