Matéria publicada no
site: teatroemcena.com.br em 30/06/2016.
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(foto da matéria original) |
Em cartaz com Brecht, Denise Fraga diz: “o público quer pensar, sim”
“Em primeiro lugar, quero dizer que
estou muito feliz. Muito feliz com essa peça”, Denise Fraga se apressa em falar
assim que ouve a primeira pergunta da entrevista para o Teatro em Cena.
A empolgação com que fala sobre “Galileu Galilei” ao longo de uma hora atesta
sua sentença inicial. Hospedada em um hotel no Leblon, ela desfruta de um raro
dia de folga. Vem de uma turnê de um ano e meio, que começou com uma temporada
em São Paulo, e já acumula público total de 90 mil pessoas. (até o momento da
publicação da entrevista)
No dia anterior à entrevista, se
dedicou ao cronograma da Rede Globo. Ela fará apenas três capítulos da trama de
Maria Adelaide Amaral e Vincent Villari, mas sua escalação chama a atenção:
Denise não fazia novela há 20 anos. É um caso raro de atriz que conseguiu
reconhecimento no Brasil sem fazer novela – não que ela tenha nada contra. Mas
foram nove anos de “Retrato Falado” no “Fantástico” e, claro, muito teatro.
Denise Fraga se autoproduz e tem seus próprios projetos. “Galileu Galilei” é
seu segundo Brecht. Apaixonada pelo dramaturgo alemão, ela se desafiou a
interpretar Galileu, o cientista que provou que a Terra girava em torno do Sol
(e não o contrário), mas que foi obrigado a negar sua teoria heliocentrista
para não ser morto na fogueira pela Inquisição.
– Quando eu li essa peça, fiquei
muito inquieta. Não era um papel óbvio para mim, mas eu queria muito falar
aquilo que o texto dizia. Queria muito dizer o que essa peça diz. Quando propus
para a Cibele e ela topou, pensei: “bom, não estou tão louca assim”. A gente
está em turnê sempre lotando os teatros. Brecht é muito popular. Ele usa
ingredientes quase de folhetim nas histórias. Captura o público com
entretenimento, um espetáculo sedutor, cheio de ironia, com timing cômico.
Escreve para as pessoas se divertirem, ao mesmo tempo que conduz para uma
reflexão que queria. Ele abre o pensamento para vários questionamentos.
Fala assim, apaixonada. A carreira da
artista é cheia de sucessos, mas Brecht que a fisgou. No teatro, Denise já fez
Samuel Beckett (“Esperando Godot”) e William Shakespeare (“Ricardo III”), e foi
dirigida por Elias Andreato (“3 Versões da Vida”), Jô Soares (“Ricardo III”),
Fauzi Arap (“Chorinho”) e pelo marido Luiz Villaça (“Sem Pensar”). Só com a
comédia “Trair e Coçar É Só Começar”, ficou em cartaz por seis anos, com 1.600
apresentações. No cinema, recebeu sete prêmios pelo filme “Por Trás do Pano”,
incluindo o Kikito em 1999; atuou em “O Auto da Compadecida” (de Guel Arraes em
2001); e neste ano estreou outra parceria com o marido, “De Onde Eu Te Vejo”.
Mas é no teatro que vem emendando projetos. Desde 2006, não passa um ano sequer
sem subir no palco. Sua peça mais premiada? “A Alma Boa de Setsuan”, que foi
vista por 220 mil espectadores e lhe rendeu cinco troféus, entre eles o APCA e
o Qualidade Brasil. De quem é a peça? De Brecht.
Tem lugares que lotam porque é de
graça, e lugares que não. O que eu sinto é que são as duas coisas juntas, mas é
muito mais a coisa do hábito, porque as pessoas têm a distância do teatro, o
preconceito.
Você tem feito turnê com “Galileu Galilei” rodando o Brasil. O que tem
percebido pelas cidades pelas quais passou?
