LE BRETON, David. «Conclusion. Anthropologie du corps
en scène» [Conclusão. Antropologia do corpo em cena], p. 189-204, in BARBA, Eugenio et
alii. Le Training de l´acteur [O
Treinamento do Ator]. Obra coordenada por Carol Müller. Paris/Arles:
Conservatoire National Supérieur d´Art Dramatique (CNSAD)/Actes Sud, 2000. —
Tradução de José Ronaldo FALEIRO.
Antropologia do corpo em cena
Sou sincero quando
jogo.
ANDRÉ GIDE
Da comédia do mundo ao teatro
Numa entrevista concedida a Le Monde [O Mundo]
(7-8 de abril de 1985), o ator Michel BouquetA
explica que comer bem ou beber bem são situações difíceis de conseguir em cena.
A embriaguez deixa ao ator uma margem de manobra mais saliente do que se tiver
de se alimentar durante a representação. Houve grandes beberrões no teatro, mas
poucos grandes comilões: «O fato de que um gesto se desencadeie com tal
velocidade e não com tal outra, se um copo for bebido rápido demais, se não se
refletiu sobre a maneira de o olhar antes, tudo se verá, tudo trará a prova de
que não é totalmente crível. Pois já não se trata de uma intenção ou de um
sentimento, mas da verdade de um gesto». De que verdade se trata? A resposta é
relativa. A verdade de um gesto ou da expressão de uma emoção é característica
de uma cultura e de uma dramaturgia, e não de uma natureza. Quer se trate,
aqui, de comportamento adquirido, de frutos de uma educação ou de uma intenção,
essa é justamente a própria condição da formação do ator e de sua atuação em
cena.
Michel Bouquet |
O homem é vinculado ao mundo por um tecido permanente
de emoções e de sentimentos. É tocado pelos acontecimentos ininterruptamente.
Para o senso comum, a afetividade parece primeiramente um jardim secreto em que
se cristaliza uma interioridade da qual nasceria uma espontaneidade sem falha.
Contudo, apesar de se oferecer com as cores da sinceridade e da particularidade
individual, ela é, sempre, a emanação de determinado meio humano e de um
universo social de valores. As emoções que passam através de nós, e a maneira
como repercutem em nós, se alimentam de normas coletivas implícitas, em
orientações de comportamento que cada um expressa conforme o seu estilo,
conforme a sua apropriação pessoal da cultura e dos valores que o banham. A
emoção não é, em nada, natural, biológica, ou hormonal. Ou antes: só existe uma
biologia das paixões porque existe uma cultura das paixões. E estas não são
substâncias transponíveis de um indivíduo ou de um grupo para outro. Não se
trata de processos fisiológicos independentes do homem, mas de relações. Embora
disponha do mesmo aparelho fonador, o conjunto dos homens do planeta não fala
necessariamente a mesma língua. A emergência das emoções, a intensidade delas,
a modalidade de utilização que possuem, o seu grau de incidência nos outros,
respondem a estímulos coletivos suscetíveis de variar segundo os públicos e a
personalidade das pessoas solicitadas. O desvio antropológico lembra o caráter
socialmente construído dos estados afetivos (inclusive dos mais ardentes), e
das manifestações destes[1].
Modulação social da emoção
A
cultura afetiva não é, porém, uma capa de chumbo que pesa sobre o indivíduo: é
um modo de usar, uma sugestão que responde a circunstâncias particulares, não
se impõe como uma fatalidade mecânica. O indivíduo pode «brincar» com a
expressão de seus estados afetivos, sentindo-se, por exemplo, excessivamente
afastado daqueles que seriam socialmente adequados. Ele se aborrece na festa
organizada em sua honra, ele se sente desligado dos amigos; não sente nenhuma
dor com a morte de uma pessoa próxima, etc. O indivíduo sabe que não
corresponde às expectativas. Se der importância a isso, então enganará por meio
de uma bricolagemB pessoal. Mobilizará
os signos esperados para não perturbar ou decepcionar o público. Às vezes
existe vantagem em sugerir um sentimento, ainda que não seja sentido, por
desejo de conformidade, por preservação da imagem de si, por estratégia
pessoal, para ganhar os favores de alguém, para não se descobrir, para não
perder a sua reputação, para não ferir o outro, etc. Prodigalizando os signos
aparentes de uma emoção que não sente, o indivíduo constrói uma personagem para
si mesmo. Um estado afetivo experimentado pode ser expresso, mas também
dissimulado, nuançado, exacerbado, etc. Não sentido, pode ser fingido. A
expressão do sentimento é, então, uma encenação que varia conforme os públicos
e conforme o que está em jogo.
