Ramón María del Valle-Inclán - foto internet |
No sábado, dia 05/12/2016, realizamos em nossa sede no Campeche,
em Florianópolis, uma edição do evento "Encontro com o Dramaturgo",
organizado pelo professor da UDESC Stephan Baungartel em parceria com o nosso
grupo. Nesse dia recebemos o dramaturgo Raúl Cortes que nos presenteou com o
seu conhecimento sobre um dos mais importantes dramaturgos da Espanha: Ramón
María del Valle-Inclán. Ficamos tão encantados com tudo o que ouvimos que
decidimos unir forças e realizar uma leitura dramática de um de seus textos - LIGAZÓN - para apresentar ao nosso público no encontro seguinte, a ser realizado em
dezembro.
Foi um trabalho corrido, pois o texto ainda
não havia sido traduzido para o português e tínhamos pouco tempo. Montamos uma
força tarefa na qual nossos diretores Margarida Baird e José Ronaldo Faleiro
traduziram o texto. Contamos ainda com a participação especial de um
frequentador de nosso espaço e professor de espanhol - Rafael Paniagua - para,
junto com a nossa diretora Claudia Venturi, fazer a revisão da tradução.
Iniciamos os ensaios com a direção de Raúl Cortes, nosso convidado espanhol,
quem nos apresentou o dramturgo.
Então, finalmente, na sexta-feira, dia
02/12/2016 realizamos a leitura dramática do texto PACTO, de Valle-Inclán,
tendo no elenco os artistas do Círculo Artístico Teodora Claudia Venturi,
Evandro Teixeira, José Ronaldo Faleiro e Margarida Baird. Ainda contamos com a
participação especial da estudante de Teatro Naiara Bertolli. E, neste momento,
compartilhamos o texto em português, para que outras pessoas também possam
estudá-lo e e se divertir!
Boa leitura!
Encontro com o Dramaturgo, dia 05/12/16, no momento da decisão por montar a leitura. Carlos Fante, Margarida Baird, Raúl Cortes, Evandro Teixeira e Claudia Venturi Foto: Silvia Venturi |
Ramón María del VALLE-INCLÁN
PACTO
AUTO
PARA SOMBRAS
do
Retábulo da Avareza, da Luxúria e da Morte
Espasa
Calpe, Madrid, 1961, 7ª Ed., 1996
Tradução de Margarida Baird e José Ronaldo Faleiro, com revisão de
Rafael Paniagua e Claudia Venturi.
Personagens
A Hospedeira (Claudia Venturi)
A Raposa (Margarida Baird)
A Mocinha (Naiara Bertolli)
O Afiador (Evandro Teixeira)
Um Vulto de Manto e Capuz
Rubricas (José Ronaldo Faleiro)
Rubricas (José Ronaldo Faleiro)
(Luar. A taberna reproduz exatamente o
caixilho luminoso de sua porta na escuridão de um caramanchão. Na margem do
muro, a lua se espelha nas águas do estábulo onde o gado bebe. Na porta
iluminada se delineia a sombra de uma jovem. Olha o campo gramado irradiado com
uma estrela de caminhos. Colada ao muro, pelo fio que as telhas projetam, uma
sombra – cajado e manto – percebe com passos trôpegos, seu tênue relevo. A
sombra da raposa se dirige à Mocinha.).
A RAPOSA - Derramas
teu sal para todos! Vais me dizer que tens para todos.
A MOCINHA - Que
ideia estapafúrdia!
A RAPOSA - Se por
consideração te calas, eu assino o texto, que com a verdade não condeno minha alma.
A MOCINHA - Tia, deixe
esses tormentos!
A RAPOSA - Podias
ser mais orgulhosa. Não te olhas no espelho?
A MOCINHA - Quando vou
à fonte.
A RAPOSA - E o
espelhinho de tua alcova, não te diz nada quando te deitas?
A MOCINHA - Não me
vejo quando durmo.
