Nesta semana resgatamos uma aula lá de 1984... mas como boas palavras nunca envelhecem, tiramo-las do baú de memórias e as publicamos para que sejam relidas por atores, estudantes de artes, curiosos etc.
* Esta foi a aula inaugural da Cal (Casa
das Artes de Laranjeiras), no Rio de Janeiro (RJ), em 12 de março de 1984.
Reproduzida de uma apostila do autor.
Recado aos jovens da CAL
Rubens Corrêa
Fui convidado para conversar
com vocês sobre o ator. Sei que muitos aqui jamais representaram e outros
deram apenas os primeiros passos neste caminho labiríntico que é o mundo da
interpretação. É uma tarefa que exige de mim sensibilidade e coragem;
acho uma grande responsabilidade falar aos jovens e é com muita emoção e
prazer que passo adiante as humildes sementes do meu trabalho artístico, com a
esperança de que alguma utilidade possa ser encontrada nelas e que, de alguma
maneira, elas possam lhes tornar a caminhada menos solitária e mais solidária,
na medida em que esta receita muito pessoal provoque dúvidas e reconsiderações, ou toque o sagrado dentro de cada um de vocês, ou reacenda aquela esperança
cega que Prometeu garantiu ser a conquista mais urgente para a sobrevivência do
homem neste planeta.
O grande poeta e dramaturgo alemão Büchner escreveu numa cena de sua peça "Woyseck": "Cada ser humano é um abismo e a gente tem vertigens quando se debruça sobre um deles."
Acho que nós atores somos
duplamente esse abismo-espelho: como seres humanos e como artistas. Nossa
missão é provocar vertigem e o revisionamento do abismo dentro de cada
espectador, para que depois de cada mergulho em nossos personagens-propostas
essas pessoas pensem, se emocionem, compreendam e amem com nova e maior
intensidade.
Eu, Rubens Corrêa, ator e
artista de teatro, vinte e oito anos de profissão, e séculos e mais séculos de
um longo período não sei onde, ofereço a vocês com apaixonada humildade o meu
aprendizado nesta caminhada em cima das brasas sem se queimar, que é a condição
necessária para poder representar e viver com algum significado neste nosso
bizarro país sul-americano.
(...)
O CÁLICE
Representar para mim é a possibilidade que me foi dada de me comunicar com o meu semelhante através de uma troca de idéias, imagens, palavras, gestos e emoções. Um divertido, fascinante, e muitas vezes cruel jogo que mistura ficção e realidade, consciente e inconsciente, sagrado e profano, amor e ódio, vida e morte. Uma Paixão.
Através dos anos venho
elaborando em cima das tábuas o meu trabalho, tentando sempre o difícil
equilíbrio entre as conquistas técnicas e a simplicidade da execução.
Aqueles instantes, todas as noites em que represento um papel, são sempre os
melhores momentos do meu dia. Isso quer dizer que levo para o palco meus
sentimentos, minha idéia, minhas alegrias, meus abismos, meu horror e minha
luz. Diariamente filtro essas emoções através das necessidades de cada
personagem e recebo de volta para mim mesmo uma nova compreensão de meus
problemas - e acrescento ao personagem um novo enriquecimento conseguido
"à quente", quer dizer, arrancado de dentro de mim mesmo.
Com o correr dos anos fui
aprendendo a me observar como artista e ser humano e fui tentando aproveitar
em meus desenhos interpretativos a linguagem interior de minha vivência
pessoal, para conseguir, assim, essa difícil união entre arte e vida, que foi
sempre a minha grande aspiração.
Sempre acreditei que cada ator
traz consigo um material fantástico, inimitável e único, muito difícil de ser
conservado e desenvolvido nesta nossa era brutalizada e massificada.
É um cálice de cristal
interior, que deve ser preservado e defendido através de muitos terremotos,
muita contrariedade, muita decepção e sensação de abandono, mas com momentos
também de enorme luminosidade que quando acontecem recompensam o artista e
engrandecem o ser humano.
Cada ator é único e inimitável se ele mergulha com honestidade em si mesmo, e retrata o seu semelhante com generosidade, verdade e paixão. "Somos feitos da essência com que os sonhos são feitos" escreveu Shakespeare, e essa é a melhor definição que conheço sobre o mistério da representação.
O CAVALO
Cada ator tem obrigação de
zelar e desenvolver o seu instrumental – sua voz, seu corpo: seu cavalo.
Devemos transformar nosso corpo num grande arquivo de imagens com
possibilidades de serem utilizadas em nossos futuros personagens. Nossa voz
deve poder miar, rugir, gemer, uivar. Nossas mãos podem ser galhos de árvores,
garras de feras, folhas secas ao vento. Nossos pés, colunas de um templo,
patas de animais. Nossos olhos devem poder reproduzir o enigma do olhar
da esfinge, e a clareza cristalina de um poema de Brecht.