Com efeito, todo homem dispõe da faculdade de
representar um papel brincando com os signos que anunciam aos outros uma
significação cujo alcance ele controla cuidadosamente. O jogo em cena é
pensável porque, antes de tudo, o teatro está na vida social. O paradoxo do
ator é o paradoxo da simbólica corporal, é o prolongamento da latitude própria
ao homem de testemunhar para os outros as únicas significações que ele quer dar
a eles. Quando se baseia nas manifestações físicas adequadas, a sinceridade é
acessível à penetração psicológica com dificuldade. É um efeito de encenação. O
assassino reveste muitas vezes os adornos do homem de bem. A aparência é
justamente a cena proposta pelo homem comum à leitura dos seus parceiros. A
arte do ator explora essa jazida de signos, torna-os um jogo de escrita que
apregoa o estado moral da sua personagem. O corpo se torna narrativa, carrega o
sentido do desempenho compartilhado igualmente com a palavra. Segundo
Bernstein, «há uma verdade que todos os autores dramáticos conhecem: os
espectadores escutam primeiro com os olhos. Constatamos que um ator pode, por
um lapso, dizer exatamente o contrário do texto, sem que o público saiba; este
continua a ler o nosso pensamento nos movimentos e no rosto do intérprete».
O teatro como laboratório das paixões
A cena do teatro é um laboratório
cultural em que as paixões ordinárias desvendam a sua contingência social, em
que se mostram na forma de uma partitura de signos físicos que o público
reconhece imediatamente como tendo sentido. O ator dá ao público a impressão de
viver pela primeira vez os acontecimentos aos quais é confrontado, ainda que a
peça esteja em cartaz há semanas. Dissipa a sua pessoa na personagem, mesmo se
os críticos não se cansam de comparar um com o outro, e de avaliar os
diferentes desempenhos que eles conhecem em relação ao mesmo papel. O ator não
se confunde, porém, com a sua personagem: ele a interpreta, quer dizer, concede
generosamente ao público os signos que estabelecem a inteligibilidade do papel.
Ele representa, quer dizer: introduz uma distância lúdica entre as paixões
solicitadas pelo seu papel e pelas suas próprias, trabalha como artesão, no seu
corpo, para repelir a sua afetividade de pessoa singular, para dar todas as
oportunidades às emoções da sua personagem. Aos olhos do público, ele ensina
uma crença em seu papel graças ao trabalho de elaboração que forneceu,
auxiliado pelo encenador. Mas a transmutação só é possível por as paixões não
se constituírem como natureza, mas serem características de uma construção
social e cultural, e se expressarem num jogo de signos que o homem sempre tem a
possibilidade de desenvolver, até se não os sentir.
O ator brinca com um teclado de
emoções. Ele se vê chorando, ou afundando no desespero, ou rindo às
gargalhadas. Ainda que apresente a tortura do ciúme para ler, Orson Welles não
é Otelo; aliás, todas as noites ele deve satisfazer as exigências do seu papel.
Quando cai o pano, a personagem se despede da pessoa. Antígona não percorre os
necrotérios à procura de defuntos a quem dar uma sepultura decente. O ator toca
simbolicamente o instrumento de trabalho que é o próprio corpo. Faz com que
dele brotem as formas imaginárias, extraindo do fundo comum signos que
compartilha com o público. O seu talento consiste no suplemento que suscita
pela sua personalidade própria, pela sua aptidão em conseguir a adesão da plateia.
Não se trata de reproduzir um texto, mas de o encarnar, de o tornar vivo aos
olhos da plateia. Ser um Otelo crível, com esse acréscimo sutil na
interpretação que marca um momento importante e lembra que o ator é um artista
e não um simples reprodutor.