DENISE FRAGA – Sinto que essa
balela de que o público não quer pensar está caindo por terra. É mentira. O
público quer pensar sim. Se isso é feito com humor e ironia, então… O público
fica feliz de ver um espetáculo no qual ele se diverte e, ao mesmo tempo, leva
para casa uma cabeça inquieta, reflexões. Eu falo “vai, que você vai chegar
diferente no escritório na segunda-feira”. Acho que é verdade. Se você puder,
dá uma entradinha na nossa página no Facebook, porque tem os comentários das
pessoas. A peça toca muito. A peça tem um poder muito grande de mexer com as
pessoas. Acho que o Brecht chama, principalmente nessa peça, para você se
resgatar e estar em dia minimamente com você mesmo. Ele pegou essa história,
desse homem que nega a verdade para não ir para a fogueira… Porque era óbvio,
ele podia provar: com o telescópio na mão ele provava. Ele achou que isso
bastava e viu que não. A verdade é a que interessa submetida aos poderes
vigentes. Ele pega essa história e amplia para os lados essa reflexão. Acho que
somos todos Galileus. Todos nós temos que negar o óbvio, coisas que são
completamente verdade, mas a gente faz cara de paisagem para absurdos, em nome
de não perder o emprego, da promoção que precisa, em nome de ficar bem com seu
chefe. A gente inventou viver em uma sociedade que se pauta pelo que rende. A
gente acaba justificando tudo por dinheiro. Mas aí vem o Brecht e faz com que a
gente se identifique com isso, escrevendo um personagem completamente humano,
falível, um Galileu cheio de paixões, um homem cheio de defeitos, que gosta de
comer bem, que às vezes esbarra na linha ética, machista. Ao mesmo tempo que a
gente se identifica com esse cientista, sendo tão humano, falível, ele faz a
gente pensar: até onde a gente cede para não se perder de si?
A arte é uma necessidade de espelho
para a humanidade se reconhecer e se entender. O que eu falo do hábito é que a
gente não tem essa conexão com a arte como fundamental para a formação do
indivíduo…
Sobre essa questão de negar a verdade para não ir para a fogueira em
paralelo com as nossas concessões cotidianas, te pergunto: que concessões você
já fez na sua carreira?
DN - Ah, no início de
carreira, todos nós fazemos concessões – coisas que você não acredita, sei lá…
Eu, na verdade, vou te falar, acho que tive uma sorte muito grande, porque eu
fiz poucas concessões na minha carreira. Fazer essa peça, de alguma maneira, é
escrever minha cópia escondida nos “restos de luz das noites claras”. Vou te
explicar. O Galileu, quando está na prisão domiciliar, depois de ter negado,
escreve os “Discorsi”, que é a obra mais importante que ele deixou para a
ciência. Ele dava uma cópia para a Inquisição e escrevia outra escondido, que
conseguiu que fosse publicada na Holanda. O Brecht escreve isso na peça fazendo
com que ele receba a visita do André, seu discípulo, que fica muito
decepcionado com ele quando ele nega… Fica anos sem vê-lo… Aí ele recebe a
visita do André, uma das cenas mais lindas da peça, e Galileu diz sobre a cópia
escondida: “pus em risco os últimos e míseros restos do meu conforto para fazer
uma cópia escondida usando os restos de luz das noites claras”. E ele estava
quase cego. Eu fico pensando: ele mesmo tendo negado, e não tendo resistido,
feito a concessão, não conseguiu deixar de ser Galileu. Ele escreveu. Brecht
abre muitas camadas. Com isso, ele faz a gente pensar: que brecha a gente pode
achar, mesmo servindo às estruturas de poder que a gente serve, mesmo vivendo
nessa sociedade onde vale o que é rentável, o que você ainda pode achar de
brecha para continuar em dia consigo mesmo? Para estar minimamente em dia com
seus ideais, para conseguir olhar no espelho com 70 anos e falar “eu ainda tô
aí, ainda sou aquela”. Eu, graças a Deus, não tive que fazer muitas concessões
na minha carreira. Cuidei para estar conectada e achar caminhos, porque não é
fácil achar caminhos. Também tive sorte de conseguir fazer coisas que eu acreditava
muito, projetos pessoais, coisas que eu queria dizer. Minhas últimas escolhas
no teatro são nesse sentido. Eu leio uma coisa que é como uma fofoca que eu
preciso contar, um negócio que me dá um frisson, que preciso propagar. Aí eu
vou à luta para conseguir o patrocínio. O Bradesco, desde o “Alma Boa”, é nosso
parceiro, muito correto, sabe? Quando quis montar o “Galileu”, fui lá com os
olhos brilhantes e eles nos deram o patrocínio. É muito legal você ver agora o
público no saguão do teatro me falando frases que são as mesmas que eu falava
para convencer o patrocinador. Por isso que falo que fazer essa peça é meu
jeito de escrever no resto de luz das noites claras.
A arte ajuda o indivíduo a estar mais
preparado para a vida, entender seus dramas. Eu sempre digo isso: quem lê
Dostoiévski e Fernando Pessoa, no mínimo, vai sofrer mais bonito. A arte não
nos livra dos dramas, mas nos aparelha para entender a imperfeição humana.