A RAPOSA - Tens uma lábia!
Olha, me dá uma taça de licor de especiarias.
A MOCINHA - Grande ou
pequena?
A RAPOSA - Se me
medes a consciência, me dá uma mediana. Onde está tua mãe?
A MOCINHA - Lá dentro.
A RAPOSA - Vou vê-la
agora. Não retires a taça. Tua mãe, se lhe der na telha, é capaz de convidar-me.
Vem! Fiquemos à luz do luar. Vem! Vais ficar pasma com uma gargantilha de pérolas
e corais!
A Raposa apalpa a bolsa, e sob os raios
da lua abre um estojo: suspende a gargantilha no gancho dos dedos, e brinca com ela, procurando seu brilho.
A MOCINHA - Como é bonita!
A RAPOSA - Veio do Porto.
Vamos ver como fica em ti!
A MOCINHA - De noite
não brilha.
A RAPOSA - Fica com
ela e faz a comparação de dia.
A MOCINHA - Podem
roubá-la de mim.
A RAPOSA - Dorme com
ela.
A MOCINHA - Provocando
o ladrão para que me degole.
A RAPOSA- Deixa eu
por em ti. Sim, te dá realce! Pena não ter um espelhinho, para te veres!
A MOCINHA - O que
vejo, tia, é o disfarce que você traz. Guarde a gargantilha, que um laço me
volteia a garganta.
A RAPOSA - Tem juízo
e não fales sem discernimento. Hoje, és uma rosa!... Amanhã, uma pústula, uma convulsão,
um ar tísico, em último caso, os anos te deixam murcha! Tem cabeça! Podes
brilhar como uma rainha! Nem todos os dias são iguais! Hoje, te cerca um grande
homem que te enche a mão de ouro, amanhã não o tens.
A MOCINHA - Para que
esse homem me quer? Para amiga, e quando se cansar me deixe? Não estou aqui para ser jogada!
A RAPOSA - És muito faladeira!
Ser jogada! Vestirias sedas! Fica com a gargantilha e não a desdenhes!
A MOCINHA - Pois sim
que faço isso!
A RAPOSA - Estou
tonta com a soberba que demonstras! Bem que tua mãe te deu melhor educação! Com
a consideração que ela tem nunca aprovaria essa conduta com um homem de posses!
Filha, tu não te conduzes pela cabeça! Vou encontrar tua mãe. Ela tem
experiência e sabe o que significam trabalhos e mágoas.
A MOCINHA - O que você
maquina não há mãe no mundo que resolva sem contar com sua filha.
A RAPOSA - Tua mãe
sabe o que é mais conveniente para ti.
A MOCINHA - Se eu me
negar, que pode minha mãe fazer? O que? Enfiar o namoro na alcova? Dormirei com
as tesouras escondidas debaixo do travesseiro!
A RAPOSA - Deliras!
Estás caidinha por alguém que não te merece. Tens amor e com tais desvarios
logo o descobres! Olha, menina, o amor é sujeito muito passageiro.
A MOCINHA - Para mim,
o ar!
A Raposa entra na
taberna, com um caminhar titubeante, apoiada no cajado. A Mocinha, em sinal de
menosprezo, canta sobre o umbral. Cães latem ao longe e a sombra de um moço
afiador se projeta sobre a estrela dos caminhos da lua.
A MOCINHA - (cantando)
Me
disse, me disse
Que
fosse sua amiga!
Eu
lhe fiz, lhe fiz
Lhe
fiz a figa
O AFIADOR - Afio
tesouras e navalhas! Mocinha, queres que limpe a ferrugem das tuas tesouras. As
deixarei de prata!
A MOCINHA - E o
que queres em troca?
O AFIADOR - Um abraço
me deixa contente.
A MOCINHA - Vives com
esses pagamentos?
O AFIADOR - Qual
melhor?
A MOCINHA - E o que
fazes quando te recusam tal pagamento?
O AFIADOR - Troco-o por
moedas.