Arvorar os signos adequados não basta
se eles não derem aparência da vida real. O papel não é uma série de fórmulas
prontas para serem declinadas, mas uma elaboração pessoal e significativa sobre
uma trama comum à qual ele acrescenta uma originalidade própria, quer dizer,
uma composição. A tarefa não é encarnar um tipo ― um soldado, por exemplo ―,
mas fazer com que viva um soldado singular, de carne e osso, com uma psicologia
que se afasta do ator para ter vida própria. Tal desdobramento é uma arte, a
experiência comum mostra dificuldade em aderir a uma construção imaginária. «Há
mil coisas que um ator faz com muita facilidade na vida», diz Strasberg, «e tem
dificuldade em realizar no palco em condições fictícias, porque, como ser
humano, não está equipado para simplesmente brincar de imitar a vida: tem que
acreditar nisso, de certo modo, e ser capaz de se convencer da exatidão daquilo
que faz; caso contrário, não poderá se doar a fundo em cena»[2]. E
esse trabalho do ator não é uma aquisição para todo o sempre, no
desenvolvimento da personagem: cada representação implica retomar a matéria-prima
do papel para apropriar-se dela novamente, no contexto sempre mutável da
afetividade que se desprende da vida pessoal.
O ator é um intérprete, como se diz de
um músico; a sua criação consiste em tornar crível a ficção do seu papel, aos
olhos dos espectadores.
O teatro ou a dança expõem o corpo do
ator à apreciação do público. A sua própria pessoa é o material da criação,
dedicada à plasticidade dos papéis, à pluralidade afetiva que lhe outorgam a
cena e a expectativa do público. O ator é um profissional da duplicidade. Torna
o ofício e o talento dele a faculdade de se afastar dos próprios sentimentos e
de enganar graças ao uso apropriado de signos. Daí provém a fórmula de Antonin
Artaud, considerando-o um «atleta afetivo», um homem capaz de endossar sem
transição, e sem relação com o seu sentir próprio, as aparências exteriores das
emoções ou dos sentimentos requeridos pelo papel, depois de ter experimentado
diferentes versões dele. A estrutura antropológica do teatro consiste nesse
privilégio, próprio do homem, de brincar com os signos para torná-los ativos,
ainda que ele só acredite nisso pela metade. A sinceridade é apenas um
artifício de encenação, uma arte de se apresentar judiciosamente ao julgamento
do outro, deixando que este veja aquilo que ele está totalmente pronto para
tornar crível.
Mímesis deslocada
Jacques Lecoq |
Se não houver ruptura radical no jogo
dos signos entre o palco e a platéia, nem por isso dizer «Eu te amo» a um
colega em cena ou dizer isso em outro lugar significará totalmente a mesma
coisa para a atriz. Ela não é a cópia daquilo que ela é em sua existência. Na
verdade, a «reinterpretação do real»C
denunciada por Jacques Lecoq é dificilmente sustentável em cena, pois o corpo
do teatro não é o corpo da vida quotidiana. O teatro exige uma transposição,
não é algo «natural» posto debaixo da lupa, mas uma criação que desvia
ludicamente signos sociais. A sua evidência depende da elaboração de um
cálculo, de uma seleção entre as possibilidades expressivas da sociedade e as
da dramaturgia. O ator não conseguiria ir ao encontro delas ou ignorá-las, pois
a partir daí o seu desempenho se tornaria ininteligível aos olhos do público.
Até num mero plano prático (acústica, visibilidade, etc.), a cena de teatro não
é a da vida corrente. Na tradição ocidental, a arte do ator é uma mímesis
deslocada, retoma os gestos do quotidiano, mas num contexto em que a
profundidade do vínculo social perdeu toda consistência em proveito de um modo
de comunicação3.
