Um corpo para
dois.
O duplo e a
gramática do absurdo
Tradução de Claudia Venturi
Texto para os amantes de clássicos romanos, como Plauto, Ovídio, Apuleio
Texto para os amantes de clássicos romanos, como Plauto, Ovídio, Apuleio
Artigo publicado pelo Dipartimento di Filologia Classica e Italianistica
Alma Mater Studiorum - Università di Bologna no site:
http://www.griseldaonline.it/temi/il-corpo/corpo-per-due-grammatica-assurdo-pasetti.html
Ille ego
/ Est ego qui loquitur / qui fuerim liber, eum nunc potivit pater servitutis /
si anumque hanc…audire voles , quae te… amo. / Meus Lucius, meus asinus /
1. Ille ego[i]
Certe
edepol, quom illum contemplo et formam cognosco meam, / quem ad modum ego sum
(saepe in speculum inspexi), nimis similest mei; / itidem habet petasum ac
vestitum: tam consimilest atque ego; / sura, pes, statura, tonsus, oculi, nasum
vel labra, / malae, mentum, barba, collus: totus. quid verbis opust? / si
tergum cicatricosum, nihil hoc similist similius. / sed quom cogito, equidem
certo idem sum qui semper fui. / novi erum, novi aedis nostras; sane sapio et
sentio. / non ego illi obtempero quod loquitur; pultabo foris. «Certo,
para Pólux, quando o olho e reconheço o meu aspecto, como eu sou –
frequntemente me olho no espelho – com certeza se parece muito comigo. Tem o
chapéu e as vestimentas iguais, se parece comigo como eu mesmo me pareço.
Perna, pés, estatura, cabelos, olhos, nariz, lábios, bochechas, queixo, barba,
pescoço, tudo. Para que servem as palavras? Se tem as costas cheias de
cicatrizes, não existe uma semelhança mais semelhante do que esta. Mas, quanto
mais eu penso nisso, realmente eu sou o mesmo que sempre fui: não há dúvida.
Conheço o meu patrão, conheço a nossa casa, tenho o bom senso e os sentidos em
ordem. “Não dou ouvidos àquilo que ele diz: baterei na porta» (Amph.
441-449)[ii].
Plauto - foto do site: http://artedramaticord.blogspot.com.br |
Assim, em
Anfitrião, de Plauto, o escravo Sosia
reconhece, estupefato, a perfeita semelhança física entre si e o seu duplo. O
caso se torna conhecido enquanto o rei Anfitrião está ocupado com uma guerra e
Júpiter assume a sua identidade para seduzir a sua mulher, Alcmene. Mercúrio o
assiste em sua trapaça, calado por sua vez no lugar de Sosia, o escravo do rei.
Quando o servo e o patrão humanos retornam da guerra, as suas vidas estão
bagunçadas pela presença dos respectivos duplos. Um dos momentos culminantes da
crise é o encontro entre o verdadeiro e o falso Sosia[iii],
uma cena sem precedentes, até então, na literatura ocidental, mas destinada a
conhecer uma extraordinária sorte nos séculos sucessivos. Voltando ao monólogo
de Sosia, é evidente que a percepção da identidade passa através do
reconhecimento de cada parte do corpo: é o motivo lacaniano de “corpo
fragmentado”, muito frequentemente associado ao tema do duplo[iv].
A aparição de um ser idêntico a ele lança Sosia em uma crise de identidade: o
efeito produzido pelo duplo é aquele descrito por Freud através da categoria do
perturbante. Inquieto e desorientado, o escravo procura de todas as formas de
racionalizar o que houve e de reconfirmar a própria identidade. O tormento de
Sosia encontrou um intérprete atento em Bettini[v],
que mostrou como o escravo tenta reconduzir a situação absurda no leito da
própria experiência: a visão de uma figura idêntica a sua, não pode mais do que
recordar-lhes da imagem refletida no espelho, “um paradigma antropológico de
longa duração” e como tal, quase onipresente na literatura sobre o duplo[vi].
Mas, na tentativa de explicar o outro, Sosia recorre também a modelos de
referência típicos de sua cultura, por exemplo, questionando-se: ubi immutatus sum? “Onde me
transformei?” (v. 456), exprime a suspeita de ter sido vítima de um feiticeiro
que se apoderou do seu aspecto (nam
hicquidem omnem imaginem meam, quae antehac fuerat, possidet “Porque,
certamente, possui todo o meu aspecto, aquilo que era meu” v. 458). Chiarisce
Bettini (2000, 170): “per l’immutatus
Sosia existe, de fato, um recíproco, ou meglio, um complementar: se trata
daquele ser medroso que, ele mesmo, é especificamente evocado em O Anfitrião, o versipellis”;
o termo versipelis “troca a pele”
recorre de fato, no prólogo da comédia, lá onde se diz de Júpiter ita vorsipellem se facit quando lubet “é
tão bom trocando a pele quando o agrada” (v. 123). Immutatus e versipellis identificam então duas formas diferentes de
viver o des-duplicamento, que se adequarão dolorosos presentes.
Mas em
quais consequências implicam a ansiedade di Sosia sobre o plano da língua?