A MOCINHA - Então, faz
a conta e afia as tesouras.
O AFIADOR - Sai ao
luar para eu te ver bem e te direi os milhares que valem em moeda o preço
proposto.
A MOCINHA - Pela minha
cara hás de cobrar a conta? Sou mais feia que uma coruja recém-nascida.
O AFIADOR - A lua não
disse isso.
A MOCINHA - A lua é
uma enganadora!
O AFIADOR - Fazem um
casal!
A MOCINHA - Nunca me
viste até hoje e já me pões defeito!
O AFIADOR - Sem nunca
te ter visto, já me eras conhecida.
A MOCINHA - Me
acontece o mesmo.
O AFIADOR - Dá-me as
tesouras, mocinha.
A MOCINHA - Toma, e mostra
o que sabes fazer, infeliz.
O AFIADOR - Ficarão
como prata.
A MOCINHA - Faz-lhes
bom fio e assegura-lhes o eixo.
O AFIADOR - As
deixarei para ti como para a Rainha da Espanha!
A MOCINHA - Lustra-as
e então te convido para um copo de anisete.
Ao luar, gira em sombra a roda do
moço afiador: o aço faz saltar chispas da pedra. A MOCINHA atenta e noturna,
sobre o vão luminoso da porta, faz saltar na palma da mão, uma moeda negra.
O AFIADOR - Mocinha,
guarda a moeda. Já que recusas o abraço, vou
embora sem paga.
A MOCINHA - Que galanteador
és!
O AFIADOR - Galanteria
do caminho, que conduz a esta porta. Vendo teu garbo, o que me resta senão te impressionar!
A MOCINHA - Sedutor.
O AFIADOR - Tão
ótimas, mocinha, vou te deixar as tesouras, que não terás alma para negar-me o
prêmio!
A MOCINHA - Nem em
sonhos!
O AFIADOR - Então,
guarda a moeda. Beberei em tua companhia o copo de anisete.
O AFIADOR, sobre o
joelho da calça, dava o último brilho nas tesouras: brincava com elas cortando
um raio de lua: tornava a passá-las pela perna da calça.
A MOCINHA - Que não
fiquem muito duras.
O AFIADOR - Para
cortar no ar um cabelo, ficaram, menina.
A MOCINHA - Dirás que
te devo?
O AFIADOR - Falei.
A MOCINHA - Então, vou
te dar o copo de anisete. Ou tens preferência por outra bebida?
O AFIADOR - A que
gostares mais.
A MOCINHA - Bom conquistador és! Olha que passam espinhos por esta porta! Ganhas
de todos!
O AFIADOR - E esse
mérito, não te obriga a uma recompensa?
A MOCINHA - Bebes o
copo, te libertas e, quando deres a volta ao mundo, te responderei.
O AFIADOR - Essa roda
que pintas tão disforme, a percorro em menos de um credo.
A MOCINHA - Nem que
tivesses a bota de sete léguas!
O AFIADOR - Para essas
viagens me suspendo no rabo de um amigo.
A MOCINHA - Belas
amizades tens!
A MOCINHA desapareceu do vão
luminoso: se ouve sua voz de dentro. O AFIADOR espera, já carregado com o
candeeiro de sua engenhoca: a roda projeta seu círculo negro no cruzamento iluminado das três sendas. Rebolando, com
o copo na mão, A MOCINHA agora saía da taverna.
O AFIADOR - Menina, se
queres que eu beba, antes, molharás o bico.
A MOCINHA - Já o
molhei.
O AFIADOR - Quero ver.
A MOCINHA - Te darei
esse gosto.
A MOCINHA molha os lábios no copo e o
oferece ao galanteador que levanta a quimera de seu tanque no claro luar.
O AFIADOR - Beberei
teus segredos.
A MOCINHA - Hoje, não
os tenho.
O AFIADOR - Os de
amanhã.
A MOCINHA - Gabola,
mais que gabola!