Os mesmos signos servem de ambos os
lados da cena, mas no palco eles são utilizados unicamente em torno da
necessidade do espetáculo, e, portanto, ficam desenraizados em relação à sua
afetividade quotidiana. Na vida quotidiana, os movimentos do corpo se inscrevem
na evidência da relação com o mundo. Em cena, o ator está submetido a outra
definição de suas maneiras de ser, de comer, de beber, de falar, de bocejar, de
caminhar, etc. Estas estão deslocadas, ao mesmo tempo em que se baseiam nos
ritos sociais da palavra e do corpo, trata-se de gestos submetidos às
modulações do espaço cênico e da dramaturgia. Esse jogo implica uma tensão
pessoal. Barba explica que as técnicas «extracotidianas» (as do teatro,
principalmente) se fundam num desperdício de energia. A esse respeito, cita uma
fórmula japonesa para saudar o ator: otsukaresama,
que significa «estás cansado»: «O ator que interessou o espectador ou o comoveu
está cansado porque não poupou as suas energias, e é por isso que recebe
agradecimentos»4. O ator é homem do
dispêndio, do trabalho sobre si, que se opõe, nesse sentido, ao homem comum, o
qual não está adstrito à composição e se contenta preguiçosamente em ser ele
mesmo. Barba simboliza as técnicas extraquotidianas pela qualidade de presença
de um ator que contém a sua energia e vibra com ela a ponto de o seu corpo ser
teatralmente vivo embora, naquele momento, não ocupe o centro da cena, embora
permaneça imóvel. «É sem dúvida por isso que as supostas ‘contracenas’ se
tornaram as grandes cenas de muitos atores famosos: ali, obrigados a não agir,
a permanecer afastados, enquanto os outros representavam a ação principal,
estes eram capazes de absorver em movimentos quase imperceptíveis as forças de
ações que lhes eram negadas, por assim dizer. É justamente naqueles casos que o
seu bios emergia com uma força particular e impressionava o espírito do
espectador»5.
Stanislavski |
Para fabricar a sua personagem,
Stanislavski pede que o ator mergulhe inteiramente numa situação afetiva da
mesma ordem e que encontre as suas sensações através da memória revisitada de
acontecimentos vividos a fim de os transmutar em cena com uma sinceridade
«deslocada», de certo modo. Lee Strasberg, no Actor´s Studio, radicaliza o
mesmo princípio: «A memória afetiva não é a simples memória, é uma memória que
compromete o ator pessoalmente de modo que experiências profundamente
enraizadas começam a reagir. O seu instrumento desperta e se torna capaz, em
cena, de recriar aquele modo de viver que é essencialmente ‘reviver’. A
experiência emocional original pode ter relação com o ciúme, com o ódio ou com
o amor; isso pode ser uma doença ou um acidente... Se o espírito de alguém não
lembrar imediatamente esse tipo de experiência, geralmente será sinal de que
essa experiência foi feita mas ficou enterrada no inconsciente e não gosta de
ser tirada daí»6. Trata-se então de
suprimir a distância em relação ao jogo, que nem sequer a espessura de um fio
de cabelo altere as fontes da emoção, correndo para isso o risco de
alimentá-las com uma matriz pessoal sem nenhum vínculo com a intriga. Um
trabalho de imaginação dramática e de reminiscências cria a força de expressão
do ator. Lee Strasberg leva até o fim a constatação sociológica. A prova
consiste em fazer com que uma emoção pessoal entre na ação de uma personagem
imaginária mantendo o controle dos dois segmentos de si.
Treinamento do ator
A duplicidade é a própria condição da
arte do ator, que muda por completo a cada noite, profissionalmente, durante
meses, o semblante da sua personagem, sem considerar os seus próprios
sentimentos. A qualidade do jogo implica a distância e a escrita simbólica
sobre o corpo. Diderot tem razão em denunciar a facticidadeD da sensibilidade como princípio do
desempenho. Assim como o escritor não é uma natureza que exprime a sua verdade
no papel, mas um inventor de palavras submetido a uma necessidade de coerência
e de expressão, assim também o ator é um inventor de emoções que não existem em
estado bruto, mas que ele modela com o seu talento próprio, rindo de signos
expressivos socialmente reconhecíveis. Ele desenvolve um conhecimento preciso
das utilizações rituais da palavra e do corpo nas diferentes circunstâncias da
vida social. A sociologia do corpo não tem segredos para ele. «Nesse homem» ―
diz ainda Diderot ― «preciso de um espectador frio e tranqüilo;
conseqüentemente, exijo dele perspicácia e nenhuma sensibilidade, a arte de
tudo imitar, ou, o que dá no mesmo, uma aptidão igual em todos os tipos de
caracteres e de papéis»7.
