Nesta semana o Círculo Artístico Teodora faz um tour pelo mundo do cinema e traz para vocês uma entrevista realizada no rio de Janeiro
e publicada na Revista Portuguesa da Imagem em Movimento, neste ano.
Cinema do exílio Entrevista
com Luiz Alberto Sanz e Lars
Säfström
por Anita Leandro[i]
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Lars Olof Säfström, diretor
e produtor sueco.
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Essa entrevista foi realizada no Rio de Janeiro, em 8 de
dezembro de 2014, quando o cineasta, produtor e distribuidor sueco Lars
Säfström, depois de uma longa ausência, retornou ao Brasil para rever seu amigo
e parceiro, o cineasta brasileiro Luiz Alberto Sanz. Um dos 70 presos trocados
pelo embaixador suíço Giovanni Bucher em 14 de janeiro de 1971, Luiz Alberto
Sanz, como vários outros exilados, teve que deixar o Chile em 1973, depois do
golpe que derrubou o presidente Allende. Sanz pediu refúgio na Suécia e, em
Estocolmo, associou-se à Film Centrum, cooperativa de produção, realização e
distribuição de filmes independentes, criada em 1968 por Lars Säfström e outros
cineastas suecos. Sanz foi contratado como técnico cinematográfico, para
trabalhar na revisão, manutenção, envio e recebimento das cópias dos filmes
distribuídos pela cooperativa. Dessa parceria nasceram vários filmes em
solidariedade à resistência à ditadura brasileira, alguns deles distribuídos na
Suécia, mas que nunca foram lançados comercialmente no Brasil. Dessa produção
faz parte 76 anos, Gregório Bezerra, comunista (1978, 30 minutos), importante
testemunho do combatente comunista pernambucano. De passagem por Estocolmo,
Gregório Bezerra conta para Lars e Sanz a sua história, desde a luta contra a
ditadura de Getúlio Vargas até os suplícios medievais que sofreu após o golpe
militar de 1964, quando foi espancado com um cano de ferro pelo coronel do
Exército Darcy Villocq, queimado com ácido, amarrado pelo pescoço e arrastado
pelas ruas de Recife.
Outro filme importante dessa parceria,
Quando chegar o momento (Dora), documentário de 65 minutos,
realizado por Sanz e Säfström entre 1976 e 1978, acaba de ser legendado em
português, no âmbito de um projeto universitário2
[ii]
. O filme reconstitui a trajetória da militante Maria Auxiliadora Lara
Barcellos (Dora), desde Minas Gerais, onde nasceu, até o suicídio dela na
Alemanha, onde encontrava-se exilada, sem documentos, sob controle policial e
com interdição de sair de Berlim Ocidental. A partir da morte de Dora, três
anos antes da anistia, o filme, com narração e roteiro de Reinaldo Guarany e
Luiz Alberto Sanz, fala das condições de vida dos refugiados brasileiros na
Europa, em particular as mulheres.
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Luiz Alberto Barreto
Leite Sanz, na foto com Anita Leandro
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Luiz Alberto Sanz, carioca, é servidor público aposentado e
jornalista anistiado. Trabalhou como crítico teatral e cinematográfico,
repórter, redator, cineasta, diretor de espetáculos, estivador, arrumador de
cargas, arquivista de filmes e professor universitário, entre outros ofícios.
Em maio de 1970, quando militava na Vanguarda Popular Revolucionária, foi preso
e torturado pela Operação Bandeirantes. Banido do território nacional, viveu no
Chile e na Suécia, retornando ao Brasil em dezembro de 1979, depois da anistia.
Além dos filmes acima citados, realizou, em parceria com Pedro Chaskel, Não é hora de chorar (Chile, 1971, 31
minutos), documentário em que cinco de seus companheiros de exílio, entre eles
Maria Auxiliadora Lara Barcellos, falam sobre a resistência e a tortura no
Brasil. Não é hora de chorar constitui-se, hoje, num documento histórico da
maior importância sobre a ditadura. Trechos da entrevista de Dora nesse filme
foram recentemente utilizados em dois documentários brasileiros sobre o período
militar: 70 (Emília Silveira, 2013, 96 minutos) e Retratos de identificação (Anita Leandro, 2014, 72 minutos). Em
parceria com Sérgio Sanz, seu irmão, Luiz Alberto Sanz coordenou a pesquisa e
roteirizou o filme Soldado de Deus
(Sérgio Sanz, Brasil, 2003). Lars Säfström e Luiz Alberto Sanz não se viam há
exatamente 34 anos, quando rodaram juntos, em São Paulo, um último filme, Vasos Comunicantes (1980), até hoje
inédito no Brasil e na Suécia.