Quando você levou a peça para Brasília, falou ao Correio Braziliense que
a falta de contato com a arte é uma questão de hábito, e não de acesso
econômico. Você não acha que as duas coisas estão interligadas?
DN - A gente fez
várias apresentações gratuitas com o “Galileu Galilei”, tanto nos CEUS [Centro
de Artes e Esportes Unificados] quanto no Circuito Cultural Paulista, que é um
projeto do governo do estado para levar teatro para cidades que quase nunca
recebem peças. A gente também fez agora o circuito de bairros em São Paulo, com
tudo de graça. Eu vejo que, nessa peça, tem lugares e lugares. Tem lugares que
lotam porque é de graça, e lugares que não. O que eu sinto é que são as duas
coisas juntas, mas é muito mais a coisa do hábito, porque as pessoas têm a
distância do teatro, o preconceito. Aconteceu uma coisa que acho muito
emblemática nessa temporada: a faxineira de uma das atrizes foi ver a peça e
falou uma frase que é muito simples, mas exemplifica tudo. Ela falou “nossa, eu
achei que teatro era um lugar que você ia e tinha um monte de gente lá falando
coisa que você não entendia. Não é! Pode me chamar que eu venho toda vez
agora”. As pessoas mais simples têm uma ideia de que teatro é uma coisa
difícil, perfumada, que você tem que ter uma roupa especial. Uma coisa que eu
acho linda é que 60% do nosso público não sabe quem é o Brecht. A gente fez
para todas as idades. No [Teatro] Tuca, iam as famílias inteiras, com crianças,
de classe A à D, e você vê a peça tocar, reverberar. Mas a gente vive em um
país que tem essa cultura de que a arte é algo supérfluo e não uma necessidade.
Em qualquer povo da humanidade, nos povos mais primitivos da humanidade, tem
arte. Eu fui uma vez ao Museu de Antropologia do México, onde você tem um
panorama dos povos primitivos, e sempre a manifestação artística existe. A arte
é uma necessidade de espelho para a humanidade se reconhecer e se entender. O
que eu falo do hábito é que a gente não tem essa conexão com a arte como
fundamental para a formação do indivíduo…
É disseminada uma cultura onde o cara
é desenvolvido quanto mais dinheiro ele tem. Olha nossa elite! É triste de ver!
Nossa elite tem piscina, vários carros na garagem, e tem gente que nunca foi a
uma peça de teatro ou leu quatro livros na vida. Se leu, leu obrigado pela
escola. Se fosse mesmo uma questão de dinheiro e não de hábito, os teatros
estavam todos lotados, porque a gente tem muita gente que pode pagar por isso,
mas que não são treinados para tal. Muitas vezes, simplesmente desconhecem.
Desculpa interromper, mas, por exemplo, vocês vão fazer a temporada no
Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes, no centro trabalhador da cidade. O
ingresso custa R$ 30, que é barato, porque a meia é R$ 15. Mas o quilo do
feijão também está em torno disso, então o preço já exclui grande parte dos
trabalhadores. Que balanço você faz disso?
DN - Sim, mas
sabe o que eu acho? Que eles não deixam de ir ao teatro para comprar feijão.
Deixam de ir para comprar tênis, entendeu? Tudo bem, agora podem estar deixando
de comprar feijão, porque todo mundo empobreceu muito. A gente está vivendo uma
grande crise e esse ingresso parece caro já.
É isso que eu quis dizer.
