Nesta semana o nosso blog
reproduz um artigo publicado em 2002 (v.2), na Revista Sala Preta, da USP. - http://www.revistas.usp.br/salapreta
O artigo é sobre Tadeusz Kantor, (1915-1990).
Encenador e artista plástico polonês.
Ensaio escrito em 1975, por
ocasião da estréia do espetáculo A Classe Morta em Varsóvia. A versão francesa
do texto, base desta tradução, foi publicada no livro Le Théâtre de la mort, organizado
e apresentado por Denis Bablet e editado pela l’Âge d’homme de Lausanne em
1977.
Tradução de Silvia Fernandes.
Boa leitura e boas festas!
Sílvia Fernandes - foto no site do MITSP/2014 |
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O teatro da morte
Tadeusz Kantor
1 Craig afirma: a marionete deve retornar; o ator vivo deve desaparecer.
O homem, criado pela natureza, é uma interferência estranha na estrutura
abstrata da obra de arte.
Segundo
Gordon Craig, em algum lugar entre os rios de Ganges, duas mulheres entraram no
templo da Divina Marionete, que guardava o segredo do verdadeiro Teatro. Essas
duas mulheres tinham ciúmes desse Ser perfeito, de quem invejavam o Papel de
iluminar o espírito dos homens com o sentimento sagrado da existência de Deus;
elas invejavam-lhe a Glória.
Apossaram-se
de seus movimentos e gestos, de suas vestes maravilhosas e, com uma paródia medíocre,
começaram a satisfazer o gosto vulgar da plebe. Quando, enfim, mandaram construir
um templo à imagem do outro, o teatro moderno nasceu – aquele que conhecemos muito
bem e que dura até hoje: essa barulhenta Instituição de utilidade pública. Ao
mesmo tempo, apareceu o Ator. Em apoio à sua tese, Craig invoca a opinião de
Eleonora Duse: “Para salvar o teatro, é preciso destruí-lo; é preciso que todos
os atores e todas as atrizes morram de peste... São eles que criam obstáculos à
arte...”
Gordon Craig - foto do blog: Dramatic Corporeal Mime Technique Studio |
2. A Teoria
de Craig: o homem-ator suplanta a marionete e toma seu lugar, causando, assim, o
declínio do teatro.
Há algo
de impositivo na atitude desse grande utopista, quando afirma: “Eu exijo, seriamente,
o retorno do conceito da supermarionete ao teatro... E desde que ela reapareça,
as pessoas poderão venerar de novo a alegria da existência e render uma
homenagem divina e alegre à Morte.”
Concordando
com a estética simbolista, Craig considerava o homem submetido a paixões
diversas, a emoções incontroláveis e, em consequência, ao acaso, um elemento
absolutamente estrangeiro à natureza homogênea e à estrutura de uma obra de
arte, um elemento destruidor de seu caráter fundamental: a coesão. Craig – como
os simbolistas, cujo programa tem um desenvolvimento notável em seu tempo – tinha
atrás de si fenômenos isolados, mas extraordinários, que no século XIX
anunciavam uma época nova e uma arte nova: Henrich von Kleist, Ernst Theodor
Hoffmann, Edgar Allan Poe...
Cem anos
antes, e por razões idênticas às de Craig, Kleist exigiu que o ator fosse
substituído por uma marionete, julgando que o organismo humano, submetido às
leis da Natureza, fosse uma interferência estranha na ficção artística, nascida
de uma construção do intelecto. As outras censuras de Kleist dirigiam-se às
limitadas possibilidades físicas do homem; ele denunciava, além disso, o papel
nefasto do controle permanente da consciência, incompatível com os conceitos de
charme e beleza.
3. Da
mística romântica dos manequins e das criações artificiais do homem do século
XIX ao racionalismo abstrato do XX.
No
caminho que se julgava seguro, e de que se servia o homem do Século das luzes e
do racionalismo, eis que avançam, saindo de repente das trevas, cada vez mais
numerosos, os SÓSIAS, os MANEQUINS, os AUTÔMATOS, os HOMÚNCULOS – criaturas
artificiais que são injúrias às próprias criações da NATUREZA e trazem em si
toda a humilhação, TODOS os sonhos da humanidade, a morte, o horror e o terror.
