LE BRETON, David. «Conclusion. Anthropologie du corps
en scène» [Conclusão. Antropologia do corpo em cena], p. 189-204, in BARBA, Eugenio et
alii. Le Training de l´acteur [O
Treinamento do Ator]. Obra coordenada por Carol Müller. Paris/Arles:
Conservatoire National Supérieur d´Art Dramatique (CNSAD)/Actes Sud, 2000. —
Tradução de José Ronaldo FALEIRO.
David
L Breton é sociólogo e antropólogo. É professor na Universidade das Ciências
Humanas de Estrasburgo ― II. É autor de muitas obras sobre o corpo. Entre elas,
Anthropologie du corps et modernité
[Antropologia do Corpo e Modernidade]. Paris: PUF, 2000; Du silence [Do Silêncio]. Paris: Métailié, 1997; Anthropologie de la douleur [Antropologia
da Dor]. Paris: Métailié, 1995; L´Adieu au corps [O Adeus ao Corpo].
Paris: Métailié, 1999. Escreveu sobre o corpo do ator principalmente em Les Passions ordinaires. Anthropologie des émotions [As Paixões Ordinárias. Antropologia das emoções].
Paris: Armand Colin, 1998.
Antropologia do corpo em cena
Sou sincero
quando jogo.
ANDRÉ GIDE
Da comédia do mundo ao teatro
Numa entrevista
concedida a Le Monde [O Mundo] (7-8 de abril de 1985), o ator Michel
BouquetA explica que comer bem ou beber bem
são situações difíceis de conseguir em cena. A embriaguez deixa ao ator uma
margem de manobra mais saliente do que se tiver de se alimentar durante a
representação. Houve grandes beberrões no teatro, mas poucos grandes comilões:
«O fato de que um gesto se desencadeie com tal velocidade e não com tal outra,
se um copo for bebido rápido demais, se não se refletiu sobre a maneira de o
olhar antes, tudo se verá, tudo trará a prova de que não é totalmente crível.
Pois já não se trata de uma intenção ou de um sentimento, mas da verdade de um
gesto». De que verdade se trata? A resposta é relativa. A verdade de um gesto
ou da expressão de uma emoção é característica de uma cultura e de uma dramaturgia,
e não de uma natureza. Quer se trate, aqui, de comportamento adquirido, de
frutos de uma educação ou de uma intenção, essa é justamente a própria condição
da formação do ator e de sua atuação em cena.
"[...] só existe uma biologia das paixões porque existe uma cultura das paixões."
O homem é vinculado
ao mundo por um tecido permanente de emoções e de sentimentos. É tocado pelos
acontecimentos ininterruptamente. Para o senso comum, a afetividade parece
primeiramente um jardim secreto em que se cristaliza uma interioridade da qual
nasceria uma espontaneidade sem falha. Contudo, apesar de se oferecer com as
cores da sinceridade e da particularidade individual, ela é, sempre, a emanação
de determinado meio humano e de um universo social de valores. As emoções que
passam através de nós, e a maneira como repercutem em nós, se alimentam de
normas coletivas implícitas, em orientações de comportamento que cada um
expressa conforme o seu estilo, conforme a sua apropriação pessoal da cultura e
dos valores que o banham. A emoção não é, em nada, natural, biológica, ou
hormonal. Ou antes: só existe uma biologia das paixões porque existe uma
cultura das paixões. E estas não são substâncias transponíveis de um indivíduo
ou de um grupo para outro. Não se trata de processos fisiológicos independentes
do homem, mas de relações. Embora disponha do mesmo aparelho fonador, o
conjunto dos homens do planeta não fala necessariamente a mesma língua. A
emergência das emoções, a intensidade delas, a modalidade de utilização que
possuem, o seu grau de incidência nos outros, respondem a estímulos coletivos suscetíveis
de variar segundo os públicos e a personalidade das pessoas solicitadas. O
desvio antropológico lembra o caráter socialmente construído dos estados
afetivos (inclusive dos mais ardentes), e das manifestações destes[1].
Modulação social da emoção
A cultura afetiva não
é, porém, uma capa de chumbo que pesa sobre o indivíduo: é um modo de usar, uma
sugestão que responde a circunstâncias particulares, não se impõe como uma
fatalidade mecânica. O indivíduo pode «brincar» com a expressão de seus estados
afetivos, sentindo-se, por exemplo, excessivamente afastado daqueles que seriam
socialmente adequados. Ele se aborrece na festa organizada em sua honra, ele se
sente desligado dos amigos; não sente nenhuma dor com a morte de uma pessoa
próxima, etc. O indivíduo sabe que não corresponde às expectativas. Se der
importância a isso, então enganará por meio de uma bricolagemB pessoal. Mobilizará os signos
esperados para não perturbar ou decepcionar o público. Às vezes existe vantagem
em sugerir um sentimento, ainda que não seja sentido, por desejo de
conformidade, por preservação da imagem de si, por estratégia pessoal, para
ganhar os favores de alguém, para não se descobrir, para não perder a sua
reputação, para não ferir o outro, etc. Prodigalizando os signos aparentes de
uma emoção que não sente, o indivíduo constrói uma personagem para si mesmo. Um
estado afetivo experimentado pode ser expresso, mas também dissimulado,
nuançado, exacerbado, etc. Não sentido, pode ser fingido. A expressão do
sentimento é, então, uma encenação que varia conforme os públicos e conforme o
que está em jogo.
"[...]os espectadores escutam primeiro com os olhos. "
Com efeito, todo
homem dispõe da faculdade de representar um papel brincando com os signos que
anunciam aos outros uma significação cujo alcance ele controla cuidadosamente. O
jogo em cena é pensável porque, antes de tudo, o teatro está na vida social. O
paradoxo do ator é o paradoxo da simbólica corporal, é o prolongamento da
latitude própria ao homem de testemunhar para os outros as únicas significações
que ele quer dar a eles. Quando se baseia nas manifestações físicas adequadas,
a sinceridade é acessível à penetração psicológica com dificuldade. É um efeito
de encenação. O assassino reveste muitas vezes os adornos do homem de bem. A
aparência é justamente a cena proposta pelo homem comum à leitura dos seus
parceiros. A arte do ator explora essa jazida de signos, torna-os um jogo de
escrita que apregoa o estado moral da sua personagem. O corpo se torna
narrativa, carrega o sentido do desempenho compartilhado igualmente com a palavra.
Segundo Bernstein, «há uma verdade que todos os autores dramáticos conhecem: os
espectadores escutam primeiro com os olhos. Constatamos que um ator pode, por
um lapso, dizer exatamente o contrário do texto, sem que o público saiba; este
continua a ler o nosso pensamento nos movimentos e no rosto do intérprete».
"[...] só existe uma biologia das paixões porque existe uma cultura das paixões."
Modulação social da emoção
A cultura afetiva não
é, porém, uma capa de chumbo que pesa sobre o indivíduo: é um modo de usar, uma
sugestão que responde a circunstâncias particulares, não se impõe como uma
fatalidade mecânica. O indivíduo pode «brincar» com a expressão de seus estados
afetivos, sentindo-se, por exemplo, excessivamente afastado daqueles que seriam
socialmente adequados. Ele se aborrece na festa organizada em sua honra, ele se
sente desligado dos amigos; não sente nenhuma dor com a morte de uma pessoa
próxima, etc. O indivíduo sabe que não corresponde às expectativas. Se der
importância a isso, então enganará por meio de uma bricolagemB pessoal. Mobilizará os signos
esperados para não perturbar ou decepcionar o público. Às vezes existe vantagem
em sugerir um sentimento, ainda que não seja sentido, por desejo de
conformidade, por preservação da imagem de si, por estratégia pessoal, para
ganhar os favores de alguém, para não se descobrir, para não perder a sua
reputação, para não ferir o outro, etc. Prodigalizando os signos aparentes de
uma emoção que não sente, o indivíduo constrói uma personagem para si mesmo. Um
estado afetivo experimentado pode ser expresso, mas também dissimulado,
nuançado, exacerbado, etc. Não sentido, pode ser fingido. A expressão do
sentimento é, então, uma encenação que varia conforme os públicos e conforme o
que está em jogo.