DN - Mas o que eu sinto é que a gente prioriza o
indivíduo que é desenvolvido quanto mais ele consegue adquirir, e não saber. A
gente pauta a sociedade desenvolvida por aquela que tem carro, que compra tênis
importado, e não aquele que agora vai conseguir comprar o seu ingresso, o seu
livro. Você pega duas pessoas que tem ensino fundamental, que não passaram do
5º ano: o A vai ao teatro, ao cinema, lê, e o B não. O A é completamente uma
pessoa mais preparada que o outro. A arte forma. A arte ajuda o indivíduo a
estar mais preparado para a vida, entender seus dramas. Eu sempre digo isso:
quem lê Dostoiévski e Fernando Pessoa, no mínimo, vai sofrer mais bonito. A
arte não nos livra dos dramas, mas nos aparelha para entender a imperfeição
humana. Uma pessoa que tem o código poético, que consegue estar em contato com
a arte e absorvê-la, é mais preparada para a vida. E isso não é dado nas
escolas, não é dado como cultura no nosso país. O culto à cultura, o culto à
arte. Você entender que a gente não quer só comida, a gente quer comida,
diversão e arte. A gente não quer só dinheiro, a gente quer dinheiro e
felicidade. Não estamos aqui para citar os Titãs (risos), mas é uma coisa de
compreender… As pessoas reclamam muito do preço do ingresso. Eu queria muito
fazer teatro de graça, sabe? Acho mesmo que facilitaria você pegar o cara pela
mão e falar “vem aqui”… Na verdade, eu não queria fazer de graça. Queria fazer
a R$ 2, porque queria que a pessoa entendesse que existe uma coisa pra comprar
que vai te dar um reino de felicidade. Não só um reino de felicidade: você vai
construir de tijolo em tijolo. Cada tijolo é um livro, uma peça, um filme que
você veja. Você vai construir um arsenal para conseguir enfrentar a vida. Você
consegue viver melhor através da arte, e isso não é disseminado. É disseminada
uma cultura onde o cara é desenvolvido quanto mais dinheiro ele tem. Olha nossa
elite! É triste de ver! Nossa elite tem piscina, vários carros na garagem, e
tem gente que nunca foi a uma peça de teatro ou leu quatro livros na vida. Se
leu, leu obrigado pela escola. Se fosse mesmo uma questão de dinheiro e não de
hábito, os teatros estavam todos lotados, porque a gente tem muita gente que
pode pagar por isso, mas que não são treinados para tal. Muitas vezes,
simplesmente desconhecem. Nunca foram levados pela mão. A gente recebeu agora
uma mensagem de um cara que foi assistir em Curitiba e é a coisa mais incrível.
Quer ver? Eu até te leio. Está aqui no meu celular. Pera aí. *procura* “Denise,
vocês arrasaram aqui em Curitiba. Muito bom mesmo! Foi a primeira vez que
participei de uma apresentação de peça de teatro e fiquei imensamente inquieto
para o consumo da arte. De fato, estamos em uma aridez de ideais e você e todo
o pessoal estão lá para resgatar aquilo que infelizmente se desgastou em nós: a
capacidade de sonhar, de extrair prazer da vida. Em minha vida, de fato, tenho
que fazer muitas caras de paisagem e escolher não acreditar naquilo que é
óbvio, não querer crer em meus próprios olhos. Tudo isso para não cair em uma
certa Inquisição, para não ser banido de um sistema no qual estou integrado há
muito tempo. Enfim, minha gratidão a vocês todos. Jamais esquecerei o que vivi
aquela noite”. Não é incrível? Uma pessoa que nunca tinha ido a teatro!
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(foto da matéria original) |
A lei de incentivo existe em qualquer
país civilizado do mundo. A gente não está falando de um privilégio nosso no
país da falcatrua.
Imagino como é para você.
DN - Eu tenho recebido cada coisa por causa dessa
peça! Estou muito animada. Se deixar eu fico aqui falando empolgada. Eu estou
muito empolgada mesmo com o que está acontecendo. Vejo que o buraco é mais
embaixo. Tem uma hora na peça que o Brecht põe na boca do Galileu a seguinte
frase: “eu queria ficar embaixo da terra, onde não entrasse mais luz, só para
saber o que é a luz. E o pior: o que eu sei, preciso passar adiante, como um
enamorado, um bêbado, um traidor”. Essa coisa de passar adiante, essa coisa que
o Galileu tinha, que o Brecht tem, de querer passar para muitos… Não é à toa
que ele escreveu três versões dessa peça, que é a única biografia que ele fez.
Ele era completamente obcecado pelo Galileu, pelo personagem, porque se
identificava profundamente, e eu tenho essa identificação com os dois, com essa
coisa de querer passar adiante. Li esse texto e me inquietei, fiquei doida. Eu
tinha outros projetos, mas falar esse Galileu era mais urgente e é uma coisa
que está me tomando de um jeito… Para você ter uma ideia, eu vejo uma reação
nessa peça que nunca tinha visto. O cenário, que é muito bonito, tem uma arena
pendente que lança a gente no meio da plateia. Eu passo a maior parte da peça
ali nessa arena, então vejo muito a cara da plateia. Em algumas falas, vejo
cabeças balançarem, dizendo “sim” com a cabeça, em um gesto inconsciente, de
concordar com o texto. É bonito demais, porque você vê que a pessoa está
completamente tomada pela ideia. São 2h20 de espetáculo, às vezes 2h15, e
ninguém sai, ninguém dorme. Todo mundo de boca aberta. É lindo de ver. Fico
vendo que minha ideia não era tão maluca assim. Fico feliz.
Em contrapartida, a gente tem vivido um retorno à marginalização da
figura do artista, que tem até a ver com o que você diz de falta do culto à
arte. Com a crise política, as distorções sobre a Lei Rouanet, e a polifonia na
Internet, de repente vimos os artistas sendo chamados massivamente de
“vagabundos”. Como você se coloca diante desse panorama?