Assiste-se ao aparecimento da fé nas forças misteriosas do MOVIMENTO MECÂNICO,
ao nascimento da paixão maníaca de inventar um Mecanismo que supere em perfeição,
em implacabilidade, o tão vulnerável mecanismo humano. E tudo isso num clima de
satanismo, no limite do charlatanismo, das práticas ilegais, da magia, do
crime, do pesadelo. É a FICÇÃO-CIENTÍFICA da época, em que um cérebro humano
demoníaco cria o HOMEM ARTIFICIAL. Isso significa, ao mesmo tempo, uma súbita
crise de confiança em relação à natureza e aos domínios de atividade humana
intimamente ligados a ela.
Paradoxalmente,
é dessas tentativas românticas e diabólicas ao extremo de negar à natureza seu
direito à criação, que nasce e desenvolve-se o movimento RACIONALISTA, ou mesmo
MATERIALISTA – cada vez mais independente e cada vez mais perigosamente afastado
da Natureza –, a tendência na direção de um “MUNDO SEM OBJETO”, do CONSTRUTIVISMO,
do FUNCIONALISMO, do MAQUINISMO, da ABSTRAÇÃO e, finalmente, do
PURO-VISIBILISMO, que reconhece apenas a “presença física” de uma obra de arte.
Essa hipótese arriscada, que tende a estabelecer a gênese pouco gloriosa do
século do cientificismo e da técnica, mobiliza apenas minha consciência e serve
apenas à minha satisfação pessoal.
4. O
dadaísmo, introduzindo a “realidade toute prête” (os elementos da vida),
destrói os conceitos de homogeneidade e de coerência da obra de arte postulados
pelo simbolismo, pela Art Nouveau e por Craig.
Mas
voltemos à supermarionete de Craig. Sua idéia de substituir um ator vivo por um
manequim, por uma criação artificial e mecânica, em nome da perfeita conservação
da homogeneidade e da coerência da obra de arte, já está ultrapassada. As
experiências posteriores, que destruíram a homogeneidade da estrutura de uma
obra de arte e introduziram nela elementos ESTRANGEIROS, por meio de colagens e
assemblages; a aceitação da realidade “toute prête”; o pleno reconhecimento do
papel do acaso; a localização da obra de arte na fronteira estreita entre
REALIDADE DA VIDA e FICÇÃO ARTÍSTICA – tudo isso tornou prescindíveis os
escrúpulos do início do século, do período do Simbolismo e da Art Nouveau. A alternativa “arte autônoma, de
estrutura cerebral, ou perigo de naturalismo” deixou de ser a única possível.
Se o teatro,
em seus momentos de fraqueza, sucumbia ao organismo humano vivo e a suas leis,
é porque aceitava, automaticamente e logicamente, essa forma de imitação da
vida que sua representação e sua recriação constituem.
Ao
contrário, nos momentos em que o teatro estava suficientemente forte e independente
para se livrar das pressões da vida e do homem, produzia equivalentes
artificiais da vida que, por se curvarem à abstração do espaço e do tempo, eram
mais vivos e mais aptos a atingir a coesão absoluta. Em nossos dias, essa alternativa
de escolha perdeu tanto seu sentido quanto seu caráter exclusivo. Pois se criou
uma nova situação no domínio da arte e existem novos parâmetros de expressão.
O surgimento
do conceito de REALIDADE “TOUTE PRÊTE”, arrancada do contexto da vida, tornou
possíveis a ANEXAÇÃO dessa realidade, sua INTEGRAÇÃO à obra de arte pela DECISÃO,
pelo GESTO ou pelo RITUAL. E isso, atualmente, é muito mais fascinante e tem
mais poder no coração do real do que qualquer entidade abstrata ou elaborada
artificialmente, ou mesmo do que esse mundo surrealista do “MARAVILHOSO” de
André Breton. Happenings, “eventos” e “ambientações” reabilitaram, num ímpeto,
regiões inteiras da Realidade menosprezadas até aqui, liberando-as das garras
de sua destinação terra-a-terra. Esse DESLOCAMENTO da realidade pragmática, esse
“transbordamento” fora dos trilhos da prática quotidiana, impeliram a
imaginação dos homens de modo muito mais intenso que a realidade surrealista do
sonho onírico.