Anita Leandro:
Como vocês se conheceram? Quais foram as circunstâncias políticas e históricas
desse encontro?
Lars Säfström:
Luiz Alberto acabara de chegar a Estocolmo como refugiado, vindo do Chile, e
começou a trabalhar numa organização criada para a distribuição de filmes
independentes, principalmente documentários, a Film Centrum, que ainda existe e
da qual sou membro fundador. Em 1970, ainda se trabalhava com cópias em 16
milímetros. Era preciso enviar os filmes pelos correios e buscá-los também lá,
fazer o controle das cópias... Luiz Alberto trabalhava com isso, quando nos
conhecemos, e nós avaliamos a possibilidade de fazer um filme juntos. Ele já
havia feito um filme no Chile,
Não é hora
de chorar, de que eu gostava. Um dia, Luiz Alberto teve a ideia de fazer um
filme sobre os refugiados brasileiros na Europa, com ênfase na história de uma
jovem, Dora, que havia se suicidado em Berlim em junho de 1976. Nós começamos a
fazer esse filme, buscamos o apoio da televisão sueca e firmamos um acordo com
a emissora. Luiz Alberto escreveu o roteiro desse documentário com Reinaldo
Guarany, companheiro de Dora, e nós fizemos uma grande pesquisa de campo para
poder contar não apenas a história dela, mas também a do Brasil contemporâneo:
como era o país antes do golpe militar e como se deu a história da resistência
à ditadura. Encontramos muito material de arquivo na Suécia e tivemos também a
ajuda do grande cineasta norte-americano Haskell Wexler, que havia feito um
filme no Chile, no início dos anos 70, no qual há varias sequências com Dora.
[iii]
É um filme que explica os engajamentos sociais de Dora. Ela estava concluindo
medicina psiquiátrica e trabalhava com os pobres em Santiago. Depois do golpe
no Chile, em 1973, todos os refugiados brasileiros foram obrigados a fugir para
diferentes países, a maioria para a Argentina. Luiz Alberto foi para a Suécia,
mas Dora e Reinaldo fugiram para Bélgica e França e, de lá, para a Alemanha, em
Berlim Ocidental, onde foram pegos. Podemos dizer isso: eles foram pegos. Era
uma situação frustrante para eles e que levou rapidamente ao suicídio de Dora
num metrô de Berlim.
Leandro: Vocês se
encontraram em que ano, exatamente?
Luiz Alberto Sanz:
1975. Eu já vivia em Estocolmo desde o início de 1974, mas só comecei a
trabalhar em Film Centrum no final de 1975. Eu tinha a esperança de viver em
Portugal, depois do movimento revolucionário. Como tinha contatos com o
Instituto de Cinema Português, iria trabalhar lá, mas no dia 25 de novembro de
1975 houve um golpe militar em Portugal e eu fiquei na Suécia. Surgiu, então, a
possibilidade de trabalhar em Film Centrum, uma cooperativa de cineastas, e eu
comecei em dezembro daquele ano. Em 1974, eu havia estudado na Universidade de
Estocolmo e aprendido o sueco. Em 1976, um amigo meu, companheiro meu de
banimento, que havia sido expulso comigo, cunhado do Guarany, o Jaime Walvitz
Cardoso, me procurou e deu a notícia de que a Dora havia se suicidado. Acho que
foi mulher dele, a Lillian, que falou comigo. O Jaime insistiu para que eu
fizesse um filme sobre a Dora. Eu expliquei que não tinha a menor condição de
fazer um filme, mas que trabalhava numa cooperativa de cineastas e iria buscar
alguém que pudesse fazê-lo. E comecei a falar com as pessoas de Film Centrum.
