sexta-feira, 27 de maio de 2016

Físico de narrador – O corpo no Teatro dos “atores que narram”

Nosso artigo de hoje traz uma análise do trabalho corporal de dois importantes atores do teatro de narração italiano.
O Teatro de narração é um novo gênero do teatro italiano e se diferencia dos espetáculos de narrativas orais que estamos acostumados no Brasil (observem os vídeos anexados ao artigo), embora também sejam caracterizados por uma pessoa em cena que conta histórias. Esse gênero possui um caráter mais social e, a partir dele, desenvolve-se o Teatro Civile, um sub gênero que é a tendência italiana em Teatro moderno e sobre o qual já escrevemos anteriormente[i] e que se caracteriza por uma temática voltada para a atualidade política e social.
Boa leitura!
Marco Paolini - imagem do site
http://cinema-tv.virgilio.it/


Físico de narrador – O corpo no Teatro dos “atores que narram”

Por Nicola Zuccherini, disponível no portal de literatura
http://www.griseldaonline.it/temi/il-corpo/fisico-da-narratore-zuccherini.html

Tradução de Claudia Venturi

Dizer, atualmente, que um escritor é um narrador, é dizer pouco. Poderá, no máximo, dizer que ele produz romances ou contos, mas neste ponto todos irão querer saber a qual gênero ou a qual estilo literário pertencem estas obras (e nenhum leitor irá além da primeira linha sem o saber) e a definição ainda não significará nada. Dizer isto de um ator, ao contrário, é atribuir a ele um território bem preciso: de um “teatro de narração”, se diz então, até de forma autoral, como de um gênero com as suas regras, os seus filões bem distintos, os seus criadores de gênero literário[ii]. Os narradores são os atores que recriam sozinhos, que assinam os seus espetáculos do texto à direção (mas com importantes colaborações), que contam histórias reais, imaginárias, ou tradicionais, mas sempre bem sedimentadas em uma memória coletiva, que constroem os seus textos sobre uma base de longas pesquisas do tipo antropológico, jornalístico ou sociológico, que com os seus espetáculos desenvolvem uma função de denúncia, de revelação, de protesto ou de educação e memória civil. Os nomes são bem conhecidos dos espectadores de teatro: Marco Paolini, Laura Curino, Marco Baliani, Ascanio Celestini, Davide Enia.
Laura Curino, imagem de http://www.barrios.it/

Um ‘gênero’ que se definiu no final dos anos 80, através de um processo inventivo original, um rompimento suave, não completamente percebido, na transmissão do saber e das práticas de palco. A narração foi a solução encontrada por alguns talentos frente a novos problemas da cena, aos quais as respostas clássicas do teatro experimental mais avançado não correspondiam. Marco Baliani, que com o seu Kohlhaas (1989) marcou a fundação do gênero, encontrava nos contos de um “ator sozinho” a estrada para abandonar as práticas tradicionais da cena e recusar o teatro de representação sem perder o contato com os conteúdos fortes e a comunicação com o público[iii]. Junto à companhia Teatro Settimo havia Marco Paolini e Laura Curino, que construíram as ferramentas do teatro de narração a partir de modelos compositivos autobiográficos que, sobretudo no caso de Paolini, utilizava fundamentos do teatro cômico[iv].

Marco Baliani - imagem de http://www.solaresonline.it/

O “gênero”, então, há uma forte raiz nas experiências teatral-experimentais dos anos 1970, mas desde cedo se distanciou daqueles tempos e dos estilos da pesquisa teatral. Os narradores apelam a diversos pontos de referência: poetas, escritores, profissionais, pessoas que talvez sejam próximas ao mundo do teatro, mas que não fazem parte dele. Em torno dessas experiências nasceu uma relação com os espectadores de uma intensidade que, no teatro italiano, parecia desaparecida para sempre: aproximação, cumplicidade e paixão, mas sem o cheiro de fechado de tantas experiências novistas[v]; grandes números, mas sem a passividade dos espetáculos para um vasto público. Do novo teatro dos anos 1970 os narradores conservam alguns modos de agir: a quase conexão entre a escrita literária e a direção, a elaboração lenta e complexa do espetáculo, o trabalho prático de oficina. O resultado é, porém, muito diferente: é “a extrema unificação entre a escrita teatral e a escrita cênica”, do qual escreveu Paolo Puppa[vi]. A palavra é central, a encenação é funcional ao conto, as sutilezas formais e estilísticas ao invés de serem exibidas, são integradas até desaparecerem na narração, há uma primazia dos fatos narrados sobre o evento representativo.