DN - Ai, gente, é muita desinformação, né? Eu acho
que as pessoas que falam da Lei Rouanet não estão informadas, não viram. Tem
tudo no Diário Oficial. Faz a conta. Eu convido as pessoas a fazerem a conta.
Na verdade, qualquer país desenvolvido do mundo tem sua arte subsidiada,
amparada pelo governo, porque a arte não se paga em si. Sem o pontapé inicial
dado pelo patrocínio, tendo que pagar os mínimos aos teatros, a divulgação e a
produção inicial, já quebra uma peça. Você não recupera isso em bilheteria.
Para fazer uma peça desse tamanho… Eu acho que talvez você precise rever vários
pontos da Lei Rouanet, mas não é para questionar essa lei que trouxe uma efervescência
cultural desde então. A lei de incentivo existe em qualquer país civilizado do
mundo. A gente não está falando de um privilégio nosso no país da falcatrua. O
que é isso?! É uma falta de informação. Eu me sinto ofendida. O que é isso?! Eu
trabalho pra caramba!
O Aderbal Freire-Filho está até processando umas pessoas.
DN - É absurdo o que as pessoas falam. A Internet é
muito covarde. Fala isso aqui na minha cara. Vem no teatro me falar isso, que
vou te mostrar as contas, entendeu?
Você acompanha essas discussões na Internet? Dá atenção a isso?
DN - Eu não dou atenção, porque a Internet me suga
a alma. Agora tenho uma página no Facebook e no Instagram basicamente para
divulgar a turnê da peça. Vi que realmente era importante ter isso para
divulgação do “Galileu” por aí. As pessoas estão muito ligadas na Internet e é
uma força muito grande de comunicação. Mas eu não vou ficar o dia inteiro
fazendo esse desfile de opiniões e pouco fato. É muita opinião para pouco fato.
Me conta uma história! Me dá uma história, que aí eu construo minha vivência a
partir da sua história. Não importa a opinião do outro sem a vivência, então é
muita opinião. “Olha o que eu acho”. “Olha o que postei”. “Olha o que eu
disse”. A maioria dessas coisas de “olha o que eu disse”, não diria na cara do
sujeito. Ah, me poupe! (risos) É muito triste o que a gente está vivendo. Nesse
desaviso, umas vão se linkando às outras e vai virando um mar de radicalismos e
imbecilidade. É muito triste, porque não tem fundamento. Quando leio essas discussões,
a primeira frase que vem à minha cabeça é: “gente, uma coisa é uma coisa, outra
coisa é outra coisa”. Você quer discutir sobre o assunto e não te deixam.
Qualquer coisa que você fale significa um lado ou significa o outro. Olha esse
Fla x Flu ridículo que a gente viveu aí, que você não pode falar nem isso nem
aquilo, porque senão está de um lado ou de outro. É muito triste o que a gente
viveu agora, porque é um acinte à nossa inteligência e à nossa capacidade de
ponderar, de sensatez, de falar “eu acho isso, mas também acho aquilo, que
talvez seja uma parte que eu discorde…”. Não, você tem que colocar seu
pensamento em caixinhas.
Eu adoro a comédia, adoro a comédia
da ideia, de usar o humor como agente poderoso de reflexão. Você comunica o que
quiser com humor e ironia. Não tem limite pra isso.
Até o Brecht traz uma discussão sobre os meios de produção, sobre o ator
mostrar que está atuando, um teatro menos adepto da ilusão, que eu acho que tem
tudo a ver o Galileu ser interpretado por uma mulher nesse sentido…
DN - É! É muito brechtiano, na verdade! Um dos
argumentos que me convenceram foi esse: é muito brechtiano uma mulher fazendo o
Galileu. É engraçado, porque, na época que eu decidi fazer, nem estava tão em
voga essa questão de gênero, e hoje ainda tem um plus porque é uma mulher
fazendo um homem falando sobre o quanto concedemos, né?
Mas o que eu ia perguntar é o que te instiga a apresentar esse
espetáculo nesse momento político brasileiro. Eu vi que vocês foram até para
Brasília.