Pensado como imagem refletida ou como furto de identidade[vii],
o “des-duplicamento” – observa Fusillo (1998, 64) – “é um fenômeno que acompanha
as categorias da lógica e da linguagem”; o uso dos pronomes pessoais é sentido
em primeiro lugar[viii],
do qual oferece um exemplo eficaz o confuso relato que Sosia faz a Anfitrião
sobre a própria incrível experiência: neque,
ita me di ament, credebam primo mihimet Sosiae, / donec Sosia ille egomet fecit
sibi uti crederem. / ordine omne, uti quicque actum est, dum apud hostis
sedimus, / edissertavit. tum formam una abstulit cum nomine. / neque lac lactis
magis est simile quam ille ego similest mei. “Desde o princípio – os deuses
me protejam – nem eu conseguia acreditar em mim mesmo. Sosia, até que aquele eu
ali, Sosia, me constrangeu a acreditar nele. Contou-me nos mínimos detalhes tudo
aquilo que aconteceu enquanto estávamos nas presas do inimigo: e além disso me
roubou o aspecto junto com o nome. Duas gotas de água não se parecem mais do
que aquele eu se assemelha a mim”. (597-601)
A
confusão gerada pelo fato de que o pronome de primeira pessoa, ego, se aplique a duas referências,
situações absurdas, em contraste com as leis da lógica e da gramática. A
intenção de Sosia, que narra a Anfitrião aquilo que o aconteceu, é aquela de
distinguir os dois termos em questão: si mesmo e o seu duplo. Responde ao
objetivo a combinação “paradoxal” [ix]di
ille a ego, (aquele eu), com o qual Sosia
consegue efetivamente “marcar” o duplo, distanciando-o de si[x].
É, ao contrário, absolutamente falido – e exatamente por isso cômico – o
insistente emprego do reforçado – met
(egomet, “exatamente eu”) que
acrescenta até mesmo a ambiguidade do pronome de primeira pessoa. A confusão
atinge o auge quando Sosia, para a pergunta de Anfitrião, quis te verberavit? “Quem te bateu?”, responde egomet memet, qui nunc sum domi “eu mesmo me bati, eu que agora
estou em casa” (607): aqui o pronome de primeira pessoa corresponde, em termos
jackobsonianos, ao domínio da função emotiva. Dominado pelo tormento, Sosia
renuncia a explicar aquilo que ele mesmo não consegue compreender, cedendo a um
uso indiferenciado do pronome e atribuindo a si as ações do outro (qui nunc sum domi).
2. Est ego qui loquitur
O jogo com os pronomes, felizmente inaugurado por Plauto[xi], prossegue com um dos
seus inúmeros epígonos[xii]: Vitale di Blois, autor
do Geta, uma comédia elegíaca do século XII que repropôs o sujeito de Plauto,
com algumas importantes variações atribuíveis à diferença de gênero e à fruição
indireta do modelo[xiii]. Em primeiro lugar Anfitrião
não é mais um valoroso comandante veterano de guerra, mas um estudante de
filosofia que retorna para a sua pátria após um longo período de estudos em
Atenas. Outras mudanças significativas intervêm no sistema dos personagens, no
qual Sosia é substituído por Geta, um servo corrompido das características
destacadamente plautianas. No complexo, todavia, o acontecimento segue o
esquema habitual. Júpiter se aproveita da ausência do marido para substituí-lo
e se enfiar no leito de Alcmene, enquanto que o seu ajudante Arcade (o
equivalente ao Mercúrio de Plauto) assume o semblante de Geta. O encontro entre
o verdadeiro e o falso Geta, que ocupa toda a parte central do texto (vv.
255-394), acontece sem que os dois se vejam: Arcade fala a Geta por trás da
porta da casa, obstinando-se a não abrir. O efeito perturbador se dá pelo fato
de que Geta reconhece a sua própria voz e, em seguida, recebe de Arcade uma
detalhada descrição do seu aspecto físico e de seus (reprováveis) hábitos. Para
afrontar a inevitável crise de identidade, Geta recorre aos instrumentos da
dialética, aprendidos por ele durante os estudos em Atenas: desde o primeiro
momento, reconhecendo a própria voz através da porta, ele recorre às suas
noções de lógica para explicar o fenômeno: qui
loquitur mecum voce est et corpore Geta: / voce loqui Gete quis nisi Geta
potest? / Sed logici memorant quod vox erit uma duorum / atque duos nomen
significabit idem; “Aquele que fala comigo tem a voz e o nome de Geta.
Quem, se não Geta, pode falar com a voz de Geta? Mas os lógicos afirmam que uma
só ‘voz’ pode se referir a duas coisas e que um só ‘nome’ poderá indicar duas
pessoas”[xiv] (257 – 260). A tentativa
mal feita que desfruta a ambiguidade de vox
(seja “voz” ou “nome”), é somente a primeira de uma série de racionalizações
destinadas a se encerrarem com o fracasso de Geta[xv] e o conseguinte repúdio
do instrumento dialético: Sic sum, sic
non sum. Pereat dialética per quam / sic perii penitus! Nunc scio: scire nocet
“Raciocinando de certo modo eu existo, de outro não existo. Ao diabo a
dialética, por culpa da qual eu acabei indo ao diabo! Oras eu sei: o saber é
nocivo” (409-410). Um dos princípios que orientam as reflexões de Geta é, como
mostrou Bertini, a fórmula di Boezio[xvi]: quidquid est, ideo est quia unum est, “o que quer que exista,
existe exatamente porque é único”[xvii]. Contradita pela
presença do duplo: (277-278) est ego qui
mecum loquitur; sed nescio fiat / qua ratione qui prius unus erat, “Sou eu
mesmo que falo comigo mesmo, mas não consigo compreender como consiga
desdobrar-se quem antes era apenas um”. Além do princípio de Boezio, entra em
crise até a gramática: est ego qui mecum
loquitur repropõe a concordância paradoxal de antes (ego) e terceira pessoa
(est) refletindo sobre o plano linguístico, o curto circuito lógico
desencadeado pelo desdobramento. Observando bem, a distorção gramatical é ainda
maior do que no plautiano ille ego, o suficiente para presumir a influência de
um código linguístico diferente: atrás est
ego se prevê o francês c’est moi.
