sexta-feira, 18 de setembro de 2015

O TREINAMENTO, UM ANTEPARO


J. R. Faleiro no espetáculo URANO QUER MUDAR,
montagem do Círculo Artístico Teodora

Nesta semana o Círculo publica um texto do Farid Paya sobre o treinamento do ator, traduzido pelo nosso querido colega José Ronaldo Faleiro. 

Farid Paya é um dramaturgo e diretor francês, de origem iraniana, por parte de pai. 
Paya fala sobre a necessidade do treinamento do ator e descontroe a ideia de um trabalho baseado apenas na inspiração e no "dom".
Faleiro é Professor, Doutor, Pesquisador no Departamento de Artes Cênicas do Ceart/Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina) e em seu Programa de Pós-Graduação, atualmente empreende uma pesquisa sobre Jacques Copeau, de cuja obra é tradutor. Participa da linha de pesquisa Linguagens Poéticas. Está interessado nas questões referentes à formação ator, principalmente dos inícios do século XX até os dias de hoje, e na tradução de textos de referência sobre o ator.



O Treinamento, um anteparo

Tradução de José Ronaldo Faleiro

Farid Paya dirige o Théâtre du Lierre [Teatro da Hera], fundado por ele em 1980, no 13º distrito de Paris. A identidade artística do local se baseia na idéia de uma aproximação das escritas dramáticas e musicais contemporâneas. Palavra, canto, música, dança se interpenetram em ciclos monumentais como a tetralogia Le Sang des Labdacides [O Sangue dos Labdacidas]. Recompensada com vários prêmios, esse afresco edipiano demonstrou todo o interesse das técnicas vocais desenvolvidas no Théâtre du Lierre [Teatro da Hera].

"Não há ato artístico sem consciência artística."

Farid Paya


Os teatros tradicionais do Oriente são codificados. O ator deve adquirir os códigos físicos que se ligam a um estilo de interpretação. Assim, um ator nô começará a sua aprendizagem com a idade de sete anos. Como o músico, vai precisar praticar um treinamento rigoroso para chegar ao domínio da sua arte. Esse treinamento é físico, pois o instrumento do ator é o seu organismo, quer dizer: a sua própria pessoa, na melhor relação corpo-espírito. Portanto, as primeiras perguntas a formular em matéria de treinamento são as do conhecimento do organismo e da sua utilização. No Ocidente, várias idéias impedem a abordagem corporal do trabalho do ator.

A modernidade estilhaçou os estilos de interpretação. O ator sabe que terá de se submeter a demandas muito contraditórias vindas de encenadores diversos. Ora, o treinamento não é necessariamente neutro. Ele vai levar a um estilo reconhecível. O ator pode ter medo de já não poder se amalgamar com outros estilos.

A sociedade ocidental desvaloriza o corpo. A relação permissiva em relação à nudez não significa, de modo algum, a sua plena aceitação. Os corpos ideais alardeados nas publicidades transmitem uma mensagem sorrateira: o corpo de cada um é feio. Nós todos temos um ódio secreto do nosso corpo; portanto, do corpo do outro. A rejeição da organicidade é ainda mais favorecida por causa disso.

O realismo e o cinema fizeram estragos. Partindo do princípio de que cada um sabe caminhar e falar, parece possível utilizar apenas as aquisições do quotidiano para exercer a arte do ator. Parece inútil compreender melhor o seu organismo para atuar. A partir daí, o ator tem grandes dificuldades em transpor o ato quotidiano para convertê-lo em arte. A ausência de conhecimento do movimento e da sua poética pode levá-lo seja para formalizações abstratas e inorgânicas, seja para o que Jacques Lecoq denuncia ao falar de «rejeu du réel» [re-jogo do real]1, a saber: para uma imitação do que se faz na vida.

Além do mais, o ensino do teatro é essencialmente baseado na interpretação, um procedimento mais intelectual do que orgânico. Acaba por espoliar o ator de seu instrumento de trabalho, o seu corpo. Assim, os atores conhecem pouco ou absolutamente nada de todo o seu organismo e não sabem nem o manter nem o treinar.