Bertolt Brecht |
Além do emprego da palavra, a arte do
ator se fundamenta no caráter ritual do rosto e do corpo, da postura, dos
deslocamentos, ou da respiração. Ele não poderia modificar-lhe os costumes sem
romper a significação do espetáculo. A menos que este seja baseado na opinião
preconcebida ― na dramaturgia de Brecht, por exemplo ― de fazer com que o ator
represente a contracorrente das convenções expressivas. Provocar a atitude
crítica do espectador, para Brecht, é romper a adesão emotiva que o liga às
personagens. Se assumir o seu papel com distância, espanto, contradição, em
princípio o ator quebra destruirá os mecanismos de identificação, ou pelo menos
uma entrada demasiado incisiva no imaginário da peça. Mas a vontade de
distanciamento só funciona por se apoiar numa ordem ritual de uso do corpo. São
possíveis outras concepções do jogo do ator: pode-se cortar radicalmente a
palavra das manifestações corporais que costumeiramente a sustentam, estilizar
os gestos e as mímicas, etc. Em Akropolis,
por exemplo, Grotowski pede ao ator para compor uma máscara de desespero, de
sofrimento, de indiferença, etc., tendo de permanecer assim durante toda a
representação, enquanto o corpo continua a se mexer em função das
circunstâncias8. Grotowski rompe a
fronteira simbólica entre cena e sala, mistura atores e espectadores numa
relação muito física. Sem que este o saiba, inclui o público no cenário, o
transforma em figurante, projetando cada um fora da inocência. Do mesmo modo o
teatro da crueldade de Artaud visa a provocar o transe do espectador, assimila
o ator a um supliciado e a representação a uma zona de difusão da peste. Outro
exemplo, bem diferente: Dario Fo torna o próprio corpo uma cena inteira com o
seu palco de atores, representa vários papéis ao mesmo tempo, passa de um
registro a outro, comenta a ação antes de se tornar uma das personagens, depois
outra, etc.9
De um modo ou de outro, todas essas
concepções do jogo do ator se apóiam numa expressividade comum, quando mais não
fosse na vontade de rompê-la para provocar o espanto, a interrogação, ou
afirmar uma visão particular do mundo. Durante a carreira, o ator é submetido a
cenas materialmente diferentes, exigindo um desempenho físico variável, uma
flexibilidade em se adaptar e em se harmonizar com o ambiente técnico. Ele
entra igualmente em dramaturgias múltiplas. A sua arte consiste em fazer do
próprio corpo um material modulável. O treinamento do ator, que provém da
dança, dos exercícios cênicos da ginástica, da prática das máscaras, etc., visa
a nutrir nele um melhor conhecimento do seu instrumento. Ritualmente suprimido
da vida quotidiana, muitas vezes «esquecido», o corpo está, aqui, no cerne do
procedimento de formação, de treinamento ou de posta em condições.
Com as suas diversas formas, o training visa a ampliar as competências
físicas e morais do ator, a lhe dar desembaraço dos movimentos necessários a seus
diversos papéis. Tal treinamento para a cena não é menos necessário do que o do
esportista. Louis Jouvet dizia que as suas aulas no Conservatório visavam a que
os seus jovens alunos «aprendessem a respirar»10.
De fato, o teatro exige fôlego. O training
é uma abertura para o mundo, uma descoberta da plasticidade de si no trabalho
de criação dramática, visa a aprender a se despojar de si para acolher o outro
sob as mil figuras que ele pode revestir ao sabor das criações. Há uma
inteligência do corpo como há uma corporeidade do pensamento. O training e o trabalho do ator têm por
base esse princípio.
Os exercícios visam a suscitar uma
distância em relação aos códigos que geralmente regem o corpo no decorrer dos
rituais do quotidiano. Descondicionamento metódico, desnudamento do simbólico
que impregna cada gesto, cada mímica, cada movimento, cada palavra, e autoriza
a representação de si na cena social. A partir desse desapego de si, da ruptura
lúcida das evidências de comportamento, o ator é devolvido a todos os possíveis
da cena. O training bem pensado é um
exercício de sociologia (ou de antropologia) prática, um desvio para pensar em
si mesmo como outro, a fim de deslizar, a seguir, para uma alteridade desejada,
que é a própria essência do trabalho do ator. Experimentar os vínculos ou as
distâncias entre a palavra e a simbólica corporal, as maneiras de subverter a
palavra pelo corpo ou o contrário, a fim de dar à atuação uma envergadura
suplementar, aprender a brincar com códigos para os restituir com sutileza ou
inventar outros.