Lars se interessou. Lars e Staffan Lindqvist, com quem ele tinha uma produtora.
Mas Lars disse pra mim: “Vamos fazê-lo juntos”. Foi mais ou menos o que tinha
acontecido no Chile com Não é hora de chorar, quando o Pedro Chaskell quis
fazer um filme sobre os exilados brasileiros e convidou-me para que eu o
fizesse junto com ele.
Lars e eu começamos a elaborar um projeto. A família
conseguiu de Olof Palme, primeiro ministro da Suécia naquele momento, uma
declaração de que, se Reinaldo Guarany desembarcasse em território sueco,
receberia asilo. Ele não queria mais viver em Berlim. Depois da morte da Dora,
saiu o asilo político para todos os brasileiros na Alemanha, mas ele recusou. A
família conseguiu, então, trazê-lo para Estocolmo. E eu pedi que ele escrevesse
um argumento, uma base para que nós pudéssemos fazer o filme. Nesse meio tempo,
o Lars conseguiu com a TV sueca um financiamento para a pesquisa inicial.
Reinaldo ainda não tinha chegado a Estocolmo quando conseguimos o financiamento
para a pré-produção do filme.
Leandro: Isso foi
no final de 1976, logo depois da morte da Dora...
Sanz: Sim.
Começamos a preparação no inverno de 1976. Aí Lars e eu viajamos para Berlim,
Bochum, Paris e Colônia. Conversamos com um monte de gente, preparando as
filmagens. Reinaldo ficou na Suécia.
Säfström: Luiz
Alberto e eu fizemos a viagem de pesquisa para visitar os lugares e falar com
as pessoas que poderiam nos ajudar a fazer o filme. As filmagens foram na
primavera de 1977, com o diretor de fotografia Staffan Lindqvist, o operador de
som chileno Leonardo Céspedes, que havia trabalhado em Não é hora de chorar, e a produtora Bettan von Horn. Era uma
pequena equipe de cinco pessoas. Nós alugamos um micro-ônibus e começamos a
filmagem de trás pra frente, primeiro em Berlim, onde a Dora estudava medicina
e se matou, depois em Bochum, onde ela aprendera alemão, e, por fim, em Paris,
de onde ela e Reinaldo Guarany haviam saído em 1974, rumo à Alemanha.
"Quando tínhamos financiamento da televisão, utilizávamos esses meios para fazer outros filmes. Era um truque de cineasta subversivo. Fizemos coisas para as quais, de outra forma, ninguém teria dado dinheiro."
Leandro: É a
mesma equipe com a qual vocês fizeram o Gregório
Bezerra?
Säfström:
Praticamente: Luiz Alberto, Staffan, Bettan, Leonardo e eu. Gregório foi mais simples. Foi apenas
uma entrevista que lhe fizemos, quando Gregório
visitou a Suécia. Quando foi?
Sanz: Em 1977. Ele veio para uma comemoração do aniversário do
Partido Comunista Brasileiro, em novembro. Nevava.
Säfström: Era
exótico para os brasileiros.
Leandro: É um
filme interessante, nesse sentido: Gregório Bezerra, com seu sotaque do
Nordeste, um homem enraizado, totalmente brasileiro no seu jeito de falar,
digno, altivo, rodeado de jovens, no meio dessa Europa coberta de neve...
Säfström: Ele
fala do Brasil de antes da guerra, dos anos 30...
Sanz: De antes da
guerra, depois da guerra e do futuro também. Ele imagina o que se passará no
Brasil no futuro.
Säfström: Você se
lembra dessa imagem dos anos 30 que encontramos nos arquivos da televisão
sueca? Foi maravilhoso. Os arquivos da TV sueca são um tesouro. Há muitos
filmes antigos de atualidades, filmes de antes da televisão. São cinejornais
mostrados em salas. Eles guardaram tudo. São mais de trezentos filmes.
Leandro: É desses
arquivos que vêm as imagens retomadas na montagem de Gregório Bezerra?