A comédia oferece outros exemplos de concordância anômala de ego com o verbo: ai vv. 355-356 Geta
arremessa contra Arcade Dic, age, quo
pacto, quibus Amphitrionem / fallis ut ET factis sis ego simque nichil! “Adiante,
diga-me de que modo, com quais truques, engana Anfitrião porque até das suas
ações emerge que você é eu e que eu não existo!”. O confronto verbal com o
duplo se conclui assim (v. 393) “sis
ego”, respondit, “ ego sum nichil!” “E então seja também eu”, responde, “eu não
existo”.
3. qui fuerim liber, eum
nunc potivit pater servitutis
Anfitrione - foto da editora Einaudi |
4. si anumque hanc…audire
voles, quae te… amo.
Metamorfose de Ovídio. Foto: Metamorphoses, 1618. Da BEIC, biblioteca digitale |
Junto ao desdobramento, a metamorfose é uma das variantes fundamentais no tema do duplo, produzidas pela literatura antiga. Em ambos os casos entram em jogo dois corpos associados a uma única identidade, mas, enquanto no desdobramento os corpos subsistem contemporaneamente (os duplos podem se encontrar), na metamorfose não estão presentes ao mesmo tempo. O eu migra de um corpo para o outro, conservando, às vezes, intactos os pensamentos e sentimentos. A transformação física, quando é imposta por uma força superior não faz mais do que se tornar traumática e perturbante[xxi], mas também se acontece sob o pleno controle do sujeito, mesmo se equivale a um simples travestimento[xxii], pode dar lugar a conflitos entre o eu e a sua máscara, conflitos dos quais a língua conserva os traços. Um exemplo interessante se encontra nas Metamorfosi de Ovídio: trata-se do episódio do deus Vertumno (14, 622-771), que, como revela o nome ( de vertor, me transformo)[xxiii], é um versipellis, capaz de assumir qualquer figura. Apaixonado por Pomona que o repele, Vertumno se transforma em uma idosa – a velha cafetina bem conhecida na comédia[xxiv] - propondo ele mesmo para a garota como sendo o melhor entre todos os pretendentes: sed tu, si sapies, si te bene iungere anumque / hanc audire voles, quae te plus omnibus illis, / plus quam credis, amo, vulgares reice taedas. “mas você, se for sabia, se quiser casar-se bem e escutar esta velha, eu que te amo mais do que todos aqueles, mais do que você possa acreditar, recuse as núpcias vulgares”. (met.14,675-677). Mesmo neste caso a persona loquens refere-se a si mesma, ou melhor a sua face fictícia – a velha – empregando a terceira pessoa (hanc anum)[xxv], mas torna repentinamente a dizer “eu”, quando, até na ficção do travestimento, encontra-se a expressar os seus sentimentos (quae te... amo). Emerge aqui um tipo de “ironia cômica”, evidente na elucidação plus quam credis: o leitor sabe que nas vestes da velha se esconde, na verdade, Vertumno e é por isso capaz de distinguir – diferente de Pomona – a ambiguidade das suas palavras[xxvi]. Até o anacoluto faz parte do jogo irônico: o repentino retorno à primeira pessoa (amo), que transgride às regras da concordância (o antecedente do relativo é hanc anum), parece ao leitor como um tipo de lapso, não privado de efeitos cômicos. Com a mudança brusca de sujeito, o eu do apaixonado se faz ouvir através do travestimento. O discurso persuasivo da “velha”, sustentado por uma robusta estrutura lógica (a dupla hipotética) e tudo projetado sobre a interlocutora (tu, ti), deixa subitamente espaço à expressão direta dos sentimentos de Vertumno[xxvii]. A interrupção se recompõe no segmento final (vulgares reice taedas) que encerra a estrutura lógica e sintática do período relatando em primeiro plano a repreensão, mas, no entanto, mesmo que só por um momento, o domínio da função conativa se interrompeu e a urgência emotiva do eu conquistou a evidência.