"[...]os espectadores escutam primeiro com os olhos. "
O teatro como laboratório das paixões
A cena do teatro é um laboratório cultural em que as paixões
ordinárias desvendam a sua contingência social, em que se mostram na forma de
uma partitura de signos físicos que o público reconhece imediatamente como
tendo sentido. O ator dá ao público a impressão de viver pela primeira vez os
acontecimentos aos quais é confrontado, ainda que a peça esteja em cartaz há
semanas. Dissipa a sua pessoa na personagem, mesmo se os críticos não se cansam
de comparar um com o outro, e de avaliar os diferentes desempenhos que eles
conhecem em relação ao mesmo papel. O ator não se confunde, porém, com a sua
personagem: ele a interpreta, quer dizer, concede generosamente ao público os
signos que estabelecem a inteligibilidade do papel. Ele representa, quer dizer:
introduz uma distância lúdica entre as paixões solicitadas pelo seu papel e
pelas suas próprias, trabalha como artesão, no seu corpo, para repelir a sua afetividade
de pessoa singular, para dar todas as oportunidades às emoções da sua
personagem. Aos olhos do público, ele ensina uma crença em seu papel graças ao
trabalho de elaboração que forneceu, auxiliado pelo encenador. Mas a
transmutação só é possível por as paixões não se constituírem como natureza,
mas serem características de uma construção social e cultural, e se expressarem
num jogo de signos que o homem sempre tem a possibilidade de desenvolver, até
se não os sentir.
"O ator toca simbolicamente o instrumento de trabalho que é o próprio corpo. Faz com que dele brotem as formas imaginárias, extraindo do fundo comum signos que compartilha com o público. "
O ator brinca com um teclado de emoções. Ele se vê chorando,
ou afundando no desespero, ou rindo às gargalhadas. Ainda que apresente a
tortura do ciúme para ler, Orson Welles não é Otelo; aliás, todas as noites ele
deve satisfazer as exigências do seu papel. Quando cai o pano, a personagem se
despede da pessoa. Antígona não percorre os necrotérios à procura de defuntos a
quem dar uma sepultura decente. O ator toca simbolicamente o instrumento de
trabalho que é o próprio corpo. Faz com que dele brotem as formas imaginárias,
extraindo do fundo comum signos que compartilha com o público. O seu talento
consiste no suplemento que suscita pela sua personalidade própria, pela sua
aptidão em conseguir a adesão da platéia. Não se trata de reproduzir um texto,
mas de o encarnar, de o tornar vivo aos olhos da platéia. Ser um Otelo crível,
com esse acréscimo sutil na interpretação que marca um momento importante e
lembra que o ator é um artista e não um simples reprodutor.
"Há mil coisas que um ator faz com muita facilidade na vida [...] e tem dificuldade em realizar no palco em condições fictícias, porque, como ser humano, não está equipado para simplesmente brincar de imitar a vida [...]"
Arvorar os signos adequados não basta se eles não derem
aparência da vida real. O papel não é uma série de fórmulas prontas para serem
declinadas, mas uma elaboração pessoal e significativa sobre uma trama comum à
qual ele acrescenta uma originalidade própria, quer dizer, uma composição. A
tarefa não é encarnar um tipo ― um soldado, por exemplo ―, mas fazer com que
viva um soldado singular, de carne e osso, com uma psicologia que se afasta do
ator para ter vida própria. Tal desdobramento é uma arte, a experiência comum
mostra dificuldade em aderir a uma construção imaginária. «Há mil coisas que um
ator faz com muita facilidade na vida», diz Strasberg, «e tem dificuldade em
realizar no palco em condições fictícias, porque, como ser humano, não está
equipado para simplesmente brincar de imitar a vida: tem que acreditar nisso,
de certo modo, e ser capaz de se convencer da exatidão daquilo que faz; caso
contrário, não poderá se doar a fundo em cena»[2]. E
esse trabalho do ator não é uma aquisição para todo o sempre, no
desenvolvimento da personagem: cada representação implica retomar a matéria-prima
do papel para apropriar-se dela novamente, no contexto sempre mutável da
afetividade que se desprende da vida pessoal.
O ator é um intérprete, como se diz de um músico; a sua
criação consiste em tornar crível a ficção do seu papel, aos olhos dos
espectadores.
O
teatro ou a dança expõem o corpo do ator à apreciação do público. A sua própria
pessoa é o material da criação, dedicada à plasticidade dos papéis, à
pluralidade afetiva que lhe outorgam a cena e a expectativa do público. O ator
é um profissional da duplicidade. Torna o ofício e o talento dele a faculdade
de se afastar dos próprios sentimentos e de enganar graças ao uso apropriado de
signos. Daí provém a fórmula de Antonin Artaud, considerando-o um «atleta
afetivo», um homem capaz de endossar sem transição, e sem relação com o seu
sentir próprio, as aparências exteriores das emoções ou dos sentimentos
requeridos pelo papel, depois de ter experimentado diferentes versões dele. A
estrutura antropológica do teatro consiste nesse privilégio, próprio do homem,
de brincar com os signos para torná-los ativos, ainda que ele só acredite nisso
pela metade. A sinceridade é apenas um artifício de encenação, uma arte de se
apresentar judiciosamente ao julgamento do outro, deixando que este veja aquilo
que ele está totalmente pronto para tornar crível.
Mímesis
deslocada
" O ator é homem do dispêndio, do trabalho sobre si, que se opõe, nesse sentido, ao homem comum, o qual não está adstrito à composição e se contenta preguiçosamente em ser ele mesmo. "
Jacques Lecoq
Se não houver ruptura radical no jogo dos signos entre o
palco e a platéia, nem por isso dizer «Eu te amo» a um colega em cena ou dizer
isso em outro lugar significará totalmente a mesma coisa para a atriz. Ela não
é a cópia daquilo que ela é em sua existência. Na verdade, a «reinterpretação
do real»C denunciada por Jacques Lecoq é
dificilmente sustentável em cena, pois o corpo do teatro não é o corpo da vida
quotidiana. O teatro exige uma transposição, não é algo «natural» posto debaixo
da lupa, mas uma criação que desvia ludicamente signos sociais. A sua evidência
depende da elaboração de um cálculo, de uma seleção entre as possibilidades
expressivas da sociedade e as da dramaturgia. O ator não conseguiria ir ao
encontro delas ou ignorá-las, pois a partir daí o seu desempenho se tornaria
ininteligível aos olhos do público. Até num mero plano prático (acústica,
visibilidade, etc.), a cena de teatro não é a da vida corrente. Na tradição
ocidental, a arte do ator é uma mímesis deslocada, retoma os gestos do
quotidiano, mas num contexto em que a profundidade do vínculo social perdeu
toda consistência em proveito de um modo de comunicação3.
"O ator que interessou o espectador ou o comoveu está cansado porque não poupou as suas energias, e é por isso que recebe agradecimentos."
Os mesmos signos servem de ambos os lados da cena, mas no
palco eles são utilizados unicamente em torno da necessidade do espetáculo, e,
portanto, ficam desenraizados em relação à sua afetividade quotidiana. Na vida
quotidiana, os movimentos do corpo se inscrevem na evidência da relação com o
mundo. Em cena, o ator está submetido a outra definição de suas maneiras de
ser, de comer, de beber, de falar, de bocejar, de caminhar, etc. Estas estão
deslocadas, ao mesmo tempo em que se baseiam nos ritos sociais da palavra e do
corpo, trata-se de gestos submetidos às modulações do espaço cênico e da
dramaturgia. Esse jogo implica uma tensão pessoal. Barba explica que as
técnicas «extracotidianas» (as do teatro, principalmente) se fundam num
desperdício de energia. A esse respeito, cita uma fórmula japonesa para saudar
o ator: otsukaresama, que significa
«estás cansado»: «O ator que interessou o espectador ou o comoveu está cansado
porque não poupou as suas energias, e é por isso que recebe agradecimentos»4. O ator é homem do dispêndio, do
trabalho sobre si, que se opõe, nesse sentido, ao homem comum, o qual não está
adstrito à composição e se contenta preguiçosamente em ser ele mesmo. Barba
simboliza as técnicas extraquotidianas pela qualidade de presença de um ator
que contém a sua energia e vibra com ela a ponto de o seu corpo ser
teatralmente vivo embora, naquele momento, não ocupe o centro da cena, embora
permaneça imóvel. «É sem dúvida por isso que as supostas ‘contracenas’ se
tornaram as grandes cenas de muitos atores famosos: ali, obrigados a não agir,
a permanecer afastados, enquanto os outros representavam a ação principal,
estes eram capazes de absorver em movimentos quase imperceptíveis as forças de
ações que lhes eram negadas, por assim dizer. É justamente naqueles casos que o
seu bios emergia com uma força particular e impressionava o espírito do
espectador»5.