Sanz: Com exceção
das fotografias, todas as imagens de arquivo do Gregório Bezerra vieram da TV
sueca, inclusive as cenas de um filme do Ruy Santos, chamado Minas Gerais,
feito para o DIP nos anos 40
[iv]
. Esse organismo governamental acabou em 1945 e, ao que tudo indica, o filme
não existe mais no Brasil. Pelo menos, ele não figura na filmografia de Ruy
Santos, nas listas de filmes estabelecidas pelos arquivos brasileiros. Os
pesquisadores que investigam a obra de Ruy Santos desconhecem esse filme.
Säfström: E
porque o filme existe nos arquivos da televisão sueca?
Sanz: Eu creio
que eles estão lá porque o governo brasileiro havia distribuído cópias às
embaixadas, para fazer propaganda...
Säfström: E a
embaixada deu o filme para a televisão... ou para uma companhia de filme, pois
isso aconteceu antes da criação da televisão. A velha companhia de produção
sueca doou à televisão os seus arquivos, tudo o que não era ficção, todo o
material de cine jornais, atualidades. Os filmes de ficção foram doados à
Cinemateca, que não existia antes de 1973, eu acho. Ou seja, o único arquivo,
na época, era o da televisão. Depois, criou-se a Cinemateca Sueca. Hoje eles
têm o filme de Ruy Santos.
Sanz: É o que eu
penso.
Leandro: E as
imagens de Ruy Santos estão no Gregório
Bezerra?
Sanz: Sim. Mas
também estão no filme da Dora.
Säfström: Eu
ainda tenho o material no meu porão, em Estocolmo. Eu vou ver se ainda tenho
esse filme. Se eu tiver essa cópia, eu posso digitalizá-lo e enviá-lo pra vocês.
Leandro: Em 35
mm? Você tem, talvez, a única cópia do mundo. Você poderia doá-la à Cinemateca
Brasileira... Seria uma bela doação.
Säfström: Caso a
cópia exista...
Sanz: É possível
que haja uma cópia no Brasil, mas que não foi catalogada... Nossos arquivos não
são muito bons...
Leandro: Voltemos ao filme da Dora. Vocês
filmaram e, depois, fizeram a montagem juntos também?
"...o Film Centrum era também uma organização política. Nós distribuíamos filmes importantes para a transformação da sociedade, que provocavam o debate político..."
Säfström: Não
muito, porque eu estava mais preocupado em obter a transmissão do filme pela
televisão, em horário nobre. Nessa época, havia dois canais de televisão e esse
filme passou no canal principal, às 8 horas da noite, o melhor horário.
Sanz: O melhor
Ibope, digamos assim, foi nosso. O Canal 2 apresentou uma importante peça de
teatro feminista, no mesmo horário, mas o público preferiu assistir a um filme
sobre uma mulher estrangeira, que se matou em Berlim por razões políticas e
emocionais. O Canal 2 havia feito uma propaganda muito grande pelo fato de ser
uma peça feminista. O público estava cansado daquelas coisas muito marcadas politicamente,
mas acabou vendo algo ainda mais político.
Leandro: Lars, de
onde vem o seu interesse, na época, pelo que acontecia no Brasil?
Säfström: Foi
graças ao encontro com as pessoas exiladas, com o Luiz Alberto... Eu era muito
engajado e o Film Centrum era também uma organização política. Nós
distribuíamos filmes importantes para a transformação da sociedade, que
provocavam o debate político...
Leandro: Era esse
o objetivo do Film Centrum?
Säfström: Sim.
Nós tínhamos também filmes da América Latina, do Chile, Argentina – por
exemplo, Fernando Solanas (La hora de los Hornos, 1968), filmes de Patricio
Guzmán, filmes cubanos e também filmes sobre a luta no Vietnã. Tivemos filmes
do Arquivo Nacional de Cinema do Vietnã do Norte que, depois da guerra, voltou
para Saigon. Para nós, o interesse era a luta política no terceiro mundo.
"Hoje, Film Centrum tornou-se menos político e está mais ligado ao meio ambiente, com distribuição voltada, majoritariamente, para instituições e organizações."
Leandro: Havia
quantos cineastas nessa cooperativa?
Säfström: Muitos. Pode-se dizer que todos
os documentaristas suecos eram membros dessa organização nos anos 70.
Sanz: Nós tínhamos,
inclusive, um filme do Bergman.