6. Meus Lucius, meus asinus
Lucio Apuleio - foto: http://www.romanoimpero.com/2014/05/lucio-apuleio.html |
Voltando à metamorfose propriamente dita, é inevitável o confronto com
Apuleio. A narração apuleiana elabora o tema da transformação indesejada e por
isso traumática. O protagonista, Lucio, assumindo um filtro mágico que deveria
transformá-lo em pássaro, reencontrou-se, por engano, transformado em asno, um
animal desagradável por muitos pontos de vista, o mesmo símbolo da burrice. Prisioneiro
no corpo do asno, Lucio enfrentará múltiplas peripécias. Somente a intervenção
divina poderá libertá-lo de sua condição desconfortável, restituindo-lhe à
comunidade humana. A metamorfose não deixa de mostrar consequências na
linguagem de Lucio que é, ao mesmo tempo, protagonista e narrador. Para medir
tais consequências bastará lembrar a entristecida oração que o immutatus dirige à Iside para recuperar
a forma humana. Após ter invocado a deusa segundo as formulas do ritual, o
suplicante expressa finalmente o seu pedido: depelle quadripedis diram faciem, redde me conspectui meorum, redde me
meo Lucio – “afugenta as
horríveis aparência do quadrúpede, restitui-me à vista dos meus, restitui-me ao
meu Lucio” (met.11,2). Que Lucio persona
loquens, apresente a forma animal como um elemento estranho a si,
designando-a desdenhosamente como quadripedis
diram faciem, não desperta estupor, trata-se, de fato, de uma identidade
monstruosa que se precipita como não natural[xxviii] e, como tal, oposta a
forma humana que Lucio reivindica como sua. Esperar-se-ia então que ele,
pedindo para Iside para que o re-tornasse homem, dissesse redde me mihi “resitua-me a mim mesmo”[xxix], contrário ao esperado
pronome é substituído pelo próprio nome (meo
Lucio). Casos semelhantes de “remoção’ do reflexivo são disseminados do
resto em todo o romance, a partir do momento no qual o protagonista, ainda
antes de ser transformado em asno, preocupado pede a Fodite; sed, quod sciscitari paene praeterivi, quo
dicto factove rursum exutis pinnulis illis ad meum redibo Lucium? “Mas
havia quase me esquecido de lhe perguntar, com quais palavras ou ações me
despirei daquelas plumas e voltarei a ser o Lucio de antes?” (3,23). Também
aqui é claro que ad meum Lucium redibo,
propriamente “voltarei ao meu Lucio”, substitui ad me redibo “voltarei a mim”. Somente o adjetivo possessivo atenua
parcialmente a ausência do pronome,
sublinhando um vínculo com o eu[xxx]. A oposição entre “eu”
“Lucio” e “asno” é então evidente na reevocação nostálgica do passado humano ao
qual o narrador se abandona em met.7,2: veteris
fortunae ET illius beati Lucii praesentisque aerumnae et infelicis asini facta
comparatione, medullitus ingemebam “eu, comparando a felicidade passada e
aquele beato Lucio de então, com a presente miséria e o infeliz asno de agora,
me afligia no mais profundo da alma”. Aqui Lucius e asinus são termos autônomos
e reciprocamente distanciados no tempo.[xxxi] Deste fato deriva uma
divisão linguística do indivíduo (ego / Lucius / asinus) que não deixou de desencadear
leituras do tipo psicoanalítico: bastará recordar aquela de Jung, de Von Franz[xxxii], que individua na
metamorfose de Lucio “uma divisão neurótica da personalidade” (p. 58). Mais
próxima à cultura de Apuleio estão outros modelos hermenêuticos, por exemplo,
no plano da fábula, parece interessante a proposta de Zimmerman[xxxiii], que comparou a
divisão do protagonista em “ego” e “Lucius” à tópica separação dos apaixonados
no romance grego, em ambos os casos as duas partes (do eu e do casal) vem
divididos para depois reunir-se no final, após inumeráveis peripécias, a nível
linguístico, a hipótese encontra uma confirmação no frequente emprego do
possessivo afetivo (meus Lucius)[xxxiv]. Um modelo
interpretativo talvez ordinário, mas assim mesmo eficaz[xxxv], é então aquele da
viagem: após a metamorfose, o eu cumpre um percurso que o reconduz do asno a
Lucio. A metáfora odisseica é explícita em uma das tantas reflexões do
protagonista: nec inmerito priscae
poeticae divinus auctor apud Graios summae prudentiae virum monstrare cupiens
multarum civitatium obitu et variorum populorum cognitu summas adeptum virtutes
cecinit. Nam et ipse gratas gratias asino meo memini, quod me suo celatum
tegmine variisque fortunis exercitatum, etsi minus prudentem, multiscium reddidit
“Não sem razão o divino autor da antiga poesia junto aos gregos, querendo
descrever um homem de grande sabedoria, disse que ele havia adquirido as
maiores virtudes visitando muitas cidades e conhecendo vários povos. Por isso
eu também lembro do meu velho asno com muita gratidão porque, tendo me mantido
escondido sob a sua pele e fazendo-me experimentar várias vicissitudes, me
tornou se não um sábio, ao menos especialista
em tantas coisas” (9,13). Aqui o eu narrador institui uma comparação
entre si mesmo e Odisseo, chegando a reavaliar a experiência da metamorfose
porque os consentiu de ampliar o conhecimento do mundo[xxxvi]. Até essa leitura
encontra justificativas no plano lexical, nas já mencionadas oposições entre o
presente rejeitado e o passado reinvocado com nostalgia (o prior Lucius de quem fala Gianotti)[xxxvii] pode-se facilmente
reconhecer uma “retórica do retorno” típica do modelo odisséico.
O discurso interpretativo permanece de qualquer forma aberto. Certo, a tripartição do indivíduo evoca um fascínio que sobrevive intacto na linguagem moderna da metamorfose. Bastará recordar a página final do romance de Stevenson, a carta na qual um escandalizado Dr. Jekyll, quase na vigília do suicídio, entrega a confissão da sua trágica experiência de desdobramento: “Estava ainda imerso nestas conjecturas quando, em um momento de maior lucidez, me cai o olhar sobre a mão. Como você mesmo pode observar, a mão de Henry Jekyll havia um quê de profissional por forma e dimensão: grande, firme, branca e bem modelada. Mas aquela que agora me aparecia na luz amarelo pálida da manhã londrina, abandonada e revelada sobre os edredons, era mísera, toda tendões e juntas, de uma palidez de clorose, sombreada por uma densa pilosidade. Era a mão de Edward Hyde”[xxxviii].