Davide Enia - imagem disponível no flickr.

E o corpo, então? Apenas um veículo, mesmo que potentíssimo, da história, apenas um fantoche possuído pela força da narração? Apenas um instrumento interpretativo? Não mesmo. Ao contrário, se observar a interpretação dos narradores é um ponto de partida indispensável para compreender como funciona a corporeidade do teatro deles, limitar-nos a este aspecto nos faria perder o caminho. É evidente: exatamente a forma particular desses textos, destinados à narração em público, torna a corporeidade do narrador um elemento indispensável à escrita. A relação que conta é aquela do corpo com a palavra: mas com a palavra escrita, não com a falada.

Ascanio Celestini - imagem do site http://www.ilrestodelcarlino.it/

Partimos – como prometido – da interpretação, aliás, da construção do conto que será interpretado, escolhendo dois exemplos que emblematicamente podem ser reconduzidos a duas fases diversas do “gênero” teatral narrativo: Marco Paolini e Ascanio Celestini. Marco Paolini coloca em cena espetáculos de narração do final dos anos 1980. Uma produção que, grosso modo, pode ser dividida em dois filões: aquele em primeira pessoa, em Album e nos Bestiari [vii], fundamentados sobre a trama de autobiografia, observação do presente e memória coletiva (e nascidos como espetáculos de teatro cômico) e o teatro de compromisso civil, narrado em terceira pessoa. Nascem todos de elaborações complexas, processos que colocam em campo não apenas o ator-autor e os seus colaboradores de cena (e de página, basta observar as longas listas de contribuições à dramaturgia que acompanham os programas dos espetáculos), mas também verdadeiras redações com tantos cronistas, operadores de vídeo e fotógrafos. Para colocar em cena precisa, então, rever os materiais, selecioná-los, cortar, espremer[viii]. Escolher aquilo que se pode dizer e aquilo que não se poderá contar. Daqui vem o texto que, podemos dizer, será verdadeiramente escrito somente quando o ator o colocar em cena para recriá-lo. Com a interpretação ganham vida não apenas os personagens e os eventos narrados: Paolini, escreveu Marchiori, “começou a multiplicar o ponto de vista e aprendeu a assumir [...] até aquele dos animais, das coisas inanimadas, da paisagem desamparada. Enfim, conseguiu dar voz à paisagem”[ix]. Paolini é um ator tecnicamente preparado e hábil. O corpo do ator é forte, mas não imponente, móvel, mas não plena agilidade; sobretudo as mãos desenham lugares, coisas e espaços, os posicionam, os indicam para trazê-los para a cena. Enfim, uma interpretação que não é apenas descritiva, mas serve para transformar a presença do ator de carne e osso em um corpo-paisagem.

Trecho de Album - espetáculo de Marco Paolini

Muito diferente é o caso de Ascanio Celestini, ator bem menos técnico e que nasceu artisticamente quando o teatro de narração já havia se tornado um gênero. Uma cena reduzida ao osso dos seus espetáculos mais consumados (em geral uma cadeira e um abajur, outros poucos elementos, nenhum objeto para manipular, sem comprometer o espaço do palco)[x] Celestini pratica uma escrita composta na qual entram as técnicas interpretativas e os métodos da etnologia e da história oral.
Sobre este assunto ele já falou várias vezes: “No centro do meu trabalho não está a encenação do espetáculo, mas aquilo que vem antes: uma pesquisa de campo. [...] A minha escrita e o meu modo de agir devem muito, sobretudo, a antropologia de Ernesto De Martino, Gianni Bosio e, hoje, Alessandro Portelli”[xi]. Há sobretudo uma particular capacidade de dar oportunidade ao conto das pessoas (aprendida em casa, diz) e de incluir a formação das memórias pessoais e coletivas[xii]. É sabido que os seus espetáculos emblemáticos nasceram de pesquisas, experiências e oficinas de caráter antropológico e teatral. Experiências um tanto complexas, às vezes, para desvincular da preparação do espetáculo e ter uma vida própria. Um material um tanto abundante e estratificado vem restituído com uma técnica de palco que, ao invés de enfatizar a variedade, reconduz tudo a uma economia extrema de meios cênicos e, sobretudo, interpretativos. Celestini é super concentrado: fica muito sentado, se movimenta pouco, confia a interpretação a breves movimentos das mãos e do rosto, se acena um gesto é porque aquele gesto serve para mostrar aquilo que o narrador viu ou o seu espectador. Os personagens e os lugares não são interpretados, mas vivem no texto.