Enfim, foi
isso que fez com que perdessem toda importância os temores de ver o homem e sua
vida interferirem diretamente no plano da arte.
5. Da
“realidade imediata” do happening à desmaterialização dos elementos da obra de
arte.
Entretanto,
como toda fascinação, depois de certo tempo essa também se tornou CONVENÇÃO
pura – universalmente, tolamente, vulgarmente colocada em prática. Essas manipulações
quase rituais da realidade, ligadas à contestação do ESTADO DA ARTE e do LUGAR
reservado à arte, pouco a pouco adquiriram um sentido e uma significação
diferentes. A PRESENÇA material, física, dos objetos, e o TEMPO PRESENTE em que
podem, sozinhos, figurar a atividade e a ação, aparentemente atingiram seus
limites e se tornaram um entrave. Superá-los significava privar essas relações de
sua Importância material e funcional, ou seja, de sua possível APREENSÃO.
(Como se
trata aqui de um período recente, ainda não encerrado, fluido, as considerações
que se seguem referem-se e estão ligadas a minhas próprias atividades de
criação).
O objeto
(A Cadeira, Oslo, 1970) tornava-se vazio, desprovido de expressão, de encadeamentos,
de pontos de referência, de marcas de uma desejada intercomunicação, de uma mensagem;
não era dirigido a lugar nenhum e se tornava artifício. As situações e as ações
permaneciam fechadas em seu próprio CIRCUITO, ENIGMÁTICAS (O teatro impossível,
1973). Em minha manifestação intitulada Cabriolage, aconteceu uma INVASÃO
ilegítima do território em que a realidade tangível encontra seus
prolongamentos INVISÍVEIS. Cada vez mais distintamente especifica-se o papel do
PENSAMENTO, da MEMÓRIA e do TEMPO.
6. Recusa
da ortodoxia do conceptualismo e da “vanguarda oficial das massas”
.
De forma
cada vez mais forte, impõe-se, para mim, a convicção de que o conceito de VIDA
só pode ser reintroduzido na arte por meio da AUSÊNCIA DE VIDA no sentido convencional
(ainda Craig e os simbolistas). Esse processo de DESMATERIALIZAÇÃO instalou-se
em minhas atividades criativas, sem incluir, entretanto, toda a armadura
ortodoxa da linguística e do conceptualismo. É certo que, em parte, essa escolha
foi influenciada pelo engarrafamento gigantesco que entupiu essa via, de agora
em diante oficial, que constitui, hélas, o último trecho da estrada dadaísta,
sinalizada por seus slogans de ARTE TOTAL, TUDO É ARTE, TODO MUNDO É ARTISTA, A
ARTE ESTÁ EM SUA CABEÇA, etc.
Não gosto
de engarrafamentos. Em 1973 escrevi o esboço de um novo manifesto, que leva em
conta essa situação falsa. Eis o seu início:
“Depois
de Verdun, do Cabaré Voltaire e do Urinol de Marcel Duchamp, quando o ‘fato artístico’
foi encoberto pelo crescimento da Grosse Bertha, a DECISÃO tornou-se a única
chance que restou ao homem de ousar algo inconcebível outrora ou ainda hoje.
Por muito tempo, ela foi o primeiro estímulo à criação, uma condição e uma
definição da arte. Mas nos últimos tempos, milhares de indivíduos medíocres tomam
decisões, sem reticências nem escrúpulos de qualquer ordem. A decisão tornou-se
uma questão banal e convencional. O que era um caminho perigoso, agora é uma
estrada confortável – segurança e sinalização hipermelhoradas. Guias, sinais,
placas indicativas, brasões, centros, congressos de arte – é isso que garante a
criação artística perfeita. Somos testemunhas de um LEVANTE EM MASSA de
comandos de artistas, de combatentes de rua, de artistas de choque, de
fazedores de arte, de escrevinhadores, de caixeiros viajantes, de charlatões,
de representantes de firmas e agências. Nessa estrada, agora oficial, o
tráfego, que ameaça afogarnos sob uma onda de grafites insignificantes e
pretensos golpes de teatro, aumenta cada dia mais. É preciso abandoná-la o mais
rápido possível. Mas não é assim tão fácil! Especialmente porque ela está no
apogeu – cega e afiançada pelo alto prestígio do INTELECTO, que inclui
igualmente sábios e tolos – a ONIPRESENTE VANGUARDA....”