L'asino d'oro - di Apuleio. Foto: http://www.romanoimpero.com/2014/05/lucio-apuleio.html |
O discurso interpretativo permanece de qualquer forma aberto. Certo, a tripartição do indivíduo evoca um fascínio que sobrevive intacto na linguagem moderna da metamorfose. Bastará recordar a página final do romance de Stevenson, a carta na qual um escandalizado Dr. Jekyll, quase na vigília do suicídio, entrega a confissão da sua trágica experiência de desdobramento: “Estava ainda imerso nestas conjecturas quando, em um momento de maior lucidez, me cai o olhar sobre a mão. Como você mesmo pode observar, a mão de Henry Jekyll havia um quê de profissional por forma e dimensão: grande, firme, branca e bem modelada. Mas aquela que agora me aparecia na luz amarelo pálida da manhã londrina, abandonada e revelada sobre os edredons, era mísera, toda tendões e juntas, de uma palidez de clorose, sombreada por uma densa pilosidade. Era a mão de Edward Hyde”[xxxviii].
Dr. Jekyll e Mr. Hide - Foto: https://flipquiz.me |
Notas:
[i]
O ille ego do
qual se fala aqui não tem a ver com o módulo gramatical ille ego (sum) mais
expressão relativa («eu sou aquele que… »): uma fórmula de autoapresentação
frequente no epigrama e nas epigrafes e concretizada na célebre proposição da Eneida
(de Virgilio): ille ego qui quondam gracili modulatus avena / carmen et
egressus silvis vicina coegi, / ut quamvis avido parerent arva colono, / gratum
opus agricolis, at nunc horrentia Martis / arma virumque cano, «Eu sou
aquele que modula o canto com uma frágil flauta e, saindo dos bosques,
constrangeu os campos vizinhos a satisfazer os desejos do agricultor, por mais
ávido que fosse – obra que agrada aos colonos – mas agora canto as terríveis
armas de Marte e o herói… ». Sobre estes versos, relatados por Donato (Vita Verg.
42), por Servio (ad Aen. 1,1) e, quase certamente não virgilianos, se vê L.
Gamberale, in Enciclopedia Virgiliana IV, Roma, IEI, 1988, pp. 259-261, s.v.
Preproemio dell'Eneide.
[ii] A tradução é - aqui como mais
adiante – aquela de Oniga (Tito Maccio Plauto, Anfitrião, de Renato Oniga,
introdução de M. Bettini, Veneza, Marsílio, 1997). Para um comentário sobre a
passagem em questão, veja-se também, além do próprio Oniga (p. 207), A. Traina,
Comoedia. Antropologia della palliata, Padova, Cedam, 2000, pp 50 – 51.
[iii] De outra forma, se perdeu – resta
apenas algum fragmento – a cena do encontro entre os dois Anfitriões, que
deveria representar “o ápice da confusão e da tensão ramática”. (cf. Oniga
1997, p. 228 ad frr. XV-XX).
[iv] Veja-se a propósito M. Fusillo, L’altro e ló stess. Teoria e storia del
doppio” Firenze, La Nuova Italia, 1998: em particular, pp. 63 e 233. No
estudo – aquele que se fará referência mais vezes – dois capítulos são
dedicados ao Anfitrião de Plauto
(pp59-80) e aos seus seguidores (pp. 81-103), tratados como exemplos de
“identidade roubada” (cf. infra, n.7)
[v] Cf.
M. Bettini, Sosia e il suo sosia: pensare
il doppio a Roma, em Le orecchie di
Ermes, Torino, Einaudi, 2000, pp. 148-176
[vi] Assim Fusillo 1998, p. 63; o
tema é aprofundado através da análise do filme expressionista Lo Studente di Praga 91913), no qual o
diabo se apodera da imagem refletida do protagonista (cf. Pp. 152-171). No que
se trata do mundo antigo, cf. G. Guidorizzi, lo specchio e la mente: un sistema d’intersezioni, em M. Bettini, La Maschera, il doppio e il ritratto,
Bari, Laterza, 1991, pp. 31-45: vem sublinhado o poder mágico e perturbante do
espelho, “autônomo criador de formas” capaz de trazer para a superfície
fantasmas ou aspectos escondidos da personalidade.
[vii] Fusillo define “identidade
roubada” a situação na qual o duplo se coloca como antagonista do personagem,
substituindo ele: entre as obras que exemplificam o tema são examinados o Anphitruo, a Elena de Eurípedes, Gli
elisir del diavolo de Hoffmann, Le confessioni
di un peccatoreeletto de Hoegg, até Petrolio de Pasolini.
[viii] Cf. Bettini 2000, p. 159:
“Quando a linguagem pretende descrever a perda da identidade, espera-se que as
linhas normais do discurso se deformem: e essa sorte acontece, antes de tudo,
com os pronomes pessoais.
[ix] A definição é de Fusillo 1998,
p. 67.