Säfström: Nós
tínhamos uma revista, da qual eu era editor, e na qual nós escrevemos coisas
desfavoráveis sobre um amigo de Ingmar Bergman, Harry Schein, chefe do Svenska
Filminstitut (Instituto Sueco de Cinema). Bergman enviou-nos um telegrama colérico,
que começa assim: “Cães do inferno, quero todos os meus filmes de volta”. Eu
acho que depois ele se arrependeu dessa reação infantil. Ele era membro de
nossa cooperativa.
Sanz: Até ele era
membro.
Säfström: Ele fez
filmes documentários sobre a ilha onde morava, no meio do Mar Báltico, uma
espécie de documentário social sobre a situação dos pescadores locais.
Leandro: Voltemos
à produção latino-americana...
Säfström: Havia
cineastas suecos que partiam para o Uruguai, Peru, Chile, para fazer filmes
sobre a resistência. Era uma forma de tornar conhecida, na Suécia, a situação
na América Latina.
Leandro: Em que
ano foi criado o Film Centrum?
Säfström: Em
1968. A cooperativa nasceu no meio do movimento de 68. Hoje, Film Centrum
tornou-se menos político e está mais ligado ao meio ambiente, com distribuição
voltada, majoritariamente, para instituições e organizações. Em 1973, criamos
também uma sala de exibição, chamada Folkets Bio (Cinema do Povo). Para obter o
apoio do Instituto Sueco de Cinema era preciso ter uma distribuição em salas de
cinema. Começamos com uma sala, mas um ano depois já havia uma sala em
Gotemburgo e em outras cidades. Hoje, há seis ou sete salas. Em 1977, nós
passamos a comprar filmes estrangeiros em Cannes e outros grandes festivais,
adquirindo filmes que não tinham distribuição nos canais comerciais. Isso foi
muito importante, pois divulgamos vários cineastas de documentário e ficção
junto ao público sueco. E nós trabalhamos também em colaboração com a
televisão: ela comprava os filmes, nós os projetávamos em sala e, oito meses
depois, o filme passava na televisão.
Sanz: Film
Centrum foi pioneiro na distribuição de vídeo na Suécia.
Leandro: Voltemos
a Dora e Gregório. Esses dois filmes foram distribuídos na Suécia?
Säfström:
Gregório era um filme totalmente independente, que não tinha por objetivo a
distribuição, mas o registro histórico. Quando tínhamos financiamento da
televisão, utilizávamos esses meios para fazer outros filmes. Era um truque de
cineasta subversivo. Fizemos coisas para as quais, de outra forma, ninguém
teria dado dinheiro. Mas era importante constituir uma documentação. É bem
provável que Gregório Bezerra seja, hoje, um filme mais importante do que ele
foi nos anos 1970.
Sanz: Durante os
debates da “Mostra Arquivos da ditadura”, em setembro desse ano, no Rio, eu
disse ao público que pensei
Gregório
Bezerra como um filme para os meus filhos; hoje é para os meus netos. Ele
foi pensado como um filme de arquivo, para o futuro
[v]
.
Säfström: Alguns
filmes são mais importantes como documentos do que como filme mesmo. Gregório pode não ser um grande filme,
mas é um documento importante.
Sanz: Cosme Alves
Neto, que era o curador da Cinemateca do Rio, disse em Leipzig: “
Gregório é sobra de filme, não é bom”.
Ele o comparou com um filme brasileiro sobre os anarquistas, de Lauro Escorel
[vi]
. Mas nós fizemos
Gregório para
documentar; não foi para festivais. Hoje,
Gregório
é mais visto na internet do que o filme sobre os anarquistas.
Säfström: É um
filme de arquivo e, hoje, há um grande interesse pelos filmes de arquivo.
Podemos fazer coisas simples. Quando fazíamos nossos filmes, era preciso fazer
cópias, negativos e era muito caro. Hoje podemos digitalizar, cortar o filme
num computador, é muito fácil. Pode-se fazer muita coisa com material de
arquivo. É um tesouro para os cineastas.
Leandro:
Sobretudo para o cinema político, porque permite retornar ao passado, criar
vínculos com o presente, trabalhar a memória...