Para fabricar a sua personagem, Stanislavski pede que o ator
mergulhe inteiramente numa situação afetiva da mesma ordem e que encontre as
suas sensações através da memória revisitada de acontecimentos vividos a fim de
os transmutar em cena com uma sinceridade «deslocada», de certo modo. Lee
Strasberg, no Actor´s Studio, radicaliza o mesmo princípio: «A memória afetiva
não é a simples memória, é uma memória que compromete o ator pessoalmente de modo
que experiências profundamente enraizadas começam a reagir. O seu instrumento
desperta e se torna capaz, em cena, de recriar aquele modo de viver que é
essencialmente ‘reviver’. A experiência emocional original pode ter relação com
o ciúme, com o ódio ou com o amor; isso pode ser uma doença ou um acidente...
Se o espírito de alguém não lembrar imediatamente esse tipo de experiência,
geralmente será sinal de que essa experiência foi feita mas ficou enterrada no
inconsciente e não gosta de ser tirada daí»6.
Trata-se então de suprimir a distância em relação ao jogo, que nem sequer a
espessura de um fio de cabelo altere as fontes da emoção, correndo para isso o
risco de alimentá-las com uma matriz pessoal sem nenhum vínculo com a intriga.
Um trabalho de imaginação dramática e de reminiscências cria a força de
expressão do ator. Lee Strasberg leva até o fim a constatação sociológica. A
prova consiste em fazer com que uma emoção pessoal entre na ação de uma
personagem imaginária mantendo o controle dos dois segmentos de si.
Treinamento do ator
"Além do emprego da palavra, a arte do ator se fundamenta no caráter ritual do rosto e do corpo, da postura, dos deslocamentos, ou da respiração."
A duplicidade é a própria condição da arte do ator, que muda
por completo a cada noite, profissionalmente, durante meses, o semblante da sua
personagem, sem considerar os seus próprios sentimentos. A qualidade do jogo
implica a distância e a escrita simbólica sobre o corpo. Diderot tem razão em
denunciar a facticidadeD da
sensibilidade como princípio do desempenho. Assim como o escritor não é uma
natureza que exprime a sua verdade no papel, mas um inventor de palavras submetido
a uma necessidade de coerência e de expressão, assim também o ator é um
inventor de emoções que não existem em estado bruto, mas que ele modela com o
seu talento próprio, rindo de signos expressivos socialmente reconhecíveis. Ele
desenvolve um conhecimento preciso das utilizações rituais da palavra e do
corpo nas diferentes circunstâncias da vida social. A sociologia do corpo não
tem segredos para ele. «Nesse homem» ― diz ainda Diderot ― «preciso de um
espectador frio e tranqüilo; conseqüentemente, exijo dele perspicácia e nenhuma
sensibilidade, a arte de tudo imitar, ou, o que dá no mesmo, uma aptidão igual
em todos os tipos de caracteres e de papéis»7.
Além do emprego da palavra, a arte do ator se fundamenta no
caráter ritual do rosto e do corpo, da postura, dos deslocamentos, ou da
respiração. Ele não poderia modificar-lhe os costumes sem romper a significação
do espetáculo. A menos que este seja baseado na opinião preconcebida ― na
dramaturgia de Brecht, por exemplo ― de fazer com que o ator represente a
contracorrente das convenções expressivas. Provocar a atitude crítica do
espectador, para Brecht, é romper a adesão emotiva que o liga às personagens.
Se assumir o seu papel com distância, espanto, contradição, em princípio o ator
quebra, destruirá os mecanismos de identificação, ou pelo menos uma entrada
demasiado incisiva no imaginário da peça. Mas a vontade de distanciamento só
funciona por se apoiar numa ordem ritual de uso do corpo. São possíveis outras
concepções do jogo do ator: pode-se cortar radicalmente a palavra das
manifestações corporais que costumeiramente a sustentam, estilizar os gestos e
as mímicas, etc. Em Akropolis, por
exemplo, Grotowski pede ao ator para compor uma máscara de desespero, de
sofrimento, de indiferença, etc., tendo de permanecer assim durante toda a
representação, enquanto o corpo continua a se mexer em função das
circunstâncias8. Grotowski rompe a
fronteira simbólica entre cena e sala, mistura atores e espectadores numa
relação muito física. Sem que este o saiba, inclui o público no cenário, o
transforma em figurante, projetando cada um fora da inocência. Do mesmo modo o
teatro da crueldade de Artaud visa a provocar o transe do espectador, assimila
o ator a um supliciado e a representação a uma zona de difusão da peste. Outro
exemplo, bem diferente: Dario Fo torna o próprio corpo uma cena inteira com o
seu palco de atores, representa vários papéis ao mesmo tempo, passa de um
registro a outro, comenta a ação antes de se tornar uma das personagens, depois
outra, etc.9
"Durante a carreira, o ator é submetido a cenas materialmente diferentes, exigindo um desempenho físico variável, uma flexibilidade em se adaptar e em se harmonizar com o ambiente técnico."
De um modo ou de outro, todas essas concepções do jogo do
ator se apóiam numa expressividade comum, quando mais não fosse na vontade de
rompê-la para provocar o espanto, a interrogação, ou afirmar uma visão
particular do mundo. Durante a carreira, o ator é submetido a cenas
materialmente diferentes, exigindo um desempenho físico variável, uma
flexibilidade em se adaptar e em se harmonizar com o ambiente técnico. Ele
entra igualmente em dramaturgias múltiplas. A sua arte consiste em fazer do
próprio corpo um material modulável. O treinamento do ator, que provém da
dança, dos exercícios cênicos da ginástica, da prática das máscaras, etc., visa
a nutrir nele um melhor conhecimento do seu instrumento. Ritualmente suprimido
da vida quotidiana, muitas vezes «esquecido», o corpo está, aqui, no cerne do
procedimento de formação, de treinamento ou de posta em condições.
"De fato, o teatro exige fôlego."
Com as suas diversas formas, o training visa a ampliar as competências físicas e morais do ator, a
lhe dar desembaraço dos movimentos necessários a seus diversos papéis. Tal
treinamento para a cena não é menos necessário do que o do esportista. Louis
Jouvet dizia que as suas aulas no Conservatório visavam a que os seus jovens
alunos «aprendessem a respirar»10. De fato, o teatro exige fôlego. O training é uma abertura para o mundo,
uma descoberta da plasticidade de si no trabalho de criação dramática, visa a
aprender a se despojar de si para acolher o outro sob as mil figuras que ele
pode revestir ao sabor das criações. Há uma inteligência do corpo como há uma
corporeidade do pensamento. O training
e o trabalho do ator têm por base esse princípio.
Os exercícios visam a suscitar uma distância em relação aos
códigos que geralmente regem o corpo no decorrer dos rituais do quotidiano.