7. Nos caminhos marginais da
vanguarda oficial. Os manequins aparecem.
Minha decidida
recusa em aceitar as soluções do conceptualismo, ainda que pareçam a única
saída para o caminho que escolhi, levou-me a tentar circunscrever os fatos
relatados acima, que marcaram a última fase de minha atividade criadora por
caminhos marginais, capazes de me oferecer mais oportunidades de desembocar no
DESCONHECIDO!
Tal
situação, mais que qualquer outra, me torna confiante. Todo período novo sempre
começa por experiências sem grande significação, perceptíveis apenas em surdina,
que não parecem ter muito em comum com a via traçada; experiências
particulares, íntimas, até mesmo pouco recomendáveis, eu diria. Pouco claras,
de qualquer forma. E difíceis! Esses são os momentos mais fascinantes e mais
plenos de sentido da criação artística.
E, de
repente, passei a me interessar pela natureza dos MANEQUINS. O manequim, em minha
encenação de La Poule d’eau (A Galinha aquática), de Witkacy (1967) e os
manequins em Les Cordonniers (Os
Sapateiros), do mesmo Witkacy (1970), tinham um papel muito específico; eram
uma espécie de prolongamento imaterial, alguma coisa como um ORGÃO COMPLEMENTAR
do ator, que era seu “proprietário”. Quanto àqueles que utilizei, em grande
quantidade, na encenação da Balladyna de Slowacki, eram DUPLOS dos personagens vivos,
como se fossem dotados de uma CONSCIÊNCIA superior, alcançada “depois da consumação
de sua própria vida”. Esses manequins já estavam visivelmente marcados pelo
selo da Morte.
8. O manequim
como manifestação da realidade mais trivial. Como um procedimento de transcendência,
um objeto vazio, um artifício, uma mensagem de morte, um modelo para o ator.
O
manequim que utilizei, em 1967, no teatro Cricot 2 (La poule d’eau) foi, depois
do eterno Peregrino e das Embalagens humanas, o próximo personagem a entrar
naturalmente em minha Coleção, como um outro fenômeno de apoio a essa convicção
arraigada em mim há muito tempo, de que somente a realidade mais trivial, os
objetos mais modestos e mais desdenhados, são capazes de revelar, numa obra de arte,
seu caráter específico de objeto.
Manequins
e figuras de cera sempre existiram, mas mantidos à distância, à margem da cultura
admitida, nas barracas dos mercados, nas tendas suspeitas dos mágicos, longe
dos esplêndidos templos da arte, olhados como curiosidades desprezíveis, boas
apenas para satisfazer o gosto do populacho. Mas por essa razão, são eles que conseguem
– bem mais que as acadêmicas peças de museu – , no tempo de um breve olhar,
levantar um canto do véu.
Os
manequins têm também um gosto de pecado – de transgressão delituosa. A
existência dessas criaturas feitas à imagem do homem, de uma maneira quase
sacrílega e quase clandestina, fruto de procedimentos heréticos, traz a marca
desse lado obscuro, noturno e sedicioso da caminhada humana, o sinal do crime e
dos estigmas da morte, ao mesmo tempo que da fonte de conhecimento. A impressão
confusa, inexplicável, de que é por meio de uma criatura com aspectos enganosos
de vida, mas privada de consciência e de destino, que a morte e o nada enviam
sua mensagem inquietante – é isto que nos causa esse sentimento de
transgressão, ao mesmo tempo de rejeição e atração. Exclusão e fascinação.