Säfström: Permite
explicar porque a situação contemporânea é como ela é. Para compreender a
situação atual, é preciso conhecer a história, o background, o desenvolvimento,
os movimentos... Eu acho que esses filmes e a televisão têm um papel
importante: mostrar a história para que se possa compreender a situação
contemporânea. Na Suécia, hoje, temos um partido de extrema direita, que ganhou
30% dos votos nacionais. É muito importante explicar que esse partido, que é
contra a entrada de refugiados no país, vem do nazifascismo. Ele quer se
apresentar como um partido qualquer, mas é um partido fascista, seus membros
foram nazistas.
"Hoje podemos digitalizar, cortar o filme num computador, é muito fácil. Pode-se fazer muita coisa com material de arquivo. É um tesouro para os cineastas."
Leandro: As
imagens produzidas por Film Centrum nos anos 70 são utilizadas, hoje, na
produção cinematográfica e audiovisual sueca?
Säfström: Não o
suficiente. Eu acho que essas imagens poderiam ser mais bem utilizadas. Eu
compro documentários estrangeiros e vejo que há cada vez mais filmes que
utilizam material de arquivo para explicar a situação de hoje. Nós coproduzimos
agora uma série de filmes, Os novos faraós. De Nasser a Sisi, que conta a
história do Egito, depois dos ingleses, para explicar a situação de hoje. Acho
que é muito importante a pesquisa em arquivos para o filme histórico.
Leandro: Além de Gregório e Dora, vocês fizeram outros filmes juntos?
Säfström: Sim,
nós fizemos um filme para uma série intitulada Suécia 80, uma série de curtas
metragens financiada pelo Instituto Sueco de Cinema. Nós fizemos um filme
juntos que se chama Vasos comunicantes, rodado em São Paulo e na Suécia, para
explicar o deslocamento de mão de obra da Ericsson, grande empresa sueca de
telecomunicações, que transferiu sua fábrica para o Brasil, a fim de reduzir os
gastos salariais. Nós tentamos explicar a situação para um operário de São
Paulo, comparando com a situação na Suécia. É um dos primeiros filmes sobre a
globalização.
"Para compreender a situação atual, é preciso conhecer a história, o background, o desenvolvimento, os movimentos..."
Leandro: Ele foi
feito em que ano?
Säfström: Em
1980. É um filme meio primitivo, pode-se dizer. Mas foi o início de uma
discussão sobre os efeitos negativos da globalização.
Leandro: E ele
foi projetado no Brasil?
Säfström: Não.
Mas eu vou fazer uma cópia para o Luiz Alberto. Ele ainda não viu o filme. Na
Suécia também não foi mostrado.
Sanz: Eu tenho
três filmes que foram censurados pelos produtores: dois sobre a reforma agrária
no Chile e esse outro sobre as relações trabalhistas entre a Suécia e o Brasil.
Quando fizemos os Vasos comunicantes, dizia-se que a segunda cidade sueca era
São Paulo; a primeira era Estocolmo.
Leandro: Os dois
filmes sobre a reforma agrária no Chile também foram feitos com a Film Centrum?
Sanz: Não. No
Chile foi com o Instituto de Capacitación y Información de la Reforma Agraria
de Chile. Em 1971, o poeta Thiago de Mello era o chefe do departamento de
comunicação desse instituto e, quando cheguei ao Chile, ele me convidou para
fazer os filmes.
Leandro: Lars,
quantos filmes você fez?
Säfström: Não
sei, dez, quinze documentários, longas, além de curtas de ficção... Depois eu
passei a produzir. Eu tenho uma empresa de produção. Mas eu comecei a trabalhar
para a televisão, como empregado, responsável pela programação. Hoje eu faço
coproduções de filmes de longa metragem de ficção, telenovelas, mas enquanto
diretor, só fiz documentários.
Sanz: O Lars tem
uma entrevista inédita – uma reportagem que ele iria fazer – sobre o cinema
brasileiro em 1980. Ele havia sido indicado pela TV sueca para selecionar
filmes a serem comprados para um festival de filmes brasileiros na televisão. E
o Lars iria fazer uma reportagem para servir de explicação. Só que a Embrafilme
fez de tudo para não vender filmes pra ele. Não o deixava ver os filmes... Era
a política do Jorge Peregrino. Ele e a moça que trabalhava com ele na época
criaram todas as dificuldades pra gente. Nós queríamos ver documentários
brasileiros e eles apresentavam um documentário do J. Diniz, que não tinha a
menor importância.