DN - Nossa, foi incrível! (risos) A gente chegou a
Brasília e estavam todas as sessões esgotadas. A primeira vez que a gente abriu
sessão extra foi lá. É incrível. A peça sempre será atual. Ela é atual em
qualquer época que for montada. Mas agora ela parece uma peça encomendada,
parece que a gente ensaiou às pressas. Eu fico feliz de estar podendo falar,
ter essa voz nesse momento, mas ao mesmo tempo muito triste por ver cada vez
mais os acontecimentos criarem uma força cada vez maior para a peça. É irônico,
porque estou feliz de fazer a peça, mas triste por ver que cada vez ela fica
mais propícia. O que a gente viu acontecer e você falar desse cara que vai
vendendo a alma… As justificativas todas, os jogos políticos… Quando você lê as
biografias do Galileu, você vê que foi mesmo uma questão política. Ele só não
foi para a fogueira porque tinha muitos conhecidos no Vaticano, no poder, e foi
poupado. Foi convidado a negar publicamente e o mantiveram em uma prisão
domiciliar.
Quando você faz muita comédia, você
fica com o ouvido doutrinado, treinado, porque é quase como música: a risada
não é sempre a mesma. A risada tem várias nuances.
Brecht também faz questão que o teatro político, engajado, seja
divertido. Analisando sua carreira, essa é uma busca sua como artista também,
né?
DN - Eu acho que talvez por isso eu me identifique
tanto com ele. Mesmo no “Retrato Falado”, a gente fazia muitas coisas que ali
dentro tinha algo para reflexão. Eu adoro a comédia, adoro a comédia da ideia,
de usar o humor como agente poderoso de reflexão. Você comunica o que quiser
com humor e ironia. Não tem limite pra isso. Ao contrário do que muita gente
pensa, que é para você “aliviar”, eu não sinto que alivie. O humor confirma que
aquilo passou pela inteligência do sujeito. A comédia é completamente aliada à
inteligência: você só ri daquilo que você compreende. Quem não entende a piada
não ri. A comédia recruta a inteligência. Estou falando da comédia de texto,
né? Nunca gostei de fazer as gracinhas de forma. Aliás, eu tiro essas gracinhas
de forma, porque às vezes atrapalham a clareza do texto.
O que seria uma gracinha de forma, por exemplo?
DN - As pessoas rirem do jeito que você está
falando, e não daquilo que está falando.
Entendi.
DN - Quando você consegue que a plateia ria por uma
coisa seríssima que você está falando, mas de uma maneira cômica, você está
assegurando que aquela ideia foi capturada.
E às vezes tem até aquele riso culpado, né?
DN - Você sabe que tem uma risada que eu chamo de
risada “pior que é”. Que é uma risada que vem toda hora. É uma risada que é
meio interrompida. Quando você faz muita comédia, você fica com o ouvido
doutrinado, treinado, porque é quase como música: a risada não é sempre a
mesma. A risada tem várias nuances. É uma espécie de voz. Quando você escuta
essa risada “pior que é”, a pessoa ri e pensa “pior que é, a gente faz isso
mesmo”.
Para mim, é “risada culpada”.
DN - É, uma risada de identificação e culpa!
(risos)
Nos últimos anos, com uma conscientização maior das políticas de
minorias, tem crescido uma discussão sobre limites do humor e sobre o
politicamente correto. Quais as suas considerações sobre esse debate?
DN - Eu acho que o limite do humor é a delicadeza,
né? Eu adoro o que é engraçado, mas adoro a gentileza também. Só que, por essa
coisa da Internet que estávamos falando, às vezes a gente está entre amigos,
com colegas, e alguns são polícias de vírgula. As pessoas estão policiando
vírgula. Se você usa uma palavra ou outra, a pessoa fala “ah, não…”. E você diz
“mas não foi isso que eu quis dizer…”. A gente vai perdendo a sensatez em meio
a um mar de radicalismos. Eu acho que a gente ainda tem muito a caminhar, mas
deu passos muito grandes, com relação ao negro, por exemplo, que a gente tem
que se policiar. Acho mesmo que tem que policiar sua avó falando (risos). Você
tem que ir atrás disso. Eu fico muito feliz dos meus filhos hoje verem os
casais gays de mãos dadas e abraçados, sabe? E não ficarem apontando. Nunca
fizeram isso. É a coisa mais normal do mundo você ver os casais abraçados, se
beijando. Eu acho que isso é um ganho enorme que a gente teve. Mas tem que ter
cuidado para não virar polícia de vírgula, porque a gente se meteu em lugares
radicais que tiram a nossa sensatez, que tiram nossa capacidade de ponderar e
contextualizar as coisas.
Brecht propõe o teatro didático, de aprendizagem. O que você tem
aprendido fazendo essa peça?