O ato de
acusação esgotou todos os seus argumentos. O primeiro a oferecer o flanco aos ataques
foi o próprio mecanismo dessa ação, levianamente considerada um fim em si
mesma, e desde então relegada à condição das formas medíocres da criação
artística, colocada no mesmo saco que a imitação, a ilusão enganadora, destinada
a abusar do espectador, como as imposturas do manipulador de feira, como os artifícios
ingênuos que escapam aos conceitos da estética, como o uso fraudulento das
aparências e as práticas de charlatanismo. E, para acrescentar algo mais, juntaram-se
ao processo as acusações de uma filosofia que, desde Platão, e muitas vezes
ainda hoje, estabelece como finalidade da arte revelar o Ser e sua
espiritualidade, em lugar de chafurdar na concretude material do mundo, nessa
fraude das aparências que representa o nível mais baixo da existência.
Não penso
que um MANEQUIM (ou uma FIGURA DE CERA) possa ser o substituto de um ATOR VIVO,
como queriam Kleist e Craig. Seria fácil e ingênuo demais. Eu me esforço por
determinar as motivações e o destino dessa entidade insólita, surgida
inesperadamente em meus pensamentos e em minhas ideias. Seu aparecimento
combina-se à convicção, cada vez mais forte em mim, de que a vida só pode
exprimir-se na arte pela falta de vida e pelo recurso à morte, por meio das
aparências, da vacuidade, da ausência de qualquer mensagem. Em meu teatro, um
manequim deve tornar-se um MODELO que encarna e transmite um profundo
sentimento da morte e da condição dos mortos – um modelo para o ATOR VIVO.
9. Minha interpretação
da situação descrita por Craig. O aparecimento do ator vivo, momento
revolucionário. A descoberta da imagem do homem.
Tiro
minhas considerações das fontes do teatro; mas realmente elas se aplicam ao conjunto
da arte atual. Há motivo para pensar que a descrição, imaginada por Craig, das
circunstâncias em que o ator surgiu, por ser uma análise terrivelmente
acusadora, devia servir a seu autor como ponto de partida para as ideias relativas
à Supermarionete. Ainda que admire o desprezo orgulhoso professado por Craig e
suas diatribes apaixonadas – sobretudo quando em confronto com a decadência
total do teatro contemporâneo –, e ainda que faça minha a primeira parte de seu
credo, em que ele nega ao teatro institucionalizado qualquer razão de existir
no plano da arte, devo tomar distância em relação às conhecidas soluções que
ele adotou para o ator. Pois o momento em que um Ator aparece, pela primeira
vez, diante de um Público (para empregar o vocabulário atual), parece-me um
momento revolucionário e de vanguarda. Por isso vou tentar criar e fazer
“entrar na história” uma imagem oposta, em que os acontecimentos terão um
significado inverso.
Do
círculo comum dos costumes e dos ritos religiosos, das cerimônias e das
atividades lúdicas, saiu Alguém que tomou a decisão temerária de se destacar da
comunidade cultural. Seus motivos não eram nem o orgulho (como em Craig) nem o desejo
de atrair para si a atenção de todos, solução simplista em excesso. Eu o vejo
mais como um rebelde, um opositor, um herege, livre e trágico por ousar ficar
só com sua sorte e seu destino. E se acrescentarmos “com seu Papel”, teremos
diante de nós o Ator. A revolta aconteceu no terreno da arte. Esse acontecimento
ou essa manifestação provavelmente causaram grande comoção nos espíritos e
suscitaram opiniões contraditórias. Certamente julgou-se esse Ato uma traição
às tradições antigas e às práticas do culto; viu-se aí uma manifestação de
orgulho profano, de ateísmo, de perigosas tendências subversivas; bradou-se
contra o escândalo, a imoralidade, a indecência; considerou-se o homem um
bufão, um cabotino, um exibicionista, um depravado. O próprio ator, relegado a
uma posição exterior à sociedade, terá conquistado não apenas inimigos cruéis,
mas também admiradores fanáticos. Opróbrio e glória conjugados.