Leandro: Era uma
espécie de censura?
Sanz: Eu acho que
sim. E também porque a TV sueca não paga fortunas. Sei lá... Então, o Lars fez
uma entrevista com Nelson Pereira dos Santos durante a realização do filme
sobre Milionário e José Rico, intitulado Na estrada da vida (1983). Lars foi a
São Paulo, na sala de montagem, ele e o Nelson conversavam... Ninguém viu isso,
mas está lá, nos arquivos; é um material para os pesquisadores brasileiros que
se interessarem, pois nunca houve uma entrevista como aquela sobre a realização
do filme sobre Milionário e José Rico...
Leandro: Há
pesquisas universitárias na Suécia sobre Film Centrum?
Säfström: Há um
livro publicado sobre o jubileu do Cinema do Povo, mas sobre Film Centrum,
especificamente, acho que não. Seria interessante... O cineasta Marin Karmitz
foi a Estocolmo com um filme que ele havia feito, Coup sur coup, e nós distribuímos esse filme para ele. Karmitz que,
na época, era um pobre cineasta, hoje é um dos maiores distribuidores. Ele
copiou a ideia de Folkets Bio e reproduziu-a em Paris, com o nome de MK2, com
duas salas, no início, a primeira delas perto da Bastilha. Eu acho que há
muitos cineastas estrangeiros que se inspiraram nessa cooperativa. Eu me lembro
de uma entrevista que fiz com John Cassavetes. Ele fazia mais perguntas do que
eu. Queria saber tudo sobre essa cooperativa, porque ele era muito engajado.
Ele fez filmes comerciais para ganhar dinheiro e poder realizar filmes
independentes. Há vários cineastas que vão a Estocolmo, interessados pelo que
fizemos em Folkets Bio, porque nos anos 1970 nós fomos pioneiros. Nos anos 1970
havia um catálogo de filmes bastante progressista na televisão sueca, com
filmes alemães, de Fassbinder, filmes latino-americanos. E nos anos 1980, tudo
mudou, porque começaram a comprar apenas filmes norte-americanos, feitos para a
televisão. Foi muito triste, pois nos anos 1970 a TV tinha sido uma verdadeira
escola de cinema. Cada semana havia um filme francês, as séries de Godard,
Truffaut, filmes africanos, do festival de Uagadugu... Mas agora...
Leandro: A
primeira sala de Folkets Bio foi em que ano?
Säfström: Em
1973, cinco anos depois da criação de Film Centrum. Podemos dizer que Luiz
Alberto também foi um dos pioneiros da distribuição alternativa sueca.
Entrevista realizada no Rio de Janeiro, a 8 de dezembro de
2014.
_____________________________
Aniki – Revista Portuguesa da Imagem em
Movimento (v.2, n.2 - 2015) -
[i] Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, 22.290-140 Rio de Janeiro,
Brasil. 350
[ii] O
projeto Arquivos da ditadura, coordenado por Anita Leandro (Escola de
Comunicação da UFRJ), legendou e reuniu em DVD três documentários realizados
por Luiz Alberto Sanz no Chile e na Suécia. O DVD, intitulado Três filmes do
exílio, é composto por Não é hora de chorar (Chile, 1971), Quando chegar o
momento (Sué- cia, 1978) e Gregório Bezerra (Suécia, 1978).
[iii] Trata-se
de Brazil: a Report on Torture (Saul Landal e Haskell Wexler, EUA, 1971, 60
minutos).
[iv] Departamento
de Imprensa e Propaganda, criado por Vargas em 1939.
[v] A
mostra Arquivos da ditadura, que aconteceu de 12 a 18 de setembro de 2014 no
Centro Cultural da Justiça Federal, no Rio de Janeiro, reuniu vários filmes
realizados por ex-presos políticos, com uma homenagem especial à obra de Luiz
Alberto Sanz.
[vi] 6
Libertários (Lauro Escorel, Brasil, 1976, 30 minutos, 16 mm).