DN - Esses nomes acadêmicos para o Brecht – teatro
didático, teatro épico, o distanciamento – me fazem pensar que ele ficaria
muito bravo com tanta teorização em cima do teatro! (risos) Ele com certeza fez
um teatro que mudou o teatro no mundo, mudou o mundo. Ele é um poeta e
dramaturgo de muita importância. Mas sinto que o que ele propõe, na forma como
escreve, esse teatro épico, do teatro que narra, o ator em cena que narra, faz
a gente aprender sobre a profissão de uma maneira muito bonita: o que é o
intérprete, você ser filtro de um autor, e se apoderar das palavras dele, pegar
aquilo para você em cena. Ele tem um poema muito bonito que fala: “você,
artista, que quer ser o cara que cria ilusão, saiba ao mesmo tempo sobre a cena
que faz e sobre o que é essa cena no mundo que você habita”. É o tempo inteiro
entender que você é um sacerdote desse negócio chamado teatro e você está ali
para dizer coisas também. Talvez venha daí essa identificação tão grande que eu
sinta com ele.
O fato da Terra não ser o centro do universo, do sol não girar em torno
do ser humano, é uma mudança de perspectiva muito grande. Faço um link com a
cultura de celebridades. É muito fácil uma pessoa famosa ter suas egotrips e se sentir o centro de
tudo, porque as pessoas ao redor a tratam como se fosse. Eu não te conheço, mas
o que a gente sempre ouve sobre Denise Fraga é que você é muito pé no chão,
simples e trata todo mundo de igual para igual. Tem algum esforço para não se
deixar levar pela megalomania? Esse culto a celebridade nunca mexeu com você?
DN - Na verdade, isso nunca me seduziu muito. O que
me seduziu sempre foi esse negócio do teatro como tribuna mesmo, o lugar onde
você conta histórias, fala coisas, diverte as pessoas. Desde o início. Aí veio
a televisão… Eu achava que nem podia ser atriz. Fazia teatro meio por hobby.
Meu último professor no curso foi o Cláudio Correa e Castro [1928-2005] e ele
falava “você tem que se profissionalizar”. Eu achava que não era pra mim. Eu me
tornei atriz, mas continuo reles mortal, como era, que achava que não podia ser
atriz. (risos) Nunca deixei de sair na rua por causa das pessoas… Existe um
assédio, mas não é nada impossível de lidar. Acho que, para um galã, é difícil
mesmo. Mas o que quero dizer é que não foi um esforço. Sou muito seduzida pela
minha profissão e agradeço todo dia. Agradeço mesmo. Às vezes quando estou em
cena, falando o texto, penso “gente, que felicidade a pessoa poder ser isso na
vida e ainda pagar as contas com isso!”. Eu tenho uma coisa que foi indo assim,
até por isso eu seja tão conectada com o teatro que quero fazer e o jeito que
quis levar minha carreira.
Você fará uma participação na próxima novela das 21h da Globo. Pesquisei
e vi que você não faz novela há 16 anos! A última foi “Uga Uga”!
DN - Contam 16 anos porque eu fiz o primeiro capítulo
de “Uga Uga”, mas na verdade são 20 anos já! (risos) A última foi no SBT –
novela, novela mesmo, de ficar oito meses na novela. Eu fiz quatro novelas só
na vida: duas na Globo e duas no SBT.
Relembre como era o “Retrato Falado”:
Por quê? Não te interessa o formato da novela?
DN - Eu fiquei nove anos no “Retrato Falado” no
“Fantástico”, onde não fiz só o “Retrato Falado”. A gente fez outras
dramaturgias dentro daqueles dez minutos: “Dias de Glória”, “Copas de Mel”,
“Fazendo História”, “Te Quero, América”… Aquilo durou nove anos. Gravava em São
Paulo, com uma equipe reduzida, em locação, na rua, com uma câmera só. Eu
recebi alguns convites para novela na época, mas não podia desmantelar a equipe
do “Retrato Falado”, que só existia ali em São Paulo, para parar e fazer uma
novela. Era uma equipe tão azeitadinha, em um programa que eu adorava fazer.
Mas não tenho essa coisa de “ah, não quero fazer novela”. Eu gostaria. Um
personagem bacana: claro que gostaria de fazer. O que aconteceu é que, quando
tive outros convites, sempre estava com projetos de teatro. Eu meio que venho
emendando um projeto no outro. Eu tenho projetos! (risos) O problema é que eu
tenho projetos. O problema não é um problema! Quando recebo o convite, às vezes
não calhou de dar para desfazer ou ser em uma hora em que caberia na agenda.
Agora deu certo porque é uma participação, só os primeiros três capítulos,
então dava para fazer apesar de estar em turnê. É um personagem que tem poucos
cenários, então dava para fazer.