Seria de
um formalismo ridículo e superficial querer explicar esse ato de Ruptura pelo egoísmo,
pelo apetite de glória ou por uma tendência inata para a exibição. Devia
tratar-se de um ato mais considerável, de uma Comunicação de importância
capital. Tentemos representar essa situação fascinante. Um Homem havia se
erguido diante daqueles que ficaram do lado de cá. Exatamente igual a cada um
deles e, no entanto (em virtude de uma “operação” misteriosa e admirável),
infinitamente Distante, terrivelmente Estrangeiro, como que habitado pela morte,
separado deles por uma Barreira não menos apavorante e inconcebível por ser
invisível, como o verdadeiro sentido da Honra, que só pode ser revelado pelo
Sonho.
Assim, à luz
cegante de um raio, perceberam de repente a Imagem do Homem, gritante,
tragicamente clownesca, como se a vissem pela Primeira Vez, como se acabassem
de ver a Si Mesmos. Foi, com certeza, uma percepção que se poderia qualificar
de metafísica.
Essa
imagem viva do Homem saindo das trevas, seguindo seu caminho sempre em frente,
constituía um Manifesto radiante da nova Condição Humana, somente Humana, com
sua Responsabilidade e sua Consciência trágica medindo seu Destino numa escala
implacável e definitiva, a escala da Morte.
De espaços
da Morte vestia-se esse Manifesto revelador, que provocou no público (utilizemos
um termo atual) essa percepção metafísica. Os meios e a arte desse homem, o
Ator (para empregar, ainda uma vez, nosso vocabulário), também se ligavam à
Morte, à sua beleza trágica e terrível.
Devemos
devolver à relação Espectador/Ator seu significado essencial. Devemos fazer renascer
o impacto original do instante em que o homem (ator) surgiu pela primeira vez
diante de outros homens (espectadores), exatamente igual a cada um de nós e, no
entanto, infinitamente estrangeiro, muito além da barreira que não pode ser
ultrapassada.
Tadeusz Kantor - foto no site teatrojornal.com.br |
10. Recapitulação
Ainda que
suspeitem de nós e nos acusem de alimentar escrúpulos sem propósito caçaremos
nossos preconceitos e nossos medos inatos e, para melhor sitiar a imagem,
visando eventuais conclusões, fincaremos as balizas dessa fronteira que tem nome:
A CONDIÇÃO DA MORTE pois é o marco mais avançado, não ameaçado por conformismo,
da CONDIÇÃO DO ARTISTA E DA ARTE.
... essa relação particular
desnorteante e atraente ao mesmo
tempo
entre os vivos e os mortos
que, outrora, quando ainda vivos,
não davam espaço
a espetáculos inesperados
a divisões inúteis, à desordem
Não eram diferentes
e não assumiam ares de grandeza
e, por conta dessa feição banal
mas importante, como se verá,
eram simplesmente, normalmente,
respeitosamente
não perceptíveis.
E eis que agora, de repente,
do outro lado, diante de nós,
causam surpresa
como se os víssemos pela primeira
vez
expostos ao olhar, numa cerimônia
ambígua:
honrados e rejeitados ao mesmo
tempo
irremediavelmente outros
infinitamente estrangeiros, e
ainda,
de certa forma, desprovidos de
sentido
não levados em conta
sem a menor esperança de ocupar
um lugar
pleno nas texturas de nossa vida
acessíveis, familiares,
inteligíveis
apenas para nós,
mas para eles sem sentido.
Se estamos de acordo que o traço
dominante
dos homens vivos
é sua aptidão e sua facilidade
para manter múltiplas relações
vitais
é somente diante dos mortos
que surge em nós
a consciência repentina e
surpreendente
de que essa característica
essencial dos vivos
só é possível
por sua falta total de diferenças
por sua banalidade
por sua identificação universal
que demole impiedosamente
toda ilusão do diferente ou do
contrário
pela qualidade comum, aprovada,
sempre em vigor
de se manterem indiscerníveis
Somente os mortos são
Perceptíveis (para os vivos)
obtendo assim, pelo preço mais
alto,
seu estatuto próprio
sua singularidade
sua SILHUETA resplandecente
quase como no circo.
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