Descondicionamento metódico, desnudamento do simbólico que impregna cada gesto,
cada mímica, cada movimento, cada palavra, e autoriza a representação de si na
cena social. A partir desse desapego de si, da ruptura lúcida das evidências de
comportamento, o ator é devolvido a todos os possíveis da cena. O training bem pensado é um exercício de
sociologia (ou de antropologia) prática, um desvio para pensar em si mesmo como
outro, a fim de deslizar, a seguir, para uma alteridade desejada, que é a
própria essência do trabalho do ator. Experimentar os vínculos ou as distâncias
entre a palavra e a simbólica corporal, as maneiras de subverter a palavra pelo
corpo ou o contrário, a fim de dar à atuação uma envergadura suplementar,
aprender a brincar com códigos para os restituir com sutileza ou inventar
outros.
Nas justificativas do training,
muitas vezes encontramos argumentos que desarmam o antropólogo: o homem não
saberia respirar, caminhar, se mover, usar o corpo; haveria uma distância
nefasta entre a palavra e o corpo, etc. Em suma: o corpo seria um «objeto»
imperfeito, a ser remanejado, a ser modelado de outro modo, sob o magistério de
um professor da verdade, que sabe11. Mistura ruim, a ser corrigida para dar
a ele, enfim, uma forma conveniente. O corpo não está desprendido do homem a
tal ponto que um repertório de receitas possa fazer com que funcione sozinho
como uma matéria a ser modelada. O dualismo é uma retórica cômoda da vida
corrente, uma maneira de se tornar compreendido simplificando as coisas, mas na
existência não há um corpo e um espírito separados, nem sequer reunidos, e sim
um homem que sonha, sem dúvida, em ser às vezes puro espírito, mas nem por isso
deixa de ser ― para o que der e vier ― um ser de carne e osso. «Formatação»,
mais do que «formação», para retomar Alexandre Del PerugiaE, o training se inscreve então num discurso da verdade, e não numa
caminhada, quer dizer: num debate íntimo com o sentido, produzindo apenas
formulações provisórias e dando ao ator principalmente uma aptidão pessoal de
reagir em qualquer situação. Esse fantasma do autocontrole ou do controle sobre
o outro explica, sem dúvida, o sucesso atual do training e a multiplicação das escolas. Vontade de mudar a si mesmo
― não mudando a própria história ou a própria existência, mas graças a uma técnica,
a uma disciplina. Espera mágica de um domínio melhor de si mesmo e da própria
existência. O teatro não deve ter professores da verdade, mas professores do
sentido, quer dizer: referentes que desaparecem com a revelação do outro.
Eugenio
Barba tem razão ao dizer que não são os exercícios em si que formam o ator,
«mas a temperatura do processo», quer dizer o clima relacional, a qualidade de
presença do responsável, o grau de adesão do grupo, o comprometimento pessoal
do ator, o seu desejo de mudar, de se conhecer, a sua preocupação com aceder a
outra versão de si mesmo. Os exercícios são apenas suportes, desenham a pista
em que se lançar, mas não o valor do salto que, em última análise, cabe apenas
ao próprio ator. O treinamento é uma técnica, um meio, e não um fim: não basta
rezar para crer. A singularidade do ator sempre tem a última palavra. A
realização rigorosa dos exercícios pode resultar apenas numa realização pobre
se lhe faltar talento, ou seja: num modo único de se haver com as técnicas. Os meios
só valem o que vale o artesão; exigem dele um suplemento de criação. E o
talento não tem receitas aplicáveis em todas as circunstâncias. O training dá à luz o que já estava no
ator e só pedia para se revelar. Antes de tudo, ele acompanha um indivíduo ativo
em seu proceder. Antes de formar um ator, ele deve formar um homem.
LE BRETON, David.
«Conclusion. Anthropologie du corps en scène» [Conclusão. Antropologia do corpo em cena], p. 189-204, in BARBA,
Eugenio et alii. Le Training de l´acteur [O Treinamento do Ator].
Obra coordenada por Carol Müller. Paris/Arles: Conservatoire National Supérieur
d´Art Dramatique (CNSAD)/Actes Sud, 2000. — Tradução de José Ronaldo FALEIRO.
A Michel Bouquet nasceu em Paris,
em 1925. Iniciou sua carreira em 1944. Em 1946, interpretou o papel de Cipião
em Calígula, de Albert Camus (com
Gérard Philippe no papel-título). Bouquet interpreta tanto Strindberg, como Beckett
, Pinter, Diderot e Molière, que ele considera o autor mais exigente e
misterioso de todos. Faz cinema e televisão. É um dos atores preferidos de
Claude Chabrol. Professor muito apreciado pelos alunos, aconselha a estes:
sejam curiosos como crianças, tenham premonições às vezes e, sempre, trabalhem
muito. «A personagem sempre merece ser cortejada incessantemente... Ser ator é
acumular as dificuldades para se livrar delas». V. André Sallée. Les acteurs français
[Os Atores Franceses]. Paris: Bordas, 1988. p. 87. (N. T.)
[1]
Cf. David Le Breton. Les
Passions ordinaires. Anthropologie des émotions [As Paixões Ordinárias. Antropologia das
Emoções]. Paris: Armand Colin,
1998.
B Talvez
se pudesse traduzir o vocábulo por «remendo», «arranjo», «conserto», «quebra-galho».
Proveniente do francês bricolage, a
palavra está dicionarizada em português e designa um «trabalho ou conjunto de
trabalhos manuais ou de artesanato doméstico» (FERREIRA, Aurélio Buarque de
Holanda. Novo Dicionário Aurélio de
Língua Portuguesa. 3ª ed. Curitiba: Positivo, 2004. p. 328). HOUAISS (Dicionário eletrônico Houaiss da língua
portuguesa 3.0) se refere ao termo como uma «montagem
ou instalação (de qualquer coisa), feita por pessoa não especializada» ou uma «execução de
trabalhos ou reparos caseiros fáceis (p.ex., de carpintaria), por alguém não
especializado em tal coisa», ou, ainda — em
sentido figurado — como uma «montagem ou
combinação (de elementos diversos)». (N. T.).
[2]
Lee Strasberg. Le Travail de l´Actor´s Studio [O Trabalho do
Actor´s Studio]. Paris:
Gallimard, 1969. p. 81. [Do mesmo autor, pode-se consultar, em português, Um Sonho de Paixão. O desenvolvimento do
Método. Texto original editorado por Evangeline Morphos. Tradução de Anna
Zelma Campos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. (N. T.).]
C No texto, «rejeu du réel»
[«re-jogo do real», «re-apresentação do real», «re-atua(tualiza)ção do real»].
Jacques Lecoq foi um leitor de Marcel Jousse. Para este, existe uma diferença
entre «imitação» e «mimismo». O animal imita; só o ser humano é capaz de mimar.
O mimismo é uma atividade humana espontânea. — « (...) a criança que olha o
trem passar (...) imita espontaneamente o movimento e o som do trem.(...) Uma
criança visita um castelo; de volta a
casa, constrói um castelo com seus cubos de armar (...) se uma criança
estiver doente e tiver de absorver remédios, vai procurar a sua boneca: esta
também deverá ingerir remédios. Em todos esses casos, a criança vive uma
situação e a reproduz de um modo ou de outro sem que ninguém lhe tenha pedido
para fazer isso. — Vemos, à luz desses exemplos, que o mimismo compreende duas
fases: uma fase que Jousse chama de intussepção
(de suscipio, receber, e dentro), que é a fase da gravação; e uma
fase de rejeu [rejogo, re-atuação],
pois o que é gravado ou intussuscepcionado tende a ser reproduzido, refeito,
expresso: rejoué [re-jogado,
re-apresentado, re-presentado, re-atua(liza)do]» (FROMENT, Marie-Françoise. L´enfant-mimeur. L´anthropologie de Marcel
Jousse et la pédagogie [A
criança-que-mima. A Antropologia de Marcel Jousse e a Pedagogia]. Paris: Épi, 1978. p. 25. (N.
T.)
3
David Le Breton. Les Passions ordinaires
[As Paixões Ordinárias]. Op. cit.
cap. VII.