O AFIADOR - Até a
volta, menina.
Atores preparados para o início da leitura:Margarida, Evandro, Naiara e Claudia Foto: Silvia Venturi |
Afasta-se. O negro utensílio, sobre os
ombros do errante, destaca sua roda com estranha sugestão de enigmas e, casualidades:
sob o céu de estrelas, na oração sussurrante da noite aldeã, se desvanece. Saem
na penumbra lunar do parreiral, a dona e a tia mal intencionada, duas sombras embriagadas
com gagueira, esgares e vaivém.
LA RAPOSA - Cintilam
as estrelas, comadre! Este relaxamento da vida, há que alegrá-lo!
A HOSPEDEIRA - Do
lobo, um pelo.
LA RAPOSA - Comadre,
como está bem conservada!
A HOSPEDEIRA - É
só aparência.
LA RAPOSA - Comadre,
a tenho na alma!
A HOSPEDEIRA - Comadre,
peça-me a vida!
LA RAPOSA - Memória
a peço.
A HOSPEDEIRA - Se
sou esquecida, que eu morra!
LA RAPOSA - Turulú!
Vá preparando uma empanada para o alvoroço.
A HOSPEDEIRA - Empanada
de carne e vinho branco de Rueda!
LA RAPOSA - Cafezinho
e anisete!
A HOSPEDEIRA - Um
cozimento de sálvia é melhor para o cansaço
LA RAPOSA - O
cafezinho não me negue, comadre!
A HOSPEDEIRA - Comadre,
quando chegar o momento!
LA RAPOSA - Você
esteja pronta para zurrar sapateiros, a você corresponde este ministério. Comadre, se esquece de que
meus passos vão encher-lhe a casa, lhe quebro a sorte.
A HOSPEDEIRA- Tenho
um chifre no telhado.
LA RAPOSA - Vale
pouco.
A HOSPEDEIRA - Não se aborreça
comigo, comadre!
LA RAPOSA - Turulú! A
torto e a direito.
A HOSPEDEIRA - Pelas
boas, se for o caso.
LA RAPOSA - E pelas
más! Minha saia é muito negra!
A HOSPEDEIRA - Comadre,
somos da arte!
LA RAPOSA - Você é das
que voam?
A HOSPEDEIRA - Ao
meio-dia de sábado, monto na vassoura, e pelos céus. Arcos de sol! Arcos de
lua!
LA RAPOSA - Você está bêbada!
A HOSPEDEIRA - Bêbada
porque estou em vantagem.
LA RAPOSA - A mim,
todas as noites a assombração me visita!
A HOSPEDEIRA - Você está
sonhando!
LA RAPOSA - Tão real
quanto o que você diz! Comadre, qual é o meu caminho? A lua me cega.
A HOSPEDEIRA - A noite
atordoa tudo.
LA RAPOSA - Me guio
por aquela estrela grande.
A HOSPEDEIRA - Comadre,
me deixa um mandato.
LA RAPOSA - Te levo na
alma, irmã.
A HOSPEDEIRA - Irmã,
pede-me a vida.
A COMADRE – cajado
e manto – se perde na noite estrelada. Cães ladram ao longe. Sentada à beira da
manjedoura, trêmula de brilhos, se alheia com desdenhosa cantoria A MOCINHA. A
mãe cruza os braços.
A MOCINHA - (canta) Por ver-me, por ver-me,
Por ver-me a liga
Me disse, me disse
Para ser sua amiga.
A HOSPEDEIRA - Qual
foi o conselho que a comadre te deu?
A MOCINHA - Qual
a minha resposta?
A HOSPEDEIRA - Por
que não recebeste o presente?
A MOCINHA - Não
me apetecem aquelas coisas.
A HOSPEDEIRA - Ah,
aí estás para te atirares.
A MOCINHA - Pelo
mesmo.
A HOSPEDEIRA - Não te
envergonhes! É atirar-se pagar com prazer um fino presente, e não o é ficar
bico a bico com cada um que apareça?