[x] Eu me refiro, em particular, ao
v. 601, menos certa é a interpretação do v. 598, na qual alguns editores leem illic egomet. A combinação retorna quase
ao final do diálogo, quando Anfitrião pede pela enésima vez a Sosia do que
estava falando e o servo irritado responde: Sosia, inquam, ego ille. “Sosia, digo-te, aquele eu ali”. (625)
[xi] O emprego paradoxal e dos
pronomes é, em efeito, uma característica da comicidade de Plauto, os faz um
recurso até quando o motivo do desdobramento não é funcional à estrutura
dramática (como ocorre em “L’Anfitrione” e em “Menecmi”), mas somente à
brincadeira extemporânea, inteiramente jogado sobre o plano da língua: veja-se
a respeito C. Bernal Lavessa, El motivo
della suplantación de personalidad em la técnica compositiva de Plauto, in
K. Andresen – J. Vicente Bañuls – F. de Martino, La dualitat em el teatre, Levante, 2000, pp. 45–66; entre os
exemplos reportados da autora (pp. 62-65), vou relembrar apenas Stico
(729-734), no qual o escravo Stico se anima em compartilhar a mesma mulher com
Sagarino: haec facetiast, amare inter se
rivalis duos, / uno cantharo potare, unum scortum ducere. /
hoc memorabilest: ego tu sum, tu ES ego, unianimi sumus, / unam amicam mamamus
ambo, mecum ubi est, tecum est tamen; / tecum ubi autem est, mecum ibi autemst:
neuter neutri in videt. “que divertimento o querer bem entre rivais, beber
em uma só taça, ter uma mesma amante. Isto merece ser contado: eu sou você,
você é eu, somos um só coração, amamos todos os dois uma única mulher; quando
ela está comigo, está também com você; quando então está com você, está também
comigo. Nenhum tem ciúmes do outro”. Até aqui é evidente o jogo com o pronome: ego tu sum, tu ego es.
[xii] A comédia de Plauto conheceu uma
sorte extraordinária da idade Média até a Idade contemporânea; entre os
numerosos estudos dedicados ao tema basta recordar conforme F. Bertini, Anfitrione e il suo doppio, de Plauto a
Guilherme de Figueredo, e em Plauto e
dintorni, Roma – Bari, Laterza, 1997, pp. 67-94;M. Bettini, Anfitrione prima e dopo Plauto em
Bettini 2000, 184-204; e o já citado capítulo deFusillo 1998, pp. 81-103.
[xiii] À respeito do modelo, parece
provável que Vitale conhecesse Plauto através de uma reforma na prosa da
antiguidade tardia. Sobre a questão, conforme a introdução de Bertina para a Vitale di Blois, Geta, por F. B., na
Comédia Latina dos séculos XII e XIII, Genova, Publicações do Instituto de
Filologia Clássica e Medieval, 1980, volume III, pp. 145-151; além disso, se vê
do mesmo autor, Da Menandro e Plauto alla
commedia latina Del XII secolo, em Bertini, 1997, pp. 125-126.
[xiv] Esta e as traduções sucessivas
são de Bertini (Vitale di Blois, Geta, pp. 182-241)
[xv]
Sobre cultura filosófica de Vitale, cf. F. Bertini, Il Geta di Vitale di Blois e la scuola di Abelardo, “Sandalion” 2,
1979, pp. 257-265.
[xvi] Bertini 1979, pp. 258-259.
[xvii]
Trata-se do incipt do De unitate et uno (PL 63, col. 1075 A)
[xviii] Um papel socialmente desavantajado
e, portanto, detestado. A certo ponto o mesmo Sosia queria se aproveitar da
situação para se libertar da condição servil: Ibo ad portum atque ut sunt facta, erro dicam meo: / nisi etiam is
quoque me ignorabit. Quodille faxitIuppiter, / ut ego hodie raso capite calvos
capiam pilleum – “Não me resta outro que ir ao porto e relatar ao meu dono
como as coisas aconteceram: a menos que ele mesmo não me reconheça mais! Que
Júpiter faça realmente esta graça, assim que hoje eu possa me barbear e colocar
o boné dos livres” (pp. 460-463).
[xix] A irregularidade é produzida
pela contaminação de duas construções:qui
fuerim líber, me potivitpater servitutis (“o pai me tornou escravo, eu que
era livre”) e qui fuerit liber, eum
potivit pater servitutis (“o pai que tornou escravo aquele que era livre”).
Um caso parecido pode ser individuado em Virgílio (ecl.4, 63) qui non risere parentes, / nec deus hunc
mensa, dea necdignata cubilist, assim interpretado por Traina em Virgílio. A
utopia e a história. O livro XII da Eneide e Antologia das operas, de A.
Traina, Torino, Loescher, 1997, p. 27: “ Quem não sorrir para os pais” e um
singular, hunc, “nem um deus o
dignou...”): se trata de uma concordância de sentido, o “sentido”.
[xx] Sobre a origem psicológica do
anacoluto, cf. J. B. Hofmann – A. Szantyr, Stilistica latina, de A. Traina,
Bologna, Patron, 2002 (Ed or München, 1965), pp. 74 – 78.
[xxi]Sobre um aspecto particularmente
perturbante do embrutecimento nas Metamorfoses de Ovidio, a perda da palavra
logomorfosi, veja-se em L. Landolfi, Posse
logui eripitur (Ov.Met.2,483). Perda de palavra , perda de identidade nas Metamorfoses, em L.
Landolfi – P. Monella, Ars adeo latetarte
sua. Reflexões sobre a intertestualidade de Ovídio. Le Metamorfosis, Palermo, Flaccovio, 2003, pp.29-58
[xxii]Uma casuística da metamorfise em
Ovídio (ativa, imposta, experienciada de forma passiva) é encontrado em E.
