Nesta semana o Círculo
Artístico Teodora apresenta para vocês uma visão sobre a tendência mais popular
do Teatro Italiano contemporâneo. Esta vertente chama-se Teatro Civile, é uma variação do Teatro de Narração italiano, e
nasce a partir das aulas de Dario Fo – Mistero
Buffo.
Abaixo apresentamos a
descrição do gênero e, a seguir, uma entrevista com Danielle Biacchesi, redator
chefe de Radio24 e Il Sole 24 ore, escritor investigativo e
dramaturgo italiano.
Organização
e Tradução de Claudia Venturi
Marco Paolini no espetáculo "Il Racconto del Vajont" - 1997 |
O "TEATRO
CIVILE"
TEATRO CIVILE: Termo com
o qual normalmente se definem os espetáculos que levam à cena teatral temáticas
de atualidade política e social. Na Itália o Teatro Civile se impôs como uma das formas mais vitais do teatro
contemporâneo e ainda que se diferencie do Teatro de Narração, as suas gêneses
estão profundamente interligadas.
Os atores não interpretam
personagens, não entram em cena na condição de especialistas, mas como pessoas,
com os seus pontos de vista e sua credibilidade, que vem carregados de função
informativa e formativa.
Em poucos anos se
afirmaram numerosos espetáculos de forte impacto, entre os quais Il Racconto del Vajont (1993) de Marco
Paolini; Italiani cìncali (2003) de
Mario Perrotta, sobre a epopeia da emigração italiana na Bélgica; Storie di Scorie (2005) sobre a má gestão dos degetos
radiotivos e eFIATo sul collo (2005)
sobre as lutas dos operários da Fiat de Melfi, ambas de Ulderico Pesce, Reportage Cernobyl (2012) de Roberta
Biagiarelli e Simona Gonella sobre o acidente nuclear na central da Ucrânia;
entre outras.
A convergência entre o
jornalismo investigativo e a dramaturgia
civile se deu com Biacchesse, com os prólogos destinados a Paolini.[1]
(texto extraído da Enciclopédia
Treccani em: http://www.treccani.it/enciclopedia/teatro-civile_(Lessico_del_XXI_Secolo)/
Daniele Biacchessi - "Storie d'Italia" |
Lugares e
protagonistas do "Teatro civile" quando as estorias viram História
O último livro de
Daniele Biacchessi percorre os muitos espetáculos que que obtiveram grande
sucesso nos últimos anos salvaguardando a memória nacional: “Faz aquilo que
deveria ser feito pela política, pelos hitoriadores e pela sociedade.”
por SILVANA MAZZOCCHI
A memória recuperada através da potência “subversiva” da palavra
é a força sedutora do Teatro Civile,
um fenômeno urdido pelo trabalho e pelo talento que na Itália se impôs como uma
das formas mais vitais do teatro contemporâneo e que conquistou uma multidão de
fieis espectadores.
Dos massacres nazistas de Sant’Anna
di Stazzena e Marzabotto[2] ao desastre doloso
da represa do Vajont[3];
da matança da Praça Fontana[4] ao caso Moro[5],
até o desastre de Ustica[6] e não é tudo,
todos os eventos da história do nosso País, levados à cena por matadores
magnéticos como Marco Paolini, Ascanio Celestini, Giulio Cavalli, Giorgio
Diritti e muitos outros. Teatro Civile
(Verdenero, edizioni Ambiente), o último livro de Daniele Biacchessi,
jornalista, escritos e autor teatral, retorna aos locais da narração e das
investigações, percorrendo tantos espetáculos que, através dos anos, contaram
na Itália as verdadeiras histórias ignoradas, esquecidas ou “ajustadas” e as
evoca e exalta a veia regeneradora. E emerge, através da dramaturgia e da
utilização do corpo e da voz, como se pudesse reviver fatos e emoções
despertando o desejo de conhecer e recordar. Muito eficientes as testemunhas
velhas e novas dos protagonistas que esses espetáculos colocaram em cena (no
palco, mas também nas ruas ou em uma simples calçada). Demonstrando que,
enquanto deveriam ser as instituições governamentais a se encarregarem de
proteger a memória nacional, foram frequentemente os narradores a carregar o
peso e a criar uma ponte entre o passado e o presente. Um desafio superado,
atingido fora dos teatros tradicionais e dos mecanismos produtivos e de
mercado, com espetáculos ágeis, para e entre o público, e com textos nunca
definidos e, ao contrário, sempre abertos a novas contribuições.