A MOCINHA - Com isso
nada perco.
A HOSPEDEIRA - E para
aceitar um mimo por estima, vais dizer que te jogas no chão? Que eu caia morta,
se sabes o que é recato!
A MOCINHA - Você não é
minha professora!
A HOSPEDEIRA - Deixa
de insolência e usa de bom senso.
A MOCINHA - O que é
meu, é meu.
A HOSPEDEIRA - Tu não
tens nada.
A MOCINHA - Tenho meu
corpo.
A HOSPEDEIRA - Nem ele
é teu.
A
MOCINHA - É o que veremos.
A
HOSPEDEIRA - Ora! Aqui está a gargantilha
que desprezas, vê! Pérolas e corais!
A
MOCINHA - Ai, minha mãe! Você com pouco fica
cega!
A
HOSPEDEIRA - Quero o teu bem. De onde
esperas uma conveniência igual? De onde? Ignoras o quanto representa um amigo
que não quer dinheiro, apenas. Se ouves tua mãe, podes ver-te abonada.
A
MOCINHA - Isso não me impressiona, nem que
venha com ouro pulando na palma da mão!
A
HOSPEDEIRA - Negra de alma, não olhas por
ti, nem pela velhice de quem teve tanto trabalho para criar-te! Pensa na tua
mãe, já que não pensas em ti, desastrada!
A
MOCINHA - Chega, é demais! Uma gargantilha
de pérolas, para quem tanto tem, nada representa. Quanto a perder-me que seja
em carruagem e cuidadosamente. Com uma gargantilha não fico cega, e antes me entrego
por gosto, para perder-me.
A
HOSPEDEIRA - Libertina! Relaxada! Desonesta!
A
MOCINHA - Tudo isso!
A
HOSPEDEIRA - Não me fales relutante, grande
pervertida, porque te tiro o couro. Patife! Mais
que patife! Quando podias esperar sorte maior?
A
MOCINHA - Sorte, com um ponto que muda como
uma biruta.
A
HOSPEDEIRA - Para segurar esses homens está
a arte das mulheres.
A
MOCINHA - E se me faltasse tal arte, quem me
repararia? Essa avaria a mim não me acontece.
A
HOSPEDEIRA - Irás onde tua mãe te ordena.
A
MOCINHA - Meu corpo é meu!
A
HOSPEDEIRA - Escória, então adias tua
boa ventura! Então a repeles!
A
MOCINHA - Se você mete esse cortejo na
alcova, se encontrará o que deve ser encontrado.
A
HOSPEDEIRA - Ao menos recebe seu presente e troca
algumas palavras com ele pela janela! Põe a gargantilha para que se lhe ocorre
aparecer a verá em ti, e não me provoques!
A
MOCINHA - Se lhe apetece meu porte, que vá e
venha e que se incomode.
A mãe se metia saguão
adentro, e no perfil do cocho a filha continuava cantando. Lentamente, a lua se
obscurecia com lutos errantes. A sombra de um cachorro branco cruzou o campo.
Permanecia, inteiro na noite, o cantar, abolida a figura de A MOCINHA, na
escuridão noturna.
Os
passos do afiador sobre o limite do campinho eram assombrados de ecos.
A
MOCINHA - (canta)
Sobre
um pé a volta
Dos mundos dou!
Quando passo, fico
Quando fico, vou!
O
AFIADOR - Me acolhes com um bom
encantamento!
A
MOCINHA - Já fizeste a volta ao mundo?
O
AFIADOR - De cabo a rabo.
A
MOCINHA - Pelo ar?
O
AFIADOR - Certamente pelo ar!
A
MOCINHA - (canta)
Quando passo, fico
Quando fico, vou!
O
AFIADOR - Menina, te transformaste em sereia
e cantas de noite para atrair os caminhantes?
A
MOCINHA - Achas isso?
O
AFIADOR - Por acaso!