Propor um trabalho concreto sobre a matéria do corpo

Para o ator contemporâneo, a dificuldade é saber qual é o treinamento que não o contém num estilo e, ao mesmo tempo, faz com que ele conheça o próprio corpo. Tomemos os exemplos da caminhada e da palavra.

Caminhar não é evidente. O movimento obedece a leis: por exemplo, a da ação e da reação. Para se mover melhor, é preciso conhecer essas leis de um ponto de vista orgânico. A caminhada é uma operação complexa que envolve todo o corpo. Na vida corrente, não caminhamos necessariamente bem. Não é desejável transpor esse defeito para a cena. Pedir a um ator para caminhar num palco tomando consciência dos mecanismos da sua caminhada é sempre uma experiência interessante. Muitas vezes ele se torna desajeitado e parece ter esquecido como caminhar! A caminhada é uma sucessão de estados de equilíbrio e de desequilíbrio. Ela nos põe em relação com o espaço e a sua própria qualidade modula a percepção do espaço no ator e no espectador. É essencial ter consciência, por exemplo, das próprias costas e do espaço produzido atrás de si ao caminhar. Não há ato artístico sem consciência artística. No palco, um ator deve reaprender a caminhar com uma acuidade que não é a do quotidiano. Existem muitas maneiras de caminhar. Os atores orientais sabem disso. A caminhada do fantasma ou a de uma jovem não é a de um guerreiro ou a de um demônio.

Falar também não é evidente. É preciso mobilizar músculos. A voz é antes de tudo músculo: diafragma, cordas vocais, períneo, etc. Pode ser espantoso ver como muitos atores têm um movimento de nojo quando são lembrados disso. Para eles, um ideal desmorona. A voz, essa coisa sublime e imaterial, cai na realidade da matéria. Somos, aqui, confrontados com a atitude «romântica» do ator sem técnica que acredita bem mais na inspiração do que num trabalho concreto sobre a matéria do seu corpo. No entanto, para falar em cena é útil ter consciência dos apoios fundamentais da voz que ficam bem longe da boca: a base no solo, o assoalho pélvico, a saber: a parte mais baixa do abdômen situada entre o sexo e o ânus.

"o ator, como no esportista, o metabolismo é mais ativo"

A caminhada e a palavra se apóiam na respiração. Respirar é um ato essencial. Sem respiração não há vida. O problema é que ao crescer desaprendemos a respirar corretamente. Com isso, reduzimos a nossa potência vital. Nós nos privamos de uma alavanca essencial à execução de atos artísticos aparentemente tão simples quanto caminhar ou falar. A partir desses dois exemplos — caminhada e palavra —, vemos que há todo um trabalho a ser realizado para passar do ato quotidiano ao ato artístico. Assim, é instrutivo e útil trabalhar com o desequilíbrio máximo da caminhada, correr o risco de cair, brincar de já não saber caminhar, refazer um percurso partindo da infância para tomar consciência dos apoios do corpo em movimento, compreender a importância da planta do pé, dos joelhos, da repartição do peso do corpo ao longo da coluna vertebral, da base dos quadris, etc. Trata-se de adequar o espírito e o corpo, o pensamento e o movimento, e isso de modo orgânico. É um erro a dissociação corpo-espírito que as nossas sociedades operaram: cientificamente, o cérebro se comunica por meio do sistema nervoso com o resto do organismo. Existe um vaivém constante entre a atividade corporal e a atividade cerebral. Saber caminhar e saber pensar estão bem mais próximos do que gostaríamos de acreditar.