E mais, devemos nos preparar
para poder receber com artística mediunidade a alma do mundo, as grandes
interrogações do nosso tempo, a voracidade deste universo em constante
transformação.
Devemos ser suficientemente fortes para poder reproduzir simultaneamente a maravilha e o horror do ser humano, a criatividade e a autodestrutividade de nós todos, homens, através desta difícil caminhada da vida.
O nosso cavalo deve então se
preparar para poder assumir todas estas formas, e por isso ele tem de ser
constantemente reabastecido e renovado.
O cavalo é também o
estimulador de nossa energia, o conservador de nosso entusiasmo e de nossa fé. Quando as crises vierem (e não tenham dúvida de que elas virão), nada melhor do
que trabalhar na fortificação do cavalo, porque no mínimo estaremos crescendo
durante a crise, estaremos trabalhando e temperando novas energias, adquirindo
novas técnicas, novos conhecimentos. Podem ter certeza de que um bom
cavalo torna o ator indestrutível.
O FOGO
O fogo através do tempo
sempre foi o símbolo vivo da fé, do entusiasmo e da rebeldia. Mantê-lo aceso
dentro de nós é também um trabalho para a vida inteira. O fogo nasce de
um estado de curiosidade natural e instintivo e pode ser desenvolvido através
da conquista progressiva de uma cultura geral, de uma observação apaixonada da
história do homem, da história de todas as artes, da emocionante história do
teatro – e um profundo sentimento de observação do ser humano – aqueles para
quem realizaremos nossas mágicas, o nosso público. Esse fogo interno, uma
espécie de grande rol central de energia e fé, é uma grande defesa contra a
acomodação e me parece ser a grande mola propulsora da criatividade. Devemos
estar sempre atentos aos seus chamados e é preciso não deixar nunca, custe o
que custar, esse fogo esmorecer porque, caso isso aconteça, seremos os
artífices de uma arte morta, sonâmbula, inútil, feia e resignada.
O MENINO
A recuperação da liberdade da
infância através da vida adulta foi sempre uma das minhas metas. A criança é
uma fonte incrível de informação artística e a criança que nós fomos, recuperada através do nosso lado lúdico tão atrofiado pelo correr dos anos, pode nos servir de guia, mas um guia muito especial, que caminha alegre e
despreocupado, que sabe descobrir o mágico dentro do cotidiano, intuitivamente.
Um grande exemplo da presença
do menino dentro de um artista está na figura e na obra do pintor Pablo
Picasso. "Eu não procuro, eu acho" afirmava o grande
pintor. E essa fala denuncia o menino que Picasso levava dentro de si,
que pintava cerâmica usando como base para o desenho a espinha do peixe que
tinha comido no almoço, ou fazia fantástica escultura aproveitando uma roda
velha e quebrada de uma bicicleta encontrada na estrada durante seu passeio
matinal. O menino traz alegria e descompromisso racional para o trabalho
artístico. No Passeio Público do Rio de Janeiro tem um menino-anjo
esculpido num bebedouro (se não me engano de Mestre Valentim) com a seguinte
legenda: "Sou útil, inda brincando". Essa é a lei e a
sabedoria dos meninos.
Acho que preservando o cálice, domando o cavalo, estimulando o fogo e soltando o menino, o artista está preparado para viver e criar uma vida bela e uma obra útil para a coletividade.
Rubens Alves Corrêa - Ator e diretor. Sua interpretação traz elementos peculiares aos princípios enunciados por Antonin Artaud, privilegiando personagens de alta densidade dramática, fora das convenções realistas ou das comédias ligeiras. Constrói o Teatro Ipanema onde, tendo Ivan de Albuquerque como parceiro e sócio, desempenha a maior parte dos papéis de sua carreira e procura refletir as questões da arte e da sociedade contemporâneas.
Forma-se como ator n'O Tablado em 1958, cursando, também, direção na Escola de Dulcina de Moraes, na Fundação Brasileira de Teatro (FBT), ao lado de Ivan de Albuquerque, Yan Michalski e Cláudio Corrêa e Castro. Associa-se a Ivan, com quem funda o Teatro do Rio onde, em 1959, estréia profissionalmente como ator e diretor e realiza em média três espetáculos por ano.
Trabalhou com nomes como Ziembinski, Klauss Vianna, José Wilker
Ganhou alguns prêmios, entre eles o Prêmio Moliére de melhor ator, em 1963, Prêmio Governador do Estado (SP) de melhor ator em 1967, os prêmios Estácio de Sá e Golfinho de Ouro de melhor ator e o Prêmio Shell de melhor ator, em 1993.
Estudioso em particular da obra de Jung, extrai desse conhecimento parte da peculiaridade de seu estilo de interpretação. Embora reconhecido como diretor pela qualidade de alguns espetáculos, é como ator que deixa sua marca no teatro.
Rubens Côrrea faleceu em 22 de janeiro de 1996.
Querendo saber mais sobre Rubens Côrrea, consulte o site:
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