Nas justificativas do training, muitas vezes encontramos
argumentos que desarmam o antropólogo: o homem não saberia respirar, caminhar,
se mover, usar o corpo; haveria uma distância nefasta entre a palavra e o
corpo, etc. Em suma: o corpo seria um «objeto» imperfeito, a ser remanejado, a
ser modelado de outro modo, sob o magistério de um professor da verdade, que
sabe11. Mistura ruim, a ser corrigida para
dar a ele, enfim, uma forma conveniente. O corpo não está desprendido do homem
a tal ponto que um repertório de receitas possa fazer com que funcione sozinho
como uma matéria a ser modelada. O dualismo é uma retórica cômoda da vida
corrente, uma maneira de se tornar compreendido simplificando as coisas, mas na
existência não há um corpo e um espírito separados, nem sequer reunidos, e sim
um homem que sonha, sem dúvida, em ser às vezes puro espírito, mas nem por isso
deixa de ser ― para o que der e vier ― um ser de carne e osso. «Formatação»,
mais do que «formação», para retomar Alexandre Del PerugiaE, o training se inscreve então num discurso da verdade, e não numa
caminhada, quer dizer: num debate íntimo com o sentido, produzindo apenas
formulações provisórias e dando ao ator principalmente uma aptidão pessoal de
reagir em qualquer situação. Esse fantasma do autocontrole ou do controle sobre
o outro explica, sem dúvida, o sucesso atual do training e a multiplicação das escolas. Vontade de mudar a si mesmo
― não mudando a própria história ou a própria existência, mas graças a uma
técnica, a uma disciplina. Espera mágica de um domínio melhor de si mesmo e da
própria existência. O teatro não deve ter professores da verdade, mas
professores do sentido, quer dizer: referentes que desaparecem com a revelação
do outro.
Eugenio Barba |
Eugenio Barba tem razão ao dizer que não
são os exercícios em si que formam o ator, «mas a temperatura do processo»,
quer dizer o clima relacional, a qualidade de presença do responsável, o grau
de adesão do grupo, o comprometimento pessoal do ator, o seu desejo de mudar,
de se conhecer, a sua preocupação com aceder a outra versão de si mesmo. Os
exercícios são apenas suportes, desenham a pista em que se lançar, mas não o
valor do salto que, em última análise, cabe apenas ao próprio ator. O
treinamento é uma técnica, um meio, e não um fim: não basta rezar para crer. A
singularidade do ator sempre tem a última palavra. A realização rigorosa dos
exercícios pode resultar apenas numa realização pobre se lhe faltar talento, ou
seja: num modo único de se haver com as técnicas. Os meios só valem o que vale
o artesão; exigem dele um suplemento de criação. E o talento não tem receitas
aplicáveis em todas as circunstâncias. O training
dá à luz o que já estava no ator e só pedia para se revelar. Antes de tudo, ele
acompanha um indivíduo ativo em seu proceder. Antes de formar um ator, ele deve
formar um homem.
David L Breton é sociólogo e antropólogo. É professor
na Universidade das Ciências Humanas de Estrasburgo ― II. É autor de muitas
obras sobre o corpo. Entre elas, Anthropologie
du corps et modernité [Antropologia do Corpo e Modernidade]. Paris: PUF, 2000; Du silence [Do Silêncio]. Paris: Métailié,
1997; Anthropologie de la douleur [Antropologia
da Dor]. Paris: Métailié, 1995; L´Adieu au corps [O Adeus ao Corpo].
Paris: Métailié, 1999. Escreveu sobre o corpo do ator principalmente em Les Passions ordinaires. Anthropologie des émotions [As Paixões Ordinárias. Antropologia das emoções].
Paris: Armand Colin, 1998.
LE BRETON, David.
«Conclusion. Anthropologie du corps en scène» [Conclusão. Antropologia do corpo em cena], p. 189-204, in BARBA,
Eugenio et alii. Le Training de l´acteur [O Treinamento do Ator].
Obra coordenada por Carol Müller. Paris/Arles: Conservatoire National Supérieur
d´Art Dramatique (CNSAD)/Actes Sud, 2000. — Tradução de José Ronaldo FALEIRO.
