sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

TEATRO CIVILE - A Tendência Italiana

Nesta semana o Círculo Artístico Teodora apresenta para vocês uma visão sobre a tendência mais popular do Teatro Italiano contemporâneo. Esta vertente chama-se Teatro Civile, é uma variação do Teatro de Narração italiano, e nasce a partir das aulas de Dario Fo – Mistero Buffo.

Abaixo apresentamos a descrição do gênero e, a seguir, uma entrevista com Danielle Biacchesi, redator chefe de Radio24 e Il Sole 24 ore, escritor investigativo e dramaturgo italiano.

Organização e Tradução de Claudia Venturi

Marco Paolini no espetáculo "Il Racconto del Vajont" - 1997


O "TEATRO CIVILE"


TEATRO CIVILE: Termo com o qual normalmente se definem os espetáculos que levam à cena teatral temáticas de atualidade política e social. Na Itália o Teatro Civile se impôs como uma das formas mais vitais do teatro contemporâneo e ainda que se diferencie do Teatro de Narração, as suas gêneses estão profundamente interligadas.
Os atores não interpretam personagens, não entram em cena na condição de especialistas, mas como pessoas, com os seus pontos de vista e sua credibilidade, que vem carregados de função informativa e formativa.
Em poucos anos se afirmaram numerosos espetáculos de forte impacto, entre os quais Il Racconto del Vajont (1993) de Marco Paolini; Italiani cìncali (2003) de Mario Perrotta, sobre a epopeia da emigração italiana na Bélgica; Storie di Scorie (2005) sobre a má gestão dos degetos radiotivos e eFIATo sul collo (2005) sobre as lutas dos operários da Fiat de Melfi, ambas de Ulderico Pesce, Reportage Cernobyl (2012) de Roberta Biagiarelli e Simona Gonella sobre o acidente nuclear na central da Ucrânia; entre outras.
A convergência entre o jornalismo investigativo e a dramaturgia civile se deu com Biacchesse, com os prólogos destinados a Paolini.[1]

Daniele Biacchessi - "Storie d'Italia"


Lugares e protagonistas do "Teatro civile" quando as estorias viram História

O último livro de Daniele Biacchessi percorre os muitos espetáculos que que obtiveram grande sucesso nos últimos anos salvaguardando a memória nacional: “Faz aquilo que deveria ser feito pela política, pelos hitoriadores e pela sociedade.”
por SILVANA MAZZOCCHI

A memória recuperada através da potência “subversiva” da palavra é a força sedutora do Teatro Civile, um fenômeno urdido pelo trabalho e pelo talento que na Itália se impôs como uma das formas mais vitais do teatro contemporâneo e que conquistou uma multidão de fieis espectadores.
Dos massacres nazistas de Sant’Anna di Stazzena e Marzabotto[2] ao desastre doloso da represa do Vajont[3]; da matança da Praça Fontana[4] ao caso Moro[5], até o desastre de Ustica[6] e não é tudo, todos os eventos da história do nosso País, levados à cena por matadores magnéticos como Marco Paolini, Ascanio Celestini, Giulio Cavalli, Giorgio Diritti e muitos outros. Teatro Civile (Verdenero, edizioni Ambiente), o último livro de Daniele Biacchessi, jornalista, escritos e autor teatral, retorna aos locais da narração e das investigações, percorrendo tantos espetáculos que, através dos anos, contaram na Itália as verdadeiras histórias ignoradas, esquecidas ou “ajustadas” e as evoca e exalta a veia regeneradora. E emerge, através da dramaturgia e da utilização do corpo e da voz, como se pudesse reviver fatos e emoções despertando o desejo de conhecer e recordar. Muito eficientes as testemunhas velhas e novas dos protagonistas que esses espetáculos colocaram em cena (no palco, mas também nas ruas ou em uma simples calçada). Demonstrando que, enquanto deveriam ser as instituições governamentais a se encarregarem de proteger a memória nacional, foram frequentemente os narradores a carregar o peso e a criar uma ponte entre o passado e o presente. Um desafio superado, atingido fora dos teatros tradicionais e dos mecanismos produtivos e de mercado, com espetáculos ágeis, para e entre o público, e com textos nunca definidos e, ao contrário, sempre abertos a novas contribuições.
Teatro Civile restitui a vontade de não esquecer aquilo que foi e de participar daquilo que é um livro que nos mostra a face positiva da indignação, aquela que aflora quando fatos cobertos de esquecimento voltam a mover as consciências.