Teatro Civile
restitui a vontade de não esquecer aquilo que foi e de participar daquilo que é
um livro que nos mostra a face positiva da indignação, aquela que aflora quando
fatos cobertos de esquecimento voltam a mover as consciências.
Espetáculo "ODISSEA. La Strage dei Proci, Canto XXII" di Ascanio Celestini - 2015 |
O que é o Teatro
Civile para o senhor?
“Há muitos anos, na minha cidade, na região de Monte Sole, próximo a Marzabotto, todas as noites o meu avô se
colocava próximo à lareira, carregava o cachimbo, bebia um gole de grappa[7].
Então se virava e dizia para nós, crianças: “Então...”. E iniciava uma
história: o vento que se infiltrava pela porta, os passos breves dos soldados
nazistas ao longo das trilhas de Monte
Sole, os disparos e os gritos, o silêncio. Todas as noites a mesma
história, mas tinha sempre um particular que a tornava diferente. Isto é o Teato Civile, contar histórias para que elas
não sejam esquecidas. E, de qualquer forma, na Itália, o Teatro Civile representa a verdadeira e grande novidade no âmbito
da dramaturgia nacional, decretada por consensos de público realmente
extraordinários. Pensemos ao Vajont
de Marco Paolini, visto por pelo menos três milhões de pessoas, ou a Radio Clandestina, de Ascanio Celestini,
que recebeu um milhão de espectadores. O verdadeiro teatro contemporâneo que o
público gosta é exatamente o “teatro
civile” que possui um duplo significado, porque todo o teatro, em si, é “civil”.
E é político no momento em que leva para a cena episódios como aqueles de Marzabotto ou Sant’Anna di Stazzema. O que faz a diferença é a técnica da
narração, que se distancia do teatro político impregnado dos anos setenta, que
era mais do tipo brechtiano. Naquele, o teatro deveria passar uma ideia e fazer
de tudo para convencer o público de que ela é a correta. Neste se parte de um
outro pressuposto: através das histórias se desenrola a História com H
maiúsculo, aquela do nosso país.”
Espetáculo "Viva l"Italia, le morti di Fausto e Iaio" de César Brie - 2014 |
Livros, teatro, cinema, mas até séries, música. Tudo pode
contar a memória de um país?
“Este é um país que não possui memória, porque relembrar
significa também colocar-se em frente de um espelho e se colocar em discussão.
E é também um país anormal aquele que transfere a nós, menestréis, o dever de
contar a história coletiva de uma nação, incluindo as páginas mais escuras, os
anos das matanças e da estratégia de tensão[8], o
senso de impunidade, os distrativos apresentados pelos representantes das
instituições, as carnificinas e os desastres ambientais, os mortos pelo
trabalho. Deveria ser feito pela política, mas as comissões de massacres e
antimáfia concluíam muito pouco ou quase nada. Era tarefa dos historiadores
que, ao invés disso, pensaram muito bem em reescrever a história colocando no
mesmo nível os partigiani[9] dos republicanos
de Salò[10]. Era também
função da sociedade civil que perdeu o sentimento de indignação. E então? E
então livros, discos, teatro, leituras podem servir para remover as
consciências entorpecidas. Uma revolução cultural que coloque em primeiro plano
a defesa daquilo que Pietro Calamandrei definia “o pacto juramentado entre
homens livres”, a Constituição.”
O Senhor ouviu muitos interpretes, visitou os lugares da
narração. Diga aquilo que, para todos, melhor representa o seu livro-manifesto.
“Não existe um lugar, mas sim lugares. Para mim contam a estação
de Bolonha, a Igreja de Sant’Anna di
Stazzema, Seveso, via Mancinelli,
em Milão, onde foram mortos Fausto e Iaio[11].
Para Marco Paolini certamente Vajont,
Ustica, os trens, as trilhas de retorno da Rússia, de Mario Rigoni Stern.
Para Ascanio Celestini, o museu de via
Tasso, em Roma, as fábricas, os manicômios, os call center. Para Giulio Cavalli, o aeroporto de Linate, as
periferias de Milão infiltradas pela ‘ndrangheta[12]. E é assim para
todos. Porque os lugares contam e porque nada deve ser esquecido, nunca.”