A Michel Bouquet nasceu em Paris,
em 1925. Iniciou sua carreira em 1944. Em 1946, interpretou o papel de Cipião
em Calígula, de Albert Camus (com
Gérard Philippe no papel-título). Bouquet interpreta tanto Strindberg, como
Beckett , Pinter, Diderot e Molière, que ele considera o autor mais exigente e
misterioso de todos. Faz cinema e televisão. É um dos atores preferidos de
Claude Chabrol. Professor muito apreciado pelos alunos, aconselha a estes:
sejam curiosos como crianças, tenham premonições às vezes e, sempre, trabalhem
muito. «A personagem sempre merece ser cortejada incessantemente... Ser ator é
acumular as dificuldades para se livrar delas». V. André Sallée. Les acteurs français
[Os Atores Franceses]. Paris: Bordas, 1988. p. 87. (N. T.)
[1] Cf. David Le Breton. Les Passions ordinaires. Anthropologie des
émotions [As Paixões
Ordinárias. Antropologia das Emoções]. Paris: Armand Colin, 1998.
B
Talvez se pudesse traduzir o vocábulo por «remendo», «arranjo», «conserto»,
«quebra-galho». Proveniente do francês bricolage,
a palavra está dicionarizada em português e designa um «trabalho ou conjunto de
trabalhos manuais ou de artesanato doméstico» (FERREIRA, Aurélio Buarque de
Holanda. Novo Dicionário Aurélio de
Língua Portuguesa. 3ª ed. Curitiba: Positivo, 2004. p. 328). HOUAISS (Dicionário eletrônico Houaiss da língua
portuguesa 3.0) se refere ao termo como uma «montagem
ou instalação (de qualquer coisa), feita por pessoa não especializada» ou uma «execução de
trabalhos ou reparos caseiros fáceis (p.ex., de carpintaria), por alguém não
especializado em tal coisa», ou, ainda — em
sentido figurado — como uma «montagem ou
combinação (de elementos diversos)». (N. T.).
[2]
Lee Strasberg. Le Travail de l´Actor´s Studio [O Trabalho do
Actor´s Studio]. Paris: Gallimard, 1969. p. 81. [Do mesmo autor, pode-se
consultar, em português, Um Sonho de
Paixão. O desenvolvimento do Método. Texto original editorado por
Evangeline Morphos. Tradução de Anna Zelma Campos. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1990. (N. T.).]
C No texto, «rejeu du réel»
[«re-jogo do real», «re-apresentação do real», «re-atua(tualiza)ção do real»].
Jacques Lecoq foi um leitor de Marcel Jousse. Para este, existe uma diferença
entre «imitação» e «mimismo». O animal imita; só o ser humano é capaz de mimar.
O mimismo é uma atividade humana espontânea. — « (...) a criança que olha o trem
passar (...) imita espontaneamente o movimento e o som do trem.(...) Uma
criança visita um castelo; de volta a
casa, constrói um castelo com seus cubos de armar (...) se uma criança
estiver doente e tiver de absorver remédios, vai procurar a sua boneca: esta
também deverá ingerir remédios. Em todos esses casos, a criança vive uma
situação e a reproduz de um modo ou de outro sem que ninguém lhe tenha pedido
para fazer isso. — Vemos, à luz desses exemplos, que o mimismo compreende duas
fases: uma fase que Jousse chama de intussepção
(de suscipio, receber, e dentro), que é a fase da gravação; e uma
fase de rejeu [rejogo, re-atuação],
pois o que é gravado ou intussuscepcionado tende a ser reproduzido, refeito,
expresso: rejoué [re-jogado,
re-apresentado, re-presentado, re-atua(liza)do]» (FROMENT, Marie-Françoise. L´enfant-mimeur. L´anthropologie de Marcel Jousse et la pédagogie [A criança-que-mima. A
Antropologia de Marcel Jousse e a Pedagogia].
Paris: Épi, 1978. p. 25. (N. T.)
3
David Le Breton. Les Passions ordinaires
[As Paixões Ordinárias]. Op. cit.
cap. VII.