Rossi, Ruoli e escambi di ruoli nelle
Metamorfosi ovidiane, ASNP serie IV, vol. II. 2,1997, pp. 454-555: os casos examinados
têm a ver com a transformação da identidade sexual. Particular atenção é
direcionada à metamorfose como meio de sedução, funcional a um “projeto de
fraude” (pp.459s), categoria na qual se recupera o episódio de Vertumno.
[xxiii]A etimologia é explicita em
Properzio 4,2,47-49: at mihi, quod formas
unus vertebar in omnis, / nomen ab eventu pátria língua dedit. Outras
possíveis etimologias (ou paretimologias) são lembradas por F. Boldrer, Il mito di Vertumno tra Properzio e Ovidio,
ARF3, 2001, pp. 87-88, em. 6.
[xxiv]A presença de elementos cômicos
no episódio foi revelada mais vezes: G. Rosati, Narciso e Pigmalione. Illusione e espettacolo nelle Metamorfosi
d’Ovidio, Firenze, Sansoni, 1983, pp. 106-110, individua pontos evidentes
de contato com a comédia na trama baseada no travestimento e na cumplicidade
entre autor e leitor por trás de quem sofre a fraude Pela contaminação de
lírica, épica e comédia no episódio e, em particular, pela presença da
cafetina, veja-se também E. Fantham, Sunt
quibus in plures ius est transire figuras: Ovid’s self-transformers in the
Metamorphoses, CW 87/2, 1993, pp. 21-36.
[xxv] O vínculo entre a idosa e a persona loquens é hic, o demonstrativo de primeira pessoa: Vertumno aponta o dedo
idealmente sobre o seu travestimento: “esta velha aqui”. O uso da terceira
pessoa ao invés da primeira é, segundo Bömer (P. Ovidius Naso, Metamorphosen, Kommentar Von F. Bömer, Buch
XIV-XV, Heidelberg, C. Winter, 1986, p. 210, ad met. 675), um trato
peculiar da língua de uso, transferido para a poesia, encontram-se vários
exemplos em Plauto, entre os tantos citados, bastará recordar Bacch. 640 hunc hominem (=me) decet auro
expendi, como também nos poetas do período de augustos. Nestes casos
registra-se tipicamente o emprego de hic.
[xxvi] Cf. M.von Albrecht, Dichter und
Leseer; am Beispiel Ovids; “Gymnasium” 88, 1981, pp. 222-234;in part. Cf. p.
234: o jogo é concretizado também mais adiante, quando a velha diz de Vertumno:
neque enim sibi ille notior est quam mihi
“ele não é conhecido a si mesmo mais do que a mim” (14, 679) e miserere ardentis, ET ipsum, / quod petit,
ore meo praesentem crede precari “tenha piedade dele, que queima de amor e providencia
que seja ele pessoalmente a dirigir esta súplica pela minha boca” (14,
691-692). Para “a postura de cumplicidade entre autor e espectador em frente à
ignorância do personagem ridicularizado” cf. Rosati 1983, p. 110.
[xxvii] A urgência da paixão de Vertumno
se manifesta na conclusão do episódio: pois que o discurso se revelou ineficaz,
o deus, abandonados os trajes da velha, se prepara para violentar Pomona (vimque parat, 14, 770). A ninfa,
todavia, impressionada pela sua beleza, cede a ele espontaneamente. Sobre o
recurso final à violência, cf. W.R. Johnson, Vertumnus in Love, CPh 92 (4), 1997, p. 367 e R. Gentilcore, The
landscape of desire: the tale of Pomona and Vertumnus in Ovid’s Metamorphosis,
“Phoenix” 49 1995, pp. 110-120; diga-se, todavia, que uma excessiva insistência
sobre o aspecto violento e destrutivo da paixão de Vertumno acaba por anular a dimensão
irônica do episódio.
[xxviii] Particularmente apropriado o
emprego do adjetivo dirus (depelle quadripedis diram faciem), que
sublinha o trato da não naturalidade: sobre a semântica do lexema, veja-se A.
Traina, Dira libido. Sobre a
linguagem de Lucrecio de Eros, em Poeti
latini (e neolatini). Note e saggi filologici, Bologna, Patron, 19912,
pp.11-34.
[xxix] Com uma fórmula já amplamente
experimentada, por exemplo, por Cícero, no Discorso
di ringraziamento AL senato (Cic. Post. Red. 8, 25)Princeps P. Lentulus, parens ac deus nostrae vitae, fortunae, memoriae,
nominis, hoc indicium animi, hoc lumen consulatus sui fore putavit, si me mihi,
si vobis, si rei publicae reddidisset “Em primeiro Publio Lentulo, pai e
deus protetor da minha vida, sorte, glória e nome, considera prova de valor,
demonstração de coragem e glória do seu consulado a restituição de mim a mim
mesmo, aos meus queridos, a vocês, ao estado” (trad. De G.
Bellandi, em M.Tullio Cicerone, Le orazioni, por G. B., Torino, Utet, vol.
III, p. 97). Trazido
do exílio, o orador agradece pela restituição da sua identidade civil e social.