(Entrevista publicada no "La Repubblica", em 2010, site: http://www.repubblica.it/spettacoli-e-cultura/2010/09/23/news/passaparola_biacchessi-7344134/)
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Abaixo vídeo contendo parte do espetáculo "Il Racconto del Vajont", de Marco Paolini, o espetáculo mais popular do Teatro Civile, visto por mais de três milhões de espectadores, abrindo o caminho para o gênero cintemporâneo mais popular na Itália. O espetáculo é encenado anualmente na Represa do Vayont, desativada após o desastre, para lembrar de uma história que não queremos ver repetida.
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Abaixo vídeo contendo parte do espetáculo "Il Racconto del Vajont", de Marco Paolini, o espetáculo mais popular do Teatro Civile, visto por mais de três milhões de espectadores, abrindo o caminho para o gênero cintemporâneo mais popular na Itália. O espetáculo é encenado anualmente na Represa do Vayont, desativada após o desastre, para lembrar de uma história que não queremos ver repetida.
[1] Marco
Paolini é autor e intérprete de um repertório que pertence ao chamado Teatro Civile. Os seus espetáculos,
grande parte monólogos, afrontam temáticas complexas. Aliás, o autor se
especializou em criar espetáculos sobre desastres reais, instigando a população
a lembrar dos fatos “para que eles nunca se repitam”. Paolini é considerado um
dos maiores expoente da primeira geração
daquele quase gênero, definido como Teatro de Narração: Um teatro que segue
os rastros das lições do Mistero Buffo
de Dario Fo e se fundamenta nos contos de um performer que - sem maquiagem,
figurino ou cenografia – Assume a função de narrador, com a própria identidade,
sem interpretar um personagem específico, mas colocando-se na posição de
diversos.
[2] As
duas cidades italianas, Marzabotto e Sant'Anna di Stazzena, foram deliberadamente massacradas pelos
nazistas, com apoio do exército fascista de Mussolini, em agosto e setembro de
1944. Praticamente toda a cidade foi friamente assassinada, todos civis,
incluindo crianças e mulheres, em ações premeditadas com o intuito de coibir
possíveis apoios aos grupos rebeldes.
[3] O
desastre do Vajont – ocorreu em 1963, quando uma empresa ignorou os dados
técnicos e insistiu em construir uma represa em terreno instável. Ao encher a
represa o terreno das laterais cedeu caindo dentro do grande lago e formando
uma onda gigante que superou as comportas e destruiu completamente duas cidades
que se localizavam ao seu percurso. Milhares de pessoas morreram e as cidades
foram completamente destruídas.
[4] A matança de Piazza Fontana ocorreu em dezembro de 1969, em 53 minutos 5 bombas explodiram em locais com
muita circulação de pessoas, em Milão e Roma, começando na Piazza Fontana em Milão. O atentado terrorista foi
atribuído a um grupo neo fascista e até hoje ainda não foi completamente
esclarecido.
[5]
Aldo Moro – político italiano morto pela Brigada Vermelha, junto com os
policiais que faziam a sua escolta, em 1978.
[6] Desastre de Ustica relata o acidente aéreo de um avião comercial que explode sobre o mar após decolar de Bolonha
com destino a Palermo, em 1980. As investigações lançaram mais suspeitas do que
esclarecimentos e se cogita uma trama internacional.
[7] Destilado
da uva. No Brasil é conhecida também como graspa.
[8]
Estratégia de tensão – é como foi conhecido um período da história italiana, na
década de 1970, no qual houve um profundo confronto entre violentos grupos
terroristas neonazistas e um não assumido “terrorismo de Estado”, promovido por
militares e políticos, que pretendiam coibir um golpe comunista.
[9] Partigiano é como se chama na Itália o combatente armado que não pertence a nenhum exército
oficial, mas a um movimento de resistência, fortemente organizado, para
enfrentar o exército regular, em uma guerra assimétrica.
[10] Republicanos di Salò - Exército criado durante a segunda guerra mundial, treinado pelos alemães para
combater os anglos americanos e, principalmente os partigiani.
[11]
Fausto e Iaio, jovens de 18 anos que foram assassinados a tiros quando
retornava pasa casa em Milão, 1978. Vários grupos assumiram o atentado. Para a
polícia possivelmente teria sido realizado por um grupo neonazista. As
investigações mostraram que os jovens estavam investigando, documentando, o
tráfico de drogas na região onde viviam.
[12] Também
conhecida como Famiglia Montalbano, Organização
criminosa italiana, de cunho mafioso, da região da Calábria.
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