O problema para você, então, é o tempo de duração da novela, né? Oito
meses de dedicação.
DN - Não, não. Na verdade, se eu me programasse,
dava. Se eu tivesse um convite com mais antecedência… Agora parece que as
pessoas até estão se programando com mais antecedência. Não é pelo tempo. É que
faço outras coisas. Não fico lá na minha casa esperando o convite da televisão
tocar, entendeu? Quando você é produtora dos seus projetos, é muito difícil
você parar. Quando você é produtora de si mesma, você é um patrão muito
carrasco. Você não se deixa parar. Na medida que você é capaz de levantar o seu
projeto, a sua produção, você não para nunca, porque você quer levantar as suas
coisas. Mas eu adoro quando aparece um convite. Às vezes as pessoas têm uma
ideia errada. Nos últimos trabalhos que fiz de cinema e televisão, escutei umas
coisas assim: “que bom que você topou, eu achei que você só fazia seus
projetos”. Nããããão! (risos) Eu adoro um convite. Dando para fazer, eu vou
fazer.
Estava lendo uma entrevista antiga sua para a revista Marie Claire, de
2003…
DN - Nossa!
Pois é. Na época, você estava no “Retrato Falado” e falou que a TV ainda
não tinha te possibilitado fazer “um pé de meia”. O senso comum é de que a TV é
o veículo mais rentável para os atores, mas você vem conseguindo viver e criar
seus filhos à parte disso…
DN - Mas eu fiquei muitos anos contratada da
televisão. Fui contratada da TV Globo 18 anos e tudo que consegui construir, da
minha casa e tal, sem dúvida nenhuma devo a essa minha vida da TV Globo. Consegui
economizar dinheiro fazendo televisão, mas sempre junto do teatro. O teatro
sempre me deu muito menos dinheiro que a televisão.
Isso que quero perguntar: é possível viver de teatro?
DN - Possível, é. Mas, quando você tem o parâmetro
de dinheiro da televisão, você fica achando aquele dinheiro pouco. O que acho é
que você tem que saber que existem outras riquezas. É o que a gente estava
falando. Qual é o seu patrimônio? Sempre falo para os meus colegas: “quando
você começa a ver que o grande problema é a cor do vidrotil da piscina, é
melhor você se antenar, porque talvez sua alma de artista esteja se
deteriorando”. Quando o grande problema é administrar o dinheiro… A televisão
paga bem, mas as pessoas têm uma ideia muito errada de que somos todos ricos.
Não é verdade. A gente não pode parar de trabalhar. A televisão paga melhor,
paga um bom salário, mas não é isso… Às vezes fico pensando: imagine se a gente
morasse nos Estados Unidos, ou na Venezuela que fosse… (risos) A Venezuela nem
dá para falar, porque não é mais aquela produtora de novela que era. Mas, na
Argentina, os atores ganham muito mais do que a gente. Em qualquer lugar.
Ah, é? Na Argentina, ganha mais?
DN - Na Argentina, ganha mais. Dá de cara. Talvez
os grandes salários da TV Globo… Não sei, porque não sei o quanto as pessoas
ganham. (risos) Mas não é assim como as pessoas acham. As pessoas têm uma ideia
muito fictícia do que a gente ganha.
Você falou sobre a “alma de artista”. Para terminar, na sua opinião, o
que diferencia uma atriz de uma artista?
DN - Alma de artista é um negócio que alguns
engenheiros têm. Alma de artista é você conseguir perceber a vida enquanto ela
passa, ter um olho para a própria existência, como se olhasse de camarote a
vida. Você tem a capacidade de percepção, de assistir à vida. Por isso, muitos
atores têm alma de artista. Alguns atores não têm. (risos) E alguns engenheiros
têm. São pessoas que têm alma de artista e seguiram outra profissão. Às vezes
vão ao teatro e, mesmo quando se trata de uma comédia, choram de emoção de se
conectar com aquilo que seria uma coisa onde os canais deles estariam abertos
em conexão com uma coisa muito maior. Eu acho que entender-se como artista é
uma coisa parecida… Outro dia me perguntaram “Denise, você acha que todo
artista tem que ser engajado?”. Eu falei que todo médico tem que ser engajado,
todo jornalista tem que ser engajado. Engajado, se você for ver o valor dessa
palavra, é você entender que faz parte de um todo, que a história é feita por
nós. Brecht é rei de fazer você se lembrar disso, de que nós somos os
responsáveis pelo curso da história. Isso é estar engajado. É fazer parte de um
coletivo, de um todo. Eu sou engajado no todo. Nisso, todos nós deveríamos
estar.
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(foto da matéria original) |