4
E. Barba. «Anthropologie théâtrale» [Antropologia Teatral], in L´Anatomie de
l´acteur. Un dictionnaire d´anthropologie théâtrale
[A Anatomia do Ator. Um Dicionário de Antropologia Teatral]. Bouffonneries,
1985. p. 6. [Na edição brasileira, este passo foi assim traduzido: «Os atores
que interessaram e comoveram seus espectadores ficam cansados porque não
economizaram sua energia. E por isso se agradece a eles». V. BARBA, Eugenio
& SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator. Dicionário de
Antropologia Teatral. Tradução de Luís Otávio Burnier (supervisor), Carlos
Roberto Simioni, Ricardo Puccetti, Hitoshi Nomura, Márcia Strazzacappa, Walesca
Silverberg, André Telles (colaborador). São Paulo: Hucitec/Unicamp, 1995. p. 9.
(N. T.).]
5
Ibid. p. 13.
6
L. Strasberg. Op. cit. p. 111.
D «Filos.
Caráter próprio da condição humana pelo qual cada homem se encontra sempre já
comprometido com uma situação não escolhida» (FERREIRA, Aurélio Buarque de
Holanda. Op.cit. p. 865). V. também
ABBAGNANO, Nicola. Diccionario de
filosofía. 8ª reimpresión. México: Fondo de Cultura Econômica, 1991. p.
518. Houaiss (Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 3.0) traz os
seguintes sentidos para o vocábulo: (1) «qualidade do
que é factual, do que se relaciona aos fatos»;
(2) na filosofia de Heidegger, trata-se de «situação
característica da existência humana que, lançada ao mundo, está submetida às
injunções e necessidades dos fatos»; (3) por
extensão de sentido, «no existencialismo
sartriano, conjunto de circunstâncias factuais cuja absoluta contingência
dissolve as verdades e as fundamentações ordinárias para a existência humana, o
que termina por conduzi-la à liberdade» (N.
T.)
7 D. Diderot. Le paradoxe du comédien [O Paradoxo do Ator]. Paris: Garnier-Flammarion, 1987. p. 127-128.
8
J. Grotowski. Vers un théâtre
pauvre [Para um Teatro Pobre]. Op.
cit. p. 68. [«No teatro pobre, o
ator deve compor uma máscara orgânica, através dos seus músculos faciais;
depois, a personagem usará a mesma expressão, através da peça inteira. Enquanto
todo o corpo se move de acordo com as circunstâncias, a máscara permanece estática,
numa expressão de desespero, sofrimento ou indiferença» (id. Em Busca de um Teatro
Pobre. Tradução de Aldomar Conrado. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1987. p. 59. — id. Towards a poor theatre. Preface by Peter Brook. Holstebro:
Odin Teatrets Forlag., 1968. p. 77: «In the poor theatre the actor must
himself compose an organic mask of his facial muscles and thus each character
wears the same grimace throughout the whole play. While the entire body moves in accordance with the
circumstances, the mask remains set in an expression of despair, suffering and
indifference» . — Nota
do Tradutor.]
9 Dario Fo. Le Gai Savoir de l´acteur [literalmente, O Gaio Saber do Ator].
Paris: L´Arche, 1990. [No Brasil, a mesma obra foi traduzida por Manual Mínimo do Ator. Org. de Franca
Rame. Tradução de Lucas Baldovino e Carlos David Szlak. São Paulo: SENAC São
Paulo, 1998. — O título original é Manuale
minimo dell´attore. — Sobre o autor e Franca Rame, ler VENEZIANO, Neyde. A cena de Dario Fo. O Exercício da
Imaginação. São Paulo: Códex, 2002. — Nota do Tradutor.]
1 0 Louis Jouvet. Le Comédien désincarné [O Ator Desencarnado]. Paris: Flammarion,
1954. p. 20. [Há tradução em português do Brasil de Berenice Raulino. (N. T.)]
1 1
Sobre esse ódio implícito do corpo, remetemos à nossa obra L´Adieu au corps [O Adeus ao Corpo]. Paris: Métailié, 1999.
E V.
PERUGIA, Alexandre Del. «Les règles du jeu» [As Regras do Jogo], p. 137-143, in
BARBA, Eugenio et alii. Le Training de l´acteur [O Treinamento do
Ator]. Obra coordenada por Carol Müller. Paris/Arles: Conservatoire National Supérieur
d´Art Dramatique (CNSAD)/Actes Sud, 2000. (N. T.)
A cena do teatro é um laboratório cultural em que as paixões
ordinárias desvendam a sua contingência social, em que se mostram na forma de
uma partitura de signos físicos que o público reconhece imediatamente como
tendo sentido. O ator dá ao público a impressão de viver pela primeira vez os
acontecimentos aos quais é confrontado, ainda que a peça esteja em cartaz há
semanas. Dissipa a sua pessoa na personagem, mesmo se os críticos não se cansam
de comparar um com o outro, e de avaliar os diferentes desempenhos que eles
conhecem em relação ao mesmo papel. O ator não se confunde, porém, com a sua
personagem: ele a interpreta, quer dizer, concede generosamente ao público os
signos que estabelecem a inteligibilidade do papel. Ele representa, quer dizer:
introduz uma distância lúdica entre as paixões solicitadas pelo seu papel e
pelas suas próprias, trabalha como artesão, no seu corpo, para repelir a sua afetividade
de pessoa singular, para dar todas as oportunidades às emoções da sua
personagem. Aos olhos do público, ele ensina uma crença em seu papel graças ao
trabalho de elaboração que forneceu, auxiliado pelo encenador. Mas a
transmutação só é possível por as paixões não se constituírem como natureza,
mas serem características de uma construção social e cultural, e se expressarem
num jogo de signos que o homem sempre tem a possibilidade de desenvolver, até
se não os sentir.
"O ator toca simbolicamente o instrumento de trabalho que é o próprio corpo. Faz com que dele brotem as formas imaginárias, extraindo do fundo comum signos que compartilha com o público. "
O ator brinca com um teclado de emoções. Ele se vê chorando,
ou afundando no desespero, ou rindo às gargalhadas. Ainda que apresente a
tortura do ciúme para ler, Orson Welles não é Otelo; aliás, todas as noites ele
deve satisfazer as exigências do seu papel. Quando cai o pano, a personagem se
despede da pessoa. Antígona não percorre os necrotérios à procura de defuntos a
quem dar uma sepultura decente. O ator toca simbolicamente o instrumento de
trabalho que é o próprio corpo. Faz com que dele brotem as formas imaginárias,
extraindo do fundo comum signos que compartilha com o público. O seu talento
consiste no suplemento que suscita pela sua personalidade própria, pela sua
aptidão em conseguir a adesão da platéia. Não se trata de reproduzir um texto,
mas de o encarnar, de o tornar vivo aos olhos da platéia. Ser um Otelo crível,
com esse acréscimo sutil na interpretação que marca um momento importante e
lembra que o ator é um artista e não um simples reprodutor.
"Há mil coisas que um ator faz com muita facilidade na vida [...] e tem dificuldade em realizar no palco em condições fictícias, porque, como ser humano, não está equipado para simplesmente brincar de imitar a vida [...]"
Arvorar os signos adequados não basta se eles não derem
aparência da vida real. O papel não é uma série de fórmulas prontas para serem
declinadas, mas uma elaboração pessoal e significativa sobre uma trama comum à
qual ele acrescenta uma originalidade própria, quer dizer, uma composição. A
tarefa não é encarnar um tipo ― um soldado, por exemplo ―, mas fazer com que
viva um soldado singular, de carne e osso, com uma psicologia que se afasta do
ator para ter vida própria. Tal desdobramento é uma arte, a experiência comum
mostra dificuldade em aderir a uma construção imaginária. «Há mil coisas que um
ator faz com muita facilidade na vida», diz Strasberg, «e tem dificuldade em
realizar no palco em condições fictícias, porque, como ser humano, não está
equipado para simplesmente brincar de imitar a vida: tem que acreditar nisso,
de certo modo, e ser capaz de se convencer da exatidão daquilo que faz; caso
contrário, não poderá se doar a fundo em cena»[2]. E
esse trabalho do ator não é uma aquisição para todo o sempre, no
desenvolvimento da personagem: cada representação implica retomar a matéria-prima
do papel para apropriar-se dela novamente, no contexto sempre mutável da
afetividade que se desprende da vida pessoal.