A
MOCINHA - Lamentarias se eu fosse uma
sereia?
O
AFIADOR - Lamentaria, hás de ter belas
pernas e as sereias embaixo não usam calçolas.
A
MOCINHA - Tens certeza?
O
AFIADOR - É o que dizem.
A
MOCINHA - Pois então não devo ser sereia.
O
AFIADOR - Isso ganha quem te levar.
A
MOCINHA - Não sou sereia, mas, sem sê-lo,
nestas águas do cocho, desde que te foste, tenho visto teus passos refletidos.
O
AFIADOR - Sem faltar um só dos seus
tropeços?
A
MOCINHA - Nenhum só.
O
AFIADOR - E também lês minha mente?
A
MOCINHA - Aí me detenho.
O
AFIADOR - Onde, recordando-te, me sentei
para fumar um cigarro? Onde foi? Menina, se acertas, te proclamo bruxa!
A
MOCINHA - Na primeira das pontes estiveste
lembrando de mim.
O
AFIADOR - Certo! Estive ali me lembrando de
ti, apoiado na mureta, tão desligado na corrente com o lume do cigarro na boca.
A
MOCINHA - Te digo mais: passaste um susto.
O
AFIADOR - Certo!
A
MOCINHA - Apareceu um cão e te cravou os
dentes no ombro. Olha só a roupa rasgada no ombro.
O
AFIADOR - Isso te deu luzes!
A
MOCINHA - O que é o destino! Não esperava
voltar a ver-te! Creio, moço, como deliberação das estrelas.
O
AFIADOR - E do raivoso que me apareceu no
caminho.
Voava uma nuvem sobre a lua, e no roxo escuro da parreira, na esquina
do tapume, apagavam seu vulto, os vultos de O AFIADOR e de A MOCINHA. As vozes
abriam círculos alternados no vapor das sombras.
A
MOCINHA - Tudo emana daquilo.
O
AFIADOR - Onde te achas? Onde estás que não
te vejo?
A
MOCINHA - Perto de ti estou.
O
AFIADOR - Nem te ver, nem te apalpar.
A
MOCINHA - Pus um anel encantado. Quando
passaste a primeira vez, me pediste um abraço. Vem tê-lo. Duvidas? Por que te
recusas?
O
AFIADOR - Menina, se transformou em ti a
serpente!
A
MOCINHA - Antes, sereia!... Agora, serpente!
O que serei daqui a pouco?
O
AFIADOR - Minha perdição, se queres. O Diabo
maquinou este enredo para contá-lo à outra mulher, que me espera vestida e
composta.
A MOCINHA - Recomenda-lhe o segredo a Satanás.
O
AFIADOR - Diabo, te determino. Do que se
passar entre esta moça e quem vos fala, boca calada, ou te arrebento um chifre.
A
MOCINHA - Que sagaz!
A
VOZ DA MÃE - Deixa de buliço! Te dá ao respeito! Vem para dentro! Encosta a porta sem passar o ferrolho, ainda pode vir
alguém esta noite. Estás me ouvindo?
A
MOCINHA - Ai, minha mãe, não remexa a rixa passada!
A
HOSPEDEIRA - Entra já, se não queres me ver
sair com uma vassoura!
O
AFIADOR - Bom trato te dá a velha!
A
MOCINHA - Quer me arruinar com um judeu rico.
O
AFIADOR - Que tem bom gosto!
A
MOCINHA - Por mais que esteja procurando,
não o encontrará... Tem outro na frente... Espera-me, que te falarei pela
janela.
O
AFIADOR - És contra?
A
MOCINHA - Minha flor não a dou por dinheiro.
O
AFIADOR - Olé!
A MOCINHA - O que tiver
de ser levado, será levado. Mas não! Ainda falarei contigo pela janela.
Espera-me!
No vão luminoso da porta se destaca, pela
cor preta, empunhando uma vassoura, a mulher da taberna. O moço afiador se esconde na sombra.