Trecho de Fabbrica - espetáculo de Ascanio Celestini

O corpo-paisagem de Marco Paolini – que delimita e contém a história – e a concentração de Ascanio Celestini, garantida pela extrema economia de recursos interpretativos físicos: dois indícios do vínculo estreito entre o corpo e a escrita no teatro de narração. Leiamos também esta observação de Marco Baliani: “Então toca o sinal e o meu corpo vai em frente, sabe o que deve fazer, aonde deve olhar, ele tem uma boa memória. Tem razão o velho Beckett, ‘o meu corpo dará o melhor de si, mesmo sem mim’.”[xiii] Os textos estratificados, contidos e dilatados do teatro de narração encontram a sua definição só no corpo narrante[xiv]. No final dos processos de escrita e elaboração linguística, será a presença física do ator a desenhar e delimitar o que será narrado: um material de escrita muito especial para espetáculos que foram concebidos como livros, mas escritos com o corpo.



[i] Leia o artigo em http://circuloartisticoteodora.blogspot.com.br/2016/02/teatro-civile-tendencia-italiana.html
[ii] Sobre o Teatro de Narração e sobre a sua definição podem ser encontrados numerosas intervenções de Oliviero Ponte di Pino: “Il racconto. Conversazione con Marco Baliani, Il Patalogo 18, organizado por Franco Quadri, Ubulibri, Milão, 1999; Sei spettacoli na Raidue, Il Patalogo 19, IBID 2000”; Sobre a narração e seus narradores, “Diario della settimana” , 14 de abril de 1999. Intervenções atuais todas reunidas, consolidadas, nas páginas da revista online “ateatro” (www.ateatro.it). Da mesma revista veja-se o número monográfico dedicado a La narrazione e la voce (nº 56, agosto 2003). Igualmente importante são alguns livros “doutrinários”, escritos por narradores ou dedicados a eles: Oliviero Ponte Di Pino – Marco Paolini, Quaderno Del Vajont, Einaudi, Torino 1999; Fernando Marchiori, Mapa mondo. O Teatro de Marco Paolini, Einaudi, Torino 2003; Marco Baliani, Corpo di Stato. Il delito Moro. Rizzoli, Milão 2003; Ascanio Celestini, Cecafumo. Storie da leggere as alta você, Donzelli, Roma 2003. Uma perspectiva crítica mais imediata em Paolo Puppa, Il teatro dei testi. La drammaturgia italiana nel Novecento, Utet libreria, Torino 2003 pp. 200-209.
[iii] Fato narrado na entrevista organizada por Oliviero Ponte di Pino. Il racconto. Conversazione con Marco Baliani, obra citada.
[iv] A passagem de Paolini do teatro de representação para o de narração é contado por Fernando Marchiori, Mappa mondo, obra citada, pp 82-88.
[v] Tendência a considerar o que é novo melhor.
[vi] O teatro dos testos, obra citada, p. 200.
[vii] Espetáculos de Marco Paolini.
[viii] Para uma documentação destas atividades o filme Questo radichio non si toca. Diario di un’estate, de Giuseppe Baresi e Marco Paolini, prod. Jolefilm – Stilo 2003 (distribuído em videocassete anexa a Fernando Marchiori, Mappa mondo, obra citada).
[ix] Mappa mondo. Obra citada, p. 40.
[x] Pensemos em Radio Clandestina (2000) e Fabbrica (2002); observa-se que no mais recente Le nozze di Antigone, a escrita de Celestini se abriu para um tipo de narração com mais vozes.
[xi] Escutem! Chegou Ascanio Celestini, entrevista de Nicola Zuccherini, “Zero na conduta”, 6 de dezembro de 2002. Consultar também a entrevista dada a Tiziano Fratus, Lo spazio aperto. Il teatro ad uso delle giovani generazioni, Editoria e spettacolo, Roma 2002, p. 38 entre outras.
[xii] Consultar ainda o que disse a Tiziano Fratus, ló spazio aperto, obra citada, p. 33.
[xiii] Corpo di Stato, cit. p. 109
[xiv] que narra.

quarta-feira, 18 de maio de 2016

DESCOBERTA DE EDIÇÃO ORIGINAL DE SHAKESPEARE

Nesta semana decidimos publicar este artigo sobre Shakespeare, para lembrar de seu 400º aniversário de morte. O Círculo Artístico Teodora aproveita a data para preparar dois projetos teatrais sobre o dramaturgo britânico: damos continuidade a Shakespiradas, renomeada Shakespeareanas, com algumas alterações na equipe e novo fôlego; e iniciamos uma parceria com o ator Régius Brandão, com nossa atriz e presidente Claudia Venturi, na peça To play or not to play, já em processo de montagem.