Construir a emoção com bases orgânicas

O equilíbrio dinâmico do pensamento e do movimento dá ao ator a plena posse dos seus recursos artísticos. A imobilidade é um engodo: tudo se move. O movimento não pode ser concebido sem referência à energia. A matéria e a energia são as duas únicas realidades do universo. Assim, falar da energia do ator não diz respeito a uma metáfora. A energia de um organismo é a soma de várias formas de energia em transmutação permanente: energia calórica (calor), cinética (movimento), elétrica (influxo nervoso), química (combustão dos alimentos), etc. A energia do ator difere da energia de um organismo no quotidiano. Essa qualidade de energia permite «proezas emocionais». Tomemos, por exemplo, as quatro emoções primordiais, violentas e inatas, que se diferenciam no bebê entre os três e os quatro anos. São a cólera, o medo, a alegria e a tristeza. Na criança e no adulto, quando essas emoções são levadas ao paroxismo, provocam movimentos incontrolados e erráticos. Em cena, um ator é levado a usar essas emoções primordiais, mas de maneira estruturada. Como? No ator, como no esportista, o metabolismo é mais ativo: secreções hormonais mais fortes, trocas energéticas mais intensas e múltiplas. Foi demonstrado que quanto mais uma estrutura — no caso, o corpo humano — é a sede de interações energéticas múltiplas, tanto mais ela é dinamicamente estável. Em outras palavras: quanto mais a energia do ator estiver elevada, tanto mais as emoções e as pulsões chegarão a encontrar uma forma estruturada. O ator ainda terá de conseguir dominar essas modificações do metabolismo.

"É indispensável, por exemplo, a consciência dos apoios no solo ou a do diafragma."

O corpo tem zonas em que podemos atuar para produzir estados de energia e de consciência particulares, úteis para a atividade artística. É indispensável, por exemplo, a consciência dos apoios no solo ou a do diafragma. A tradição da ioga indica que existem sete pontos, chamados chakras (do sânscrito «roda»), repartidos ao longo da coluna vertebral e da cabeça, ativando o metabolismo. Esses pontos associam complexos nervosos (espaços de cruzamentos de nervos) e glândulas endócrinas (como a tireóide ou a vesícula biliar). São alavancas energéticas e afetivas. «Toda emoção tem bases orgânicas», dizia Artaud, reclamando uma abordagem científica e poética do corpo. Os chakras são uma resposta. Mas também é preciso se dedicar a conhecê-los, e a se exercitar em ativar quotidianamente essas alavancas afetivas. Isso pode ser uma das bases de um treinamento do ator que evolui e se modula conforme estiver fora de produção, em estado de ensaio, ou em representação. No Lierre [Hera], procuramos técnicas de treinamento em consonância com as leis orgânicas do corpo, que não estejam alienadas em relação a um estilo cultural. Trabalhamos, nestes últimos anos, com seqüências físicas chamadas «protocolos», que envolvem de preferência o que há de universal no corpo humano. Essas seqüências são operatórias, sejam quais forem as origens do ator. Elas estruturam o seu espaço psíquico, físico e emocional.


Aquecer-se, treinar

"O aquecimento é um ato higiênico, assim como escovar os dentes. Trata-se de despertar o corpo, de lhe dar força muscular."

Para além da aprendizagem, existe, portanto, o trabalho, necessário, de manutenção do organismo. O aquecimento é um ato higiênico, assim como escovar os dentes. Trata-se de despertar o corpo, de lhe dar força muscular. É tarefa de cada ator, conforme as necessidades do seu organismo. Em compensação, o treinamento, que alguns chamam de training, é uma atividade física diretamente teatral, pois cada ato deve ser constantemente relacionado com três instâncias: a relação com os outros, com o espaço, e com a emoção. Reside aí um penhor de organicidade e de receptividade. Sem explicar direito, constata-se que tal atitude minimiza muitíssimo os perigos psíquicos e físicos a que o ator se expõe.