O ator é um intérprete, como se diz de um músico; a sua
criação consiste em tornar crível a ficção do seu papel, aos olhos dos
espectadores.
O
teatro ou a dança expõem o corpo do ator à apreciação do público. A sua própria
pessoa é o material da criação, dedicada à plasticidade dos papéis, à
pluralidade afetiva que lhe outorgam a cena e a expectativa do público. O ator
é um profissional da duplicidade. Torna o ofício e o talento dele a faculdade
de se afastar dos próprios sentimentos e de enganar graças ao uso apropriado de
signos. Daí provém a fórmula de Antonin Artaud, considerando-o um «atleta
afetivo», um homem capaz de endossar sem transição, e sem relação com o seu
sentir próprio, as aparências exteriores das emoções ou dos sentimentos
requeridos pelo papel, depois de ter experimentado diferentes versões dele. A
estrutura antropológica do teatro consiste nesse privilégio, próprio do homem,
de brincar com os signos para torná-los ativos, ainda que ele só acredite nisso
pela metade. A sinceridade é apenas um artifício de encenação, uma arte de se
apresentar judiciosamente ao julgamento do outro, deixando que este veja aquilo
que ele está totalmente pronto para tornar crível.
Mímesis deslocada
" O ator é homem do dispêndio, do trabalho sobre si, que se opõe, nesse sentido, ao homem comum, o qual não está adstrito à composição e se contenta preguiçosamente em ser ele mesmo. "
Jacques Lecoq |
Se não houver ruptura radical no jogo dos signos entre o
palco e a platéia, nem por isso dizer «Eu te amo» a um colega em cena ou dizer
isso em outro lugar significará totalmente a mesma coisa para a atriz. Ela não
é a cópia daquilo que ela é em sua existência. Na verdade, a «reinterpretação
do real»C denunciada por Jacques Lecoq é
dificilmente sustentável em cena, pois o corpo do teatro não é o corpo da vida
quotidiana. O teatro exige uma transposição, não é algo «natural» posto debaixo
da lupa, mas uma criação que desvia ludicamente signos sociais. A sua evidência
depende da elaboração de um cálculo, de uma seleção entre as possibilidades
expressivas da sociedade e as da dramaturgia. O ator não conseguiria ir ao
encontro delas ou ignorá-las, pois a partir daí o seu desempenho se tornaria
ininteligível aos olhos do público. Até num mero plano prático (acústica,
visibilidade, etc.), a cena de teatro não é a da vida corrente. Na tradição
ocidental, a arte do ator é uma mímesis deslocada, retoma os gestos do
quotidiano, mas num contexto em que a profundidade do vínculo social perdeu
toda consistência em proveito de um modo de comunicação3.
"O ator que interessou o espectador ou o comoveu está cansado porque não poupou as suas energias, e é por isso que recebe agradecimentos."
Os mesmos signos servem de ambos os lados da cena, mas no
palco eles são utilizados unicamente em torno da necessidade do espetáculo, e,
portanto, ficam desenraizados em relação à sua afetividade quotidiana. Na vida
quotidiana, os movimentos do corpo se inscrevem na evidência da relação com o
mundo. Em cena, o ator está submetido a outra definição de suas maneiras de
ser, de comer, de beber, de falar, de bocejar, de caminhar, etc. Estas estão
deslocadas, ao mesmo tempo em que se baseiam nos ritos sociais da palavra e do
corpo, trata-se de gestos submetidos às modulações do espaço cênico e da
dramaturgia. Esse jogo implica uma tensão pessoal. Barba explica que as
técnicas «extracotidianas» (as do teatro, principalmente) se fundam num
desperdício de energia. A esse respeito, cita uma fórmula japonesa para saudar
o ator: otsukaresama, que significa
«estás cansado»: «O ator que interessou o espectador ou o comoveu está cansado
porque não poupou as suas energias, e é por isso que recebe agradecimentos»4. O ator é homem do dispêndio, do
trabalho sobre si, que se opõe, nesse sentido, ao homem comum, o qual não está
adstrito à composição e se contenta preguiçosamente em ser ele mesmo. Barba
simboliza as técnicas extraquotidianas pela qualidade de presença de um ator
que contém a sua energia e vibra com ela a ponto de o seu corpo ser
teatralmente vivo embora, naquele momento, não ocupe o centro da cena, embora
permaneça imóvel. «É sem dúvida por isso que as supostas ‘contracenas’ se
tornaram as grandes cenas de muitos atores famosos: ali, obrigados a não agir,
a permanecer afastados, enquanto os outros representavam a ação principal,
estes eram capazes de absorver em movimentos quase imperceptíveis as forças de
ações que lhes eram negadas, por assim dizer. É justamente naqueles casos que o
seu bios emergia com uma força particular e impressionava o espírito do
espectador»5.
Para fabricar a sua personagem, Stanislavski pede que o ator
mergulhe inteiramente numa situação afetiva da mesma ordem e que encontre as
suas sensações através da memória revisitada de acontecimentos vividos a fim de
os transmutar em cena com uma sinceridade «deslocada», de certo modo. Lee
Strasberg, no Actor´s Studio, radicaliza o mesmo princípio: «A memória afetiva
não é a simples memória, é uma memória que compromete o ator pessoalmente de modo
que experiências profundamente enraizadas começam a reagir. O seu instrumento
desperta e se torna capaz, em cena, de recriar aquele modo de viver que é
essencialmente ‘reviver’. A experiência emocional original pode ter relação com
o ciúme, com o ódio ou com o amor; isso pode ser uma doença ou um acidente...
Se o espírito de alguém não lembrar imediatamente esse tipo de experiência,
geralmente será sinal de que essa experiência foi feita mas ficou enterrada no
inconsciente e não gosta de ser tirada daí»6.
Trata-se então de suprimir a distância em relação ao jogo, que nem sequer a
espessura de um fio de cabelo altere as fontes da emoção, correndo para isso o
risco de alimentá-las com uma matriz pessoal sem nenhum vínculo com a intriga.
Um trabalho de imaginação dramática e de reminiscências cria a força de
expressão do ator. Lee Strasberg leva até o fim a constatação sociológica. A
prova consiste em fazer com que uma emoção pessoal entre na ação de uma
personagem imaginária mantendo o controle dos dois segmentos de si.
Treinamento do ator
"Além do emprego da palavra, a arte do ator se fundamenta no caráter ritual do rosto e do corpo, da postura, dos deslocamentos, ou da respiração."
A duplicidade é a própria condição da arte do ator, que muda
por completo a cada noite, profissionalmente, durante meses, o semblante da sua
personagem, sem considerar os seus próprios sentimentos. A qualidade do jogo
implica a distância e a escrita simbólica sobre o corpo. Diderot tem razão em
denunciar a facticidadeD da
sensibilidade como princípio do desempenho. Assim como o escritor não é uma
natureza que exprime a sua verdade no papel, mas um inventor de palavras submetido
a uma necessidade de coerência e de expressão, assim também o ator é um
inventor de emoções que não existem em estado bruto, mas que ele modela com o
seu talento próprio, rindo de signos expressivos socialmente reconhecíveis. Ele
desenvolve um conhecimento preciso das utilizações rituais da palavra e do
corpo nas diferentes circunstâncias da vida social. A sociologia do corpo não
tem segredos para ele. «Nesse homem» ― diz ainda Diderot ― «preciso de um
espectador frio e tranqüilo; conseqüentemente, exijo dele perspicácia e nenhuma
sensibilidade, a arte de tudo imitar, ou, o que dá no mesmo, uma aptidão igual
em todos os tipos de caracteres e de papéis»7.
Além do emprego da palavra, a arte do ator se fundamenta no
caráter ritual do rosto e do corpo, da postura, dos deslocamentos, ou da
respiração. Ele não poderia modificar-lhe os costumes sem romper a significação
do espetáculo. A menos que este seja baseado na opinião preconcebida ― na
dramaturgia de Brecht, por exemplo ― de fazer com que o ator represente a
contracorrente das convenções expressivas. Provocar a atitude crítica do
espectador, para Brecht, é romper a adesão emotiva que o liga às personagens.