Espetáculo "ODISSEA. La Strage dei Proci, Canto XXII"
di Ascanio Celestini - 2015

O que é o Teatro Civile para o senhor?
“Há muitos anos, na minha cidade, na região de Monte Sole, próximo a Marzabotto, todas as noites o meu avô se colocava próximo à lareira, carregava o cachimbo, bebia um gole de grappa[7]. Então se virava e dizia para nós, crianças: “Então...”. E iniciava uma história: o vento que se infiltrava pela porta, os passos breves dos soldados nazistas ao longo das trilhas de Monte Sole, os disparos e os gritos, o silêncio. Todas as noites a mesma história, mas tinha sempre um particular que a tornava diferente. Isto é o Teato Civile, contar histórias para que elas não sejam esquecidas. E, de qualquer forma, na Itália, o Teatro Civile representa a verdadeira e grande novidade no âmbito da dramaturgia nacional, decretada por consensos de público realmente extraordinários. Pensemos ao Vajont de Marco Paolini, visto por pelo menos três milhões de pessoas, ou a Radio Clandestina, de Ascanio Celestini, que recebeu um milhão de espectadores. O verdadeiro teatro contemporâneo que o público gosta é exatamente o “teatro civile” que possui um duplo significado, porque todo o teatro, em si, é “civil”. E é político no momento em que leva para a cena episódios como aqueles de Marzabotto ou Sant’Anna di Stazzema. O que faz a diferença é a técnica da narração, que se distancia do teatro político impregnado dos anos setenta, que era mais do tipo brechtiano. Naquele, o teatro deveria passar uma ideia e fazer de tudo para convencer o público de que ela é a correta. Neste se parte de um outro pressuposto: através das histórias se desenrola a História com H maiúsculo, aquela do nosso país.”

Espetáculo "Viva l"Italia, le morti di Fausto e Iaio" de César Brie - 2014

Livros, teatro, cinema, mas até séries, música. Tudo pode contar a memória de um país?
“Este é um país que não possui memória, porque relembrar significa também colocar-se em frente de um espelho e se colocar em discussão. E é também um país anormal aquele que transfere a nós, menestréis, o dever de contar a história coletiva de uma nação, incluindo as páginas mais escuras, os anos das matanças e da estratégia de tensão[8], o senso de impunidade, os distrativos apresentados pelos representantes das instituições, as carnificinas e os desastres ambientais, os mortos pelo trabalho. Deveria ser feito pela política, mas as comissões de massacres e antimáfia concluíam muito pouco ou quase nada. Era tarefa dos historiadores que, ao invés disso, pensaram muito bem em reescrever a história colocando no mesmo nível os partigiani[9] dos republicanos de Salò[10]. Era também função da sociedade civil que perdeu o sentimento de indignação. E então? E então livros, discos, teatro, leituras podem servir para remover as consciências entorpecidas. Uma revolução cultural que coloque em primeiro plano a defesa daquilo que Pietro Calamandrei definia “o pacto juramentado entre homens livres”, a Constituição.”

O Senhor ouviu muitos interpretes, visitou os lugares da narração. Diga aquilo que, para todos, melhor representa o seu livro-manifesto.
“Não existe um lugar, mas sim lugares. Para mim contam a estação de Bolonha, a Igreja de Sant’Anna di Stazzema, Seveso, via Mancinelli, em Milão, onde foram mortos Fausto e Iaio[11]. Para Marco Paolini certamente Vajont, Ustica, os trens, as trilhas de retorno da Rússia, de Mario Rigoni Stern. Para Ascanio Celestini, o museu de via Tasso, em Roma, as fábricas, os manicômios, os call center. Para Giulio Cavalli, o aeroporto de Linate, as periferias de Milão infiltradas pela ‘ndrangheta[12]. E é assim para todos. Porque os lugares contam e porque nada deve ser esquecido, nunca.”