Assim, no Lierre, o treinamento não é uma condição prévia separada da produção. Os exercícios praticados no treinamento são usados para ensaiar o espetáculo. Nunca temos em vista um espetáculo sem um treinamento. O treinamento deve estar de acordo com o propósito e a estética do espetáculo. O trabalho do texto nunca começa «à mesa». Ele é imediatamente assumido pelo corpo. A abordagem física permite encarnar o texto com bastante rapidez. De literatura, o texto se torna palavra. É só nesse momento que se discute a encenação. É claro: uma dramaturgia serve de filtro para evitar os contra-sensos. No entanto, os «protocolos» físicos estruturam o corpo do ator, a sua relação com os outros e com o espaço. Na encenação final, muitos movimentos são reabsorvidos. Contudo, graças à memória do corpo, o texto e o jogo conservam o rastro das ações físicas que guiaram o trabalho. É fascinante ver como, no final, a platéia percebe movimento num corpo imóvel. Reside aí algo indizível: o corpo comunica o movimento que o atravessou durante os ensaios. A imobilidade deixa, então, de ser uma atitude congelada.

"É fascinante ver como, no final, a platéia percebe movimento num corpo imóvel. [...] A imobilidade deixa, então, de ser uma atitude congelada."

O treinamento, uma segurança
Quando se procura a incandescência num ator, pede-se que ele corra muitos riscos psíquicos. Assumir plenamente frases como «já não ser», na última tirada de Édipo Rei, não é um ato neutro. Também se pede que ele corra riscos físicos, por exemplo, colocando a voz entre canto e palavra. A voz precisa segurar: não deve fraquejar. Tudo isso requer um domínio dos instrumentos psíquicos e físicos. Se há frases que nos levam rumo a abismos de nós mesmos, há também posturas do corpo que despertam uma memória arcaica muito perturbadora. Lembro de uma atriz que, durante um estágio, se debulhou em lágrimas ao tomar consciência da retidão da sua coluna vertebral. Lágrimas de alegria, por certo, mas associadas a uma grande reviravolta: uma nova tomada de consciência do seu organismo. O corpo e o espírito devem suportar receber tais estímulos sem que o ator seja posto em perigo. Diante do perigo do papel, existe o ator que recusa se envolver e se torna enfadonho, mas existe também aquele que investe de cabeça baixa e se machuca. 

O treinamento é uma segurança. Digo repetidas vezes aos atores: «Vão até o cume do Mont Blanc, mas nunca esqueçam dos calçados, dos anoraques, e das cordas. Sem isso, é morte certa!»
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1 «Rejeu»: Jacques Lecoq foi um leitor de Marcel Jousse. Para este, existe uma diferença entre imitação e mimismo. O animal imita; só o ser humano é capaz de mimar. O mimismo é uma atividade humana espontânea. — « (...) a criança que olha o trem passar (...) imita espontaneamente o movimento e o som do trem.(...) Uma criança visita um castelo; de volta a casa, constrói um castelo com seus cubos de armar (...) se uma criança estiver doente e tiver de absorver remédios, vai procurar a sua boneca: esta também deverá ingerir remédios. Em todos esses casos, a criança vive uma situação e a reproduz de um modo ou de outro sem que ninguém lhe tenha pedido para fazer isso. — Vemos, à luz desses exemplos, que o mimismo compreende duas fases: uma fase que Jousse chama de a intussepção (de suscipio, receber, e dentro), que é a fase da gravação; e uma fase de rejeu [re-jogo, reinterpretação], pois o que é gravado ou intussuscepcionado tende a ser reproduzido, refeito, expresso: rejoué [re-jogado, re-apresentado, representado]» (FROMENT, Marie-Françoise. L´enfant-mimeur. L´anthropologie de Marcel Jousse et la pédagogie [A criança-que-mima. A Antropologia de Marcel Jousse e a Pedagogia]. Paris: Épi, 1978. p. 25. — Nota de JRF.



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PAYA, Farid. «L´entraînement, un garde-fou» [O Treinamento, um anteparo], p. 151-159, in MÜLLER, Carol (coord.). Le Training de l´acteur [O Treinamento do ator]. Paris/Arles: Conservatoire National Supérieur d´Art Dramatic (CNSAD)/Actes Sud, 2000. — Tradução de José Ronaldo FALEIRO.

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