4
E. Barba. «Anthropologie théâtrale» [Antropologia Teatral], in L´Anatomie de
l´acteur. Un dictionnaire
d´anthropologie théâtrale [A Anatomia do Ator. Um Dicionário de
Antropologia Teatral]. Bouffonneries, 1985. p. 6. [Na edição brasileira, este
passo foi assim traduzido: «Os atores que interessaram e comoveram seus
espectadores ficam cansados porque não economizaram sua energia. E por isso se
agradece a eles». V. BARBA, Eugenio & SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta
do Ator. Dicionário de Antropologia Teatral. Tradução de Luís Otávio
Burnier (supervisor), Carlos Roberto Simioni, Ricardo Puccetti, Hitoshi Nomura,
Márcia Strazzacappa, Walesca Silverberg, André Telles (colaborador). São Paulo:
Hucitec/Unicamp, 1995. p. 9. (N. T.).]
5
Ibid. p. 13.
D
«Filos. Caráter próprio da condição
humana pelo qual cada homem se encontra sempre já comprometido com uma situação
não escolhida» (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Op.cit. p. 865). V. também ABBAGNANO, Nicola. Diccionario de filosofía. 8ª reimpresión. México: Fondo de Cultura
Econômica, 1991. p. 518. Houaiss (Dicionário eletrônico Houaiss da língua
portuguesa 3.0) traz os seguintes sentidos para o vocábulo: (1) «qualidade do que é factual, do que se relaciona aos fatos»; (2) na filosofia de Heidegger, trata-se de «situação característica da existência humana que, lançada
ao mundo, está submetida às injunções e necessidades dos fatos»; (3) por extensão de sentido, «no existencialismo sartriano, conjunto de
circunstâncias factuais cuja absoluta contingência dissolve as verdades e as
fundamentações ordinárias para a existência humana, o que termina por
conduzi-la à liberdade» (N. T.)
7 D. Diderot. Le paradoxe du comédien [O Paradoxo do Ator]. Paris: Garnier-Flammarion, 1987. p. 127-128.
8
J. Grotowski. Vers un théâtre
pauvre [Para um Teatro Pobre]. Op.
cit. p. 68. [«No teatro pobre, o
ator deve compor uma máscara orgânica, através dos seus músculos faciais;
depois, a personagem usará a mesma expressão, através da peça inteira. Enquanto
todo o corpo se move de acordo com as circunstâncias, a máscara permanece
estática, numa expressão de desespero, sofrimento ou indiferença» (id. Em
Busca de um Teatro Pobre. Tradução de Aldomar Conrado. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1987. p. 59. — id. Towards a poor theatre.
Preface by Peter Brook.
Holstebro: Odin Teatrets Forlag., 1968. p. 77: «In the poor theatre the actor
must himself compose an organic mask of his facial muscles and thus each
character wears the same grimace throughout the whole play. While the entire body moves in accordance
with the circumstances, the mask remains set in an expression of despair,
suffering and indifference» . — Nota do Tradutor.]
9 Dario Fo. Le Gai Savoir de l´acteur [literalmente, O Gaio Saber do Ator].
Paris: L´Arche, 1990. [No Brasil, a mesma obra foi traduzida por Manual Mínimo do Ator. Org. de Franca
Rame. Tradução de Lucas Baldovino e Carlos David Szlak. São Paulo: SENAC São Paulo,
1998. — O título original é Manuale
minimo dell´attore. — Sobre o autor e Franca Rame, ler VENEZIANO, Neyde. A cena de Dario Fo. O Exercício da
Imaginação. São Paulo: Códex, 2002. — Nota do Tradutor.]
1 0 Louis Jouvet. Le Comédien désincarné [O Ator Desencarnado]. Paris: Flammarion,
1954. p. 20. [Há tradução em português do Brasil de Berenice Raulino. (N. T.)]
1 1
Sobre esse ódio implícito do corpo, remetemos à nossa obra L´Adieu au corps [O Adeus ao Corpo]. Paris: Métailié, 1999.
E V.
PERUGIA, Alexandre Del. «Les règles du jeu» [As Regras do Jogo], p. 137-143, in
BARBA, Eugenio et alii. Le Training de l´acteur [O Treinamento do
Ator]. Obra coordenada por Carol Müller. Paris/Arles: Conservatoire National Supérieur
d´Art Dramatique (CNSAD)/Actes Sud, 2000. (N. T.)