(Entrevista publicada no "La Repubblica", em 2010, site: http://www.repubblica.it/spettacoli-e-cultura/2010/09/23/news/passaparola_biacchessi-7344134/)

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Abaixo vídeo contendo parte do espetáculo "Il Racconto del Vajont", de Marco Paolini, o espetáculo mais popular do Teatro Civile, visto por mais de três milhões de espectadores, abrindo o caminho para o gênero cintemporâneo mais popular na Itália. O espetáculo é encenado anualmente na Represa do Vayont, desativada após o desastre, para lembrar de uma história que não queremos ver repetida.





[1] Marco Paolini é autor e intérprete de um repertório que pertence ao chamado Teatro Civile. Os seus espetáculos, grande parte monólogos, afrontam temáticas complexas. Aliás, o autor se especializou em criar espetáculos sobre desastres reais, instigando a população a lembrar dos fatos “para que eles nunca se repitam”. Paolini é considerado um dos maiores expoente da primeira geração daquele quase gênero, definido como Teatro de Narração: Um teatro que segue os rastros das lições do Mistero Buffo de Dario Fo e se fundamenta nos contos de um performer que - sem maquiagem, figurino ou cenografia – Assume a função de narrador, com a própria identidade, sem interpretar um personagem específico, mas colocando-se na posição de diversos.
[2] As duas cidades italianas, Marzabotto e Sant'Anna di Stazzena, foram deliberadamente massacradas pelos nazistas, com apoio do exército fascista de Mussolini, em agosto e setembro de 1944. Praticamente toda a cidade foi friamente assassinada, todos civis, incluindo crianças e mulheres, em ações premeditadas com o intuito de coibir possíveis apoios aos grupos rebeldes.
[3] O desastre do Vajont – ocorreu em 1963, quando uma empresa ignorou os dados técnicos e insistiu em construir uma represa em terreno instável. Ao encher a represa o terreno das laterais cedeu caindo dentro do grande lago e formando uma onda gigante que superou as comportas e destruiu completamente duas cidades que se localizavam ao seu percurso. Milhares de pessoas morreram e as cidades foram completamente destruídas.
[4] A matança de Piazza Fontana ocorreu em dezembro de 1969, em 53 minutos 5 bombas explodiram em locais com muita circulação de pessoas, em Milão e Roma, começando na Piazza Fontana em Milão. O atentado terrorista foi atribuído a um grupo neo fascista e até hoje ainda não foi completamente esclarecido.
[5] Aldo Moro – político italiano morto pela Brigada Vermelha, junto com os policiais que faziam a sua escolta, em 1978.
[6] Desastre de Ustica relata o acidente aéreo de um avião comercial que explode sobre o mar após decolar de Bolonha com destino a Palermo, em 1980. As investigações lançaram mais suspeitas do que esclarecimentos e se cogita uma trama internacional.
[7] Destilado da uva. No Brasil é conhecida também como graspa.
[8] Estratégia de tensão – é como foi conhecido um período da história italiana, na década de 1970, no qual houve um profundo confronto entre violentos grupos terroristas neonazistas e um não assumido “terrorismo de Estado”, promovido por militares e políticos, que pretendiam coibir um golpe comunista.
[9] Partigiano é como se chama na Itália o combatente armado que não pertence a nenhum exército oficial, mas a um movimento de resistência, fortemente organizado, para enfrentar o exército regular, em uma guerra assimétrica.
[10] Republicanos di Salò - Exército criado durante a segunda guerra mundial, treinado pelos alemães para combater os anglos americanos e, principalmente os partigiani.
[11] Fausto e Iaio, jovens de 18 anos que foram assassinados a tiros quando retornava pasa casa em Milão, 1978. Vários grupos assumiram o atentado. Para a polícia possivelmente teria sido realizado por um grupo neonazista. As investigações mostraram que os jovens estavam investigando, documentando, o tráfico de drogas na região onde viviam.
[12] Também conhecida como Famiglia Montalbano, Organização criminosa italiana, de cunho mafioso, da região da Calábria.

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