Se assumir o seu papel com distância, espanto, contradição, em princípio o ator
quebra, destruirá os mecanismos de identificação, ou pelo menos uma entrada
demasiado incisiva no imaginário da peça. Mas a vontade de distanciamento só
funciona por se apoiar numa ordem ritual de uso do corpo. São possíveis outras
concepções do jogo do ator: pode-se cortar radicalmente a palavra das
manifestações corporais que costumeiramente a sustentam, estilizar os gestos e
as mímicas, etc. Em Akropolis, por
exemplo, Grotowski pede ao ator para compor uma máscara de desespero, de
sofrimento, de indiferença, etc., tendo de permanecer assim durante toda a
representação, enquanto o corpo continua a se mexer em função das
circunstâncias8. Grotowski rompe a
fronteira simbólica entre cena e sala, mistura atores e espectadores numa
relação muito física. Sem que este o saiba, inclui o público no cenário, o
transforma em figurante, projetando cada um fora da inocência. Do mesmo modo o
teatro da crueldade de Artaud visa a provocar o transe do espectador, assimila
o ator a um supliciado e a representação a uma zona de difusão da peste. Outro
exemplo, bem diferente: Dario Fo torna o próprio corpo uma cena inteira com o
seu palco de atores, representa vários papéis ao mesmo tempo, passa de um
registro a outro, comenta a ação antes de se tornar uma das personagens, depois
outra, etc.9
"Durante a carreira, o ator é submetido a cenas materialmente diferentes, exigindo um desempenho físico variável, uma flexibilidade em se adaptar e em se harmonizar com o ambiente técnico."
De um modo ou de outro, todas essas concepções do jogo do
ator se apóiam numa expressividade comum, quando mais não fosse na vontade de
rompê-la para provocar o espanto, a interrogação, ou afirmar uma visão
particular do mundo. Durante a carreira, o ator é submetido a cenas
materialmente diferentes, exigindo um desempenho físico variável, uma
flexibilidade em se adaptar e em se harmonizar com o ambiente técnico. Ele
entra igualmente em dramaturgias múltiplas. A sua arte consiste em fazer do
próprio corpo um material modulável. O treinamento do ator, que provém da
dança, dos exercícios cênicos da ginástica, da prática das máscaras, etc., visa
a nutrir nele um melhor conhecimento do seu instrumento. Ritualmente suprimido
da vida quotidiana, muitas vezes «esquecido», o corpo está, aqui, no cerne do
procedimento de formação, de treinamento ou de posta em condições.
"De fato, o teatro exige fôlego."
Com as suas diversas formas, o training visa a ampliar as competências físicas e morais do ator, a
lhe dar desembaraço dos movimentos necessários a seus diversos papéis. Tal
treinamento para a cena não é menos necessário do que o do esportista. Louis
Jouvet dizia que as suas aulas no Conservatório visavam a que os seus jovens
alunos «aprendessem a respirar»10. De fato, o teatro exige fôlego. O training é uma abertura para o mundo,
uma descoberta da plasticidade de si no trabalho de criação dramática, visa a
aprender a se despojar de si para acolher o outro sob as mil figuras que ele
pode revestir ao sabor das criações. Há uma inteligência do corpo como há uma
corporeidade do pensamento. O training
e o trabalho do ator têm por base esse princípio.
Os exercícios visam a suscitar uma distância em relação aos
códigos que geralmente regem o corpo no decorrer dos rituais do quotidiano.
Descondicionamento metódico, desnudamento do simbólico que impregna cada gesto,
cada mímica, cada movimento, cada palavra, e autoriza a representação de si na
cena social. A partir desse desapego de si, da ruptura lúcida das evidências de
comportamento, o ator é devolvido a todos os possíveis da cena. O training bem pensado é um exercício de
sociologia (ou de antropologia) prática, um desvio para pensar em si mesmo como
outro, a fim de deslizar, a seguir, para uma alteridade desejada, que é a
própria essência do trabalho do ator. Experimentar os vínculos ou as distâncias
entre a palavra e a simbólica corporal, as maneiras de subverter a palavra pelo
corpo ou o contrário, a fim de dar à atuação uma envergadura suplementar,
aprender a brincar com códigos para os restituir com sutileza ou inventar
outros.
Nas justificativas do training,
muitas vezes encontramos argumentos que desarmam o antropólogo: o homem não
saberia respirar, caminhar, se mover, usar o corpo; haveria uma distância
nefasta entre a palavra e o corpo, etc. Em suma: o corpo seria um «objeto»
imperfeito, a ser remanejado, a ser modelado de outro modo, sob o magistério de
um professor da verdade, que sabe11. Mistura ruim, a ser corrigida para dar
a ele, enfim, uma forma conveniente. O corpo não está desprendido do homem a
tal ponto que um repertório de receitas possa fazer com que funcione sozinho
como uma matéria a ser modelada. O dualismo é uma retórica cômoda da vida
corrente, uma maneira de se tornar compreendido simplificando as coisas, mas na
existência não há um corpo e um espírito separados, nem sequer reunidos, e sim
um homem que sonha, sem dúvida, em ser às vezes puro espírito, mas nem por isso
deixa de ser ― para o que der e vier ― um ser de carne e osso. «Formatação»,
mais do que «formação», para retomar Alexandre Del PerugiaE, o training se inscreve então num discurso da verdade, e não numa
caminhada, quer dizer: num debate íntimo com o sentido, produzindo apenas
formulações provisórias e dando ao ator principalmente uma aptidão pessoal de
reagir em qualquer situação. Esse fantasma do autocontrole ou do controle sobre
o outro explica, sem dúvida, o sucesso atual do training e a multiplicação das escolas. Vontade de mudar a si mesmo
― não mudando a própria história ou a própria existência, mas graças a uma técnica,
a uma disciplina. Espera mágica de um domínio melhor de si mesmo e da própria
existência. O teatro não deve ter professores da verdade, mas professores do
sentido, quer dizer: referentes que desaparecem com a revelação do outro.
Eugenio
Barba tem razão ao dizer que não são os exercícios em si que formam o ator,
«mas a temperatura do processo», quer dizer o clima relacional, a qualidade de
presença do responsável, o grau de adesão do grupo, o comprometimento pessoal
do ator, o seu desejo de mudar, de se conhecer, a sua preocupação com aceder a
outra versão de si mesmo. Os exercícios são apenas suportes, desenham a pista
em que se lançar, mas não o valor do salto que, em última análise, cabe apenas
ao próprio ator. O treinamento é uma técnica, um meio, e não um fim: não basta
rezar para crer. A singularidade do ator sempre tem a última palavra. A
realização rigorosa dos exercícios pode resultar apenas numa realização pobre
se lhe faltar talento, ou seja: num modo único de se haver com as técnicas. Os meios
só valem o que vale o artesão; exigem dele um suplemento de criação. E o
talento não tem receitas aplicáveis em todas as circunstâncias. O training dá à luz o que já estava no
ator e só pedia para se revelar. Antes de tudo, ele acompanha um indivíduo ativo
em seu proceder. Antes de formar um ator, ele deve formar um homem.
LE BRETON, David.
«Conclusion. Anthropologie du corps en scène» [Conclusão. Antropologia do corpo em cena], p. 189-204, in BARBA,
Eugenio et alii. Le Training de l´acteur [O Treinamento do Ator].
Obra coordenada por Carol Müller. Paris/Arles: Conservatoire National Supérieur
d´Art Dramatique (CNSAD)/Actes Sud, 2000. — Tradução de José Ronaldo FALEIRO.