A MOCINHA - (canta)
Morro de
rir!
De rir eu morro!
A HOSPEDEIRA - Esta noite vou
te moer, sua rebelde!
A MOCINHA - É pouco para me irritar!
A HOSPEDEIRA - Vai para dentro, e não me condenes! Onde se meteu o
patife com quem tagarelavas? Sei que estás me ouvindo, poeira do caminho! Que
foi que perdeste nesta porta? Ficas calado? Se nada perdeste, dá o fora. Vai
para dentro, relaxada. Tranca a porta. Se alguém vier, baterá. Ficarei atenta.
Ouve-se o ferrolho correr. A mãe e a filha
brigam por detrás da porta. O vulto do moço afiador sobressai, sigiloso, do
cercado. Bate a vassoura, grita a velha, chora A MOCINHA. O moço afiador
escuta, com a roda no ombro. A briga se distancia, some, recrudesce, se
extingue. Perdura a lamúria da MOCINHA: Enxugando os olhos, aparece à janela.
A MOCINHA - Ouviste a velha?
O AFIADOR - Alguma
palavra me chegou.
A MOCINHA - E que conjectura
fizeste?
O AFIADOR - Que quer
dinheiro.
A MOCINHA - Queres tornar-me
tua?
O AFIADOR - Não me dês água na
boca se eu não puder prová-la!
A MOCINHA - Responde!
O AFIADOR - Não me
animes, que desmaio!
A MOCINHA - Serás o
primeiro que me tenha!
O AFIADOR - Para que me
cegas?
A MOCINHA - Ficas cego
por tão pouco?
O AFIADOR - És flor de canela!
A MOCINHA - Descobre o
ombro, e mostra-me o sangue que sai de ti.
O AFIADOR - Olha.
A MOCINHA - Chega!
O AFIADOR - Que queres?
A MOCINHA - Beber-te eu
quero!
O AFIADOR - Por Cristo, pareces
uma bruxa!
A MOCINHA - E sou!
Beberei o teu sangue e beberás o meu.
O AFIADOR - Que sacramento!
Perdão, menina, se enfraqueço, mas já estou com cabresto.
A MOCINHA - És casado?
O AFIADOR - Os proclamas
correm em Santa Maria de Todo o Mundo.
A MOCINHA - Não te
consideras capaz de beber o meu sangue e dar-me de beber o teu?
O AFIADOR - A cabeça,
menina, me fizeste ficar tonto.
A MOCINHA - Sabes o que é
um pacto?
O AFIADOR - Algo me atinge.
A MOCINHA - E estás de
acordo?
O AFIADOR - Para o que
ordenares.
A MOCINHA, com gesto cruel, que lhe crispa
os lábios e lhe aguça os olhos,
crava a tesoura na própria mão e aperta a boca do rapaz com a palma
ensanguentada.
A MOCINHA - Beija! Morde! Me
uno contigo!
O AFIADOR - Que arte de
namorar, a tua!
A MOCINHA - Descobre o
ombro: é a minha vez de beber o teu sangue!
O AFIADOR - Exerces bruxaria?
A MOCINHA - Bruxa com
Paulina!
O AFIADOR - Pois não recuo!
A MOCINHA - Então entra e
desfaz a cama.
O errante tira a roda de si, e mete a perna pela janela. A MOCINHA
apaga a luz na alcova. A MOCINHA. Um vulto ataca, de manta e escopeta,
atravessa o pasto e bate à porta. O ferrolho range. A folha se entrefecha, e o vulto
desliza furtivo pelo vão. Uiva um branco mastim no pasto. A MOCINHA atravessa
pelo claro da janela. Levanta o braço. Quebra o raio de lua com o brilho da
tesoura. Tumulto de sombras. Um grito, e o baque de um corpo no chão. Tenso
silêncio. Pelo vão da janela, quatro braços desprendem o corpo de um homem com a tesoura cravada no peito. Ladram os
cachorros da aldeia.
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