A mesma locução se refere à recuperação de um estilo de vida autêntico em
Horácio (epist.1,14, 1-2) vilice silvarum
et mihi me reddentis agelli / quem tu fastidis “fazendeiro dos meus bosques
e do campinho que me restabelece a mim mesmo e, ao contrário, te chateia”. A
tradução é de C. Carena, em Q. Orazio
Flacco, Le opere, Roma, Istituto
Poligrafico e Zecca dello Stato, 1997, Vol. III/2, p. 841. Veja-se também o comentário de P.
Fedeli, no vol. III/4, pp. 1193-1194 “mihi me reddentis faz entender que o
retorno para o campo restitui a Horácio aquele pleno domínio de si mesmo que
ele não consegue exercitar na cidade, junto à capacidade de viver como melhor
deseja.” Mas é em Sêneca que a fórmula entra em pleno título na linguagem
filosófica da interioridade: dial. 10,
8,5 nemo restituet annos, nemo iterum te tibi reddet “ninguém te devolverá
os anos, ninguém te restituirá de novo a você mesmo”. Sobre a presença de
fórmulas similares em Sêneca e em Agostino, veja-se Comento di Traina, Torino, Loescher, 19967, p. 20).
[xxx] A distribuição dos sintagmas meus Lucius / meus asinus no romance foi
analizado por J.J. Winkler, Auctor&actor,
a Narratological Reading of Apuleius Golden Ass, Berkeley, Los Angeles,
London, University of California Press, 1985, pp. 149-153, que ilustrou a
funcionalidade narratológica. Parece, de fato, que qualquer um dos dois
sintagmas corresponda a uma diferente modalidade de focalização. Em particular,
meus asinus (= “the ass I was) revela
o ponto de vista de Lucio-auctor, que
então já havia retornado a ser homem. Conta o que lhe aconteceu (aquele que
Winkler define o narrador “agostiniano”, colocado em um tempo então distante da
época da metamorfose e disposto a refletir sobre o passado). Por outro lado, meus Lucius (“the Lucius I was)
assinalaria a focalização interna: o olhar é aquele de Lucio-actor (ou agens), o personagem diretamente envolvido na ação, que pensa com
nostalgia à sua figura humana. Apuleio demonstra assim saber atuar em um hábil
jogo de perspectiva que não encontra precedentes na literatura antiga.
[xxxi]
Frequentemente a evocação
de Lucio se acompanha ao relevo da distância temporal: a exemplo em 9,13 veterisque Lucii fortunam recordatus
“recordando a felicidade de Lucio de um tempo”, ou em 10,29 plane tenui specuça solabar clades ultimas,
quod... spirantes cinnameos odores promicarent rosae, quae me priorimeo Lucio
redderent “somente com uma pequena esperança me consolava com as últimas desgraças...
dispersando o perfume de canela deles, desabrochavam as rosas que me teriam
restituído ao meu Lucio de antes.” Este aspecto foi observado por G.F.
Gianotti, Romanzo e ideologia,
Napoli, Liguori, 1986, p. 43 em 29, que individua uma contraposição entre o
Lucius anterior, precedente à metamorfose, e o novo Lucio, tornado homem para o
benefício de Iside. Após a re-transformação a identidade humana do protagonista
seria totalmente renovada e substancialmente diferente daquela do passado.
[xxxiii] Apuleius
Madaurensis, Metamorphoses, Book X, Text, Introduction and
Commentary by Zimmerman, Groningen, Egbert Forsten, 2000, p. 357 ad 10, 29.
[xxxiv]
A repreensão pode-se
recordar que a expressão meus Lucius
aparece na boca de Fotide, amante de Lucio na primeira parte do romance: 3,25 exibis asinum statimque in meum Lucium postliminio
redibis, afirma a garota, tentando tranquilizar o protagonista após tê-lo
transformado, por engano, em um asno. Além disso, na oração à Iside de 11,2: redde me meo Lucio, redde me conspectui
meorum, o paralelismo entre meo Lucio
e conspectui meorum põe a forma
humana do protagonista pelo menos no mesmo plano de uma pessoa querida.
[xxxv]
Modelo carregado de
ressonâncias filosóficas na cultura medioplatônica do autor: cf. Gianotti1986,
pp. 98-99, com bibliografia.
[xxxvi] Cf. o comentário de Mattiacci
al passo (Apuleio, Le novelle
dell1adulterio, Metamorfosi IX, a cura di S. Mattiacci, Firenze, Le Lettere,
1996, p. 140), com os adiamentos de Gianotti 1986, p. 100 e a H. v. Thiel, Der Eselroman. I.
Untersuchungen, München, C.H.Beck, 1971,
pp. 136-138. Em particular, sobre a natureza da consciência adquirida por Lucio
(não sabedoria filosófica, mas superficial sofistica), veja-se E.J. Kenney, In the Mill with Slaves: Lucius Looks Backin
Gratitude, TPhS 133, 2003, pp. 159-192.
[xxxviii]
Cf. R.L. Stevenson, O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Senhor
Hyde, em R.L.S., Romanzi, racconti e
saggi, a cura di A. Brilli, Milano, Mondadori, 1982 (ed or. 1886), p.635. Para
uma leitura freudiana da obra, cf. R. Rutelli, Il desiderio del diverso. Saggio sul doppio, Napoli, Liguori, 1984,pp.
44-64; a autora individuou três actantes internos na narração: Hyde (o mal,
ou seja, o impulso do Id), Jekyll, (o Eu ou a consciência) e a tendência de
Jekyll de reprimir violentamente os próprios impulsos (o Super-eu, designado no
conto como o “upright twin” de Hyde).
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