A Michel Bouquet nasceu em Paris,
em 1925. Iniciou sua carreira em 1944. Em 1946, interpretou o papel de Cipião
em Calígula, de Albert Camus (com
Gérard Philippe no papel-título). Bouquet interpreta tanto Strindberg, como Beckett
, Pinter, Diderot e Molière, que ele considera o autor mais exigente e
misterioso de todos. Faz cinema e televisão. É um dos atores preferidos de
Claude Chabrol. Professor muito apreciado pelos alunos, aconselha a estes:
sejam curiosos como crianças, tenham premonições às vezes e, sempre, trabalhem
muito. «A personagem sempre merece ser cortejada incessantemente... Ser ator é
acumular as dificuldades para se livrar delas». V. André Sallée. Les acteurs français
[Os Atores Franceses]. Paris: Bordas, 1988. p. 87. (N. T.)
[1]
Cf. David Le Breton. Les
Passions ordinaires. Anthropologie des émotions [As Paixões Ordinárias. Antropologia das
Emoções]. Paris: Armand Colin,
1998.
B Talvez
se pudesse traduzir o vocábulo por «remendo», «arranjo», «conserto», «quebra-galho».
Proveniente do francês bricolage, a
palavra está dicionarizada em português e designa um «trabalho ou conjunto de
trabalhos manuais ou de artesanato doméstico» (FERREIRA, Aurélio Buarque de
Holanda. Novo Dicionário Aurélio de
Língua Portuguesa. 3ª ed. Curitiba: Positivo, 2004. p. 328). HOUAISS (Dicionário eletrônico Houaiss da língua
portuguesa 3.0) se refere ao termo como uma «montagem
ou instalação (de qualquer coisa), feita por pessoa não especializada» ou uma «execução de
trabalhos ou reparos caseiros fáceis (p.ex., de carpintaria), por alguém não
especializado em tal coisa», ou, ainda — em
sentido figurado — como uma «montagem ou
combinação (de elementos diversos)». (N. T.).
[2]
Lee Strasberg. Le Travail de l´Actor´s Studio [O Trabalho do
Actor´s Studio]. Paris:
Gallimard, 1969. p. 81. [Do mesmo autor, pode-se consultar, em português, Um Sonho de Paixão. O desenvolvimento do
Método. Texto original editorado por Evangeline Morphos. Tradução de Anna
Zelma Campos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. (N. T.).]
C No texto, «rejeu du réel»
[«re-jogo do real», «re-apresentação do real», «re-atua(tualiza)ção do real»].
Jacques Lecoq foi um leitor de Marcel Jousse. Para este, existe uma diferença
entre «imitação» e «mimismo». O animal imita; só o ser humano é capaz de mimar.
O mimismo é uma atividade humana espontânea. — « (...) a criança que olha o
trem passar (...) imita espontaneamente o movimento e o som do trem.(...) Uma
criança visita um castelo; de volta a
casa, constrói um castelo com seus cubos de armar (...) se uma criança
estiver doente e tiver de absorver remédios, vai procurar a sua boneca: esta
também deverá ingerir remédios. Em todos esses casos, a criança vive uma
situação e a reproduz de um modo ou de outro sem que ninguém lhe tenha pedido
para fazer isso. — Vemos, à luz desses exemplos, que o mimismo compreende duas
fases: uma fase que Jousse chama de intussepção
(de suscipio, receber, e dentro), que é a fase da gravação; e uma
fase de rejeu [rejogo, re-atuação],
pois o que é gravado ou intussuscepcionado tende a ser reproduzido, refeito,
expresso: rejoué [re-jogado,
re-apresentado, re-presentado, re-atua(liza)do]» (FROMENT, Marie-Françoise. L´enfant-mimeur. L´anthropologie de Marcel
Jousse et la pédagogie [A
criança-que-mima. A Antropologia de Marcel Jousse e a Pedagogia]. Paris: Épi, 1978. p. 25. (N.
T.)
3
David Le Breton. Les Passions ordinaires
[As Paixões Ordinárias]. Op. cit.
cap. VII.
4
E. Barba. «Anthropologie théâtrale» [Antropologia Teatral], in L´Anatomie de
l´acteur. Un dictionnaire d´anthropologie théâtrale
[A Anatomia do Ator. Um Dicionário de Antropologia Teatral]. Bouffonneries,
1985. p. 6. [Na edição brasileira, este passo foi assim traduzido: «Os atores
que interessaram e comoveram seus espectadores ficam cansados porque não
economizaram sua energia. E por isso se agradece a eles». V. BARBA, Eugenio
& SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator. Dicionário de
Antropologia Teatral. Tradução de Luís Otávio Burnier (supervisor), Carlos
Roberto Simioni, Ricardo Puccetti, Hitoshi Nomura, Márcia Strazzacappa, Walesca
Silverberg, André Telles (colaborador). São Paulo: Hucitec/Unicamp, 1995. p. 9.
(N. T.).]
5
Ibid. p. 13.
6
L. Strasberg. Op. cit. p. 111.
D «Filos.
Caráter próprio da condição humana pelo qual cada homem se encontra sempre já
comprometido com uma situação não escolhida» (FERREIRA, Aurélio Buarque de
Holanda. Op.cit. p. 865). V. também
ABBAGNANO, Nicola. Diccionario de
filosofía. 8ª reimpresión. México: Fondo de Cultura Econômica, 1991. p.
518. Houaiss (Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 3.0) traz os
seguintes sentidos para o vocábulo: (1) «qualidade do
que é factual, do que se relaciona aos fatos»;
(2) na filosofia de Heidegger, trata-se de «situação
característica da existência humana que, lançada ao mundo, está submetida às
injunções e necessidades dos fatos»; (3) por
extensão de sentido, «no existencialismo
sartriano, conjunto de circunstâncias factuais cuja absoluta contingência
dissolve as verdades e as fundamentações ordinárias para a existência humana, o
que termina por conduzi-la à liberdade» (N.
T.)
7 D. Diderot. Le paradoxe du comédien [O Paradoxo do Ator]. Paris: Garnier-Flammarion, 1987. p. 127-128.
8
J. Grotowski. Vers un théâtre
pauvre [Para um Teatro Pobre]. Op.
cit. p. 68. [«No teatro pobre, o
ator deve compor uma máscara orgânica, através dos seus músculos faciais;
depois, a personagem usará a mesma expressão, através da peça inteira. Enquanto
todo o corpo se move de acordo com as circunstâncias, a máscara permanece estática,
numa expressão de desespero, sofrimento ou indiferença» (id. Em Busca de um Teatro
Pobre. Tradução de Aldomar Conrado. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1987. p. 59. — id. Towards a poor theatre. Preface by Peter Brook. Holstebro:
Odin Teatrets Forlag., 1968. p. 77: «In the poor theatre the actor must
himself compose an organic mask of his facial muscles and thus each character
wears the same grimace throughout the whole play. While the entire body moves in accordance with the
circumstances, the mask remains set in an expression of despair, suffering and
indifference» . — Nota
do Tradutor.]
9 Dario Fo. Le Gai Savoir de l´acteur [literalmente, O Gaio Saber do Ator].
Paris: L´Arche, 1990. [No Brasil, a mesma obra foi traduzida por Manual Mínimo do Ator. Org. de Franca
Rame. Tradução de Lucas Baldovino e Carlos David Szlak. São Paulo: SENAC São
Paulo, 1998. — O título original é Manuale
minimo dell´attore. — Sobre o autor e Franca Rame, ler VENEZIANO, Neyde. A cena de Dario Fo. O Exercício da
Imaginação. São Paulo: Códex, 2002. — Nota do Tradutor.]
1 0 Louis Jouvet. Le Comédien désincarné [O Ator Desencarnado]. Paris: Flammarion,
1954. p. 20. [Há tradução em português do Brasil de Berenice Raulino. (N. T.)]
1 1
Sobre esse ódio implícito do corpo, remetemos à nossa obra L´Adieu au corps [O Adeus ao Corpo]. Paris: Métailié, 1999.
E V.
PERUGIA, Alexandre Del. «Les règles du jeu» [As Regras do Jogo], p. 137-143, in
BARBA, Eugenio et alii. Le Training de l´acteur [O Treinamento do
Ator]. Obra coordenada por Carol Müller. Paris/Arles: Conservatoire National Supérieur
d´Art Dramatique (CNSAD)/Actes Sud, 2000. (N. T.)
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