Escócia, descoberta uma edição original das óperas de William Shakespeare

Publicado em 1623, sete anos após a morte de Shakespeare, o "First Folio" contém obras que nunca haviam sido impressas até aquela data: obras primas como "A Tempestade", "Henrique VIII" e "Macbeth" nunca teriam chegado até nós, sem este importante documento. Publicado em apenas mil cópias, até agora não se suspeitava que existissem outros exemplares deste tesouro: mas a descoberta, na ilha escocesa de Bute, de una nova cópia do "First Folio" reacendeu o interesse dos estudiosos ingleses, a exatamente 400 anos da morte de William Shakespeare.

CULTURA – 7 de ABRIL de 2016
por Federica D'Alfonso – em http://www.fanpage.it/scozia-scoperta-un-edizione-originale-delle-opere-di-william-shakespeare/
Tradução e adaptação de Claudia Venturi

Com o termo "First Folio" os estudiosos indicam a primeira publicação das obras de William Shakespeare: "Mr. William Shakespeares Comedies, Histories, and Tragedies", uma coletânea realizada por seus colegas, os atores John Heminges e Henry Condell, em 1623, aproximadamente sete anos após a morte do grande dramaturgo. O texto contém bem 36 obras, vinte das quais nunca foram publicadas antes daquela data: comédias como "A Tempestade", "Medida por Medida" e "A Comédia dos Erros", além de obras primas como "Henrique VIII", "Júlio César", "Macbeth" e "Antonio e Cleopatra" foram impressas pela primeira vez em absoluto exatamente no "First Folio". Trata-se então de um documento de excepcional valor histórico, além do monetário (o valor estimado gira em torno dos três milhões e meio de euros). Até então não se suspeitava da existência de outros exemplares desta obra prima, mas a descoberta, na ilha escocesa de Bute, de uma nova cópia do "First Folio", reacendeu o interesse dos estudiosos ingleses a 400 anos da morte de William Shakespeare.
Inserida pelo estudioso Martin Seymour-Smith na lista dos "100 livros mais influentes nunca escritos", a obra vem impressa em apenas mil cópias: chegaram até nós apenas 233 (cinco destas se encontram em posse da British Library), e se trata de um dos livros com impressão mais cara do mundo. Em outubro de 2001, uma cópia foi vendida no leilão da Christie's em Nova Iorque por pouco menos de um quarto de milhão de euros.

Na foto: Cópia de "First Folio", conservada em Washington D.C.
Foto da matéria original


Agora outra cópia, até então desconhecida, foi descoberta na biblioteca de uma mansão em uma ilha escocesa: o preciosismo livro permaneceu nas prateleiras de uma casa de campo de Mount Stuart, na ilha de Bute, por mais de um século. De propriedade de Isaac Reed, um estudioso ativo em Londres no século XVIII, a edição de Mount Stuart é insólita: o texto foi encadernado em três volumes, e apresenta muitas páginas em branco que, segundo os especialistas, teriam sido utilizadas para as ilustrações, que hoje não estão mais visíveis.
A cópia foi autenticada por Emma Smith, professora de Estudos Shakespearianos na Universidade de Oxford: uma carta autografada por Reed que acompanha o precioso texto confirmaria a aquisição em 1786 e a venda, após a sua morte, a um misterioso "J. W." por 38 libras esterlinas. "Quando pensamos em Shakespeare normalmente pensamos em suas obras representadas no palco. Mas a palavra escrita, e em particular o First Folio, torna-se fundamental para a nossa compreensão do trabalho de Shakespeare", explicou Smith.
Quando, em 1906, efetuou-se um primeiro recenseamento das cópias existentes do "First Folio" este exemplar ainda não estava incluído na lista: nessa data, a sua descoberta elevou o número total de cópias conhecidas para 234, a pouco menos de um mês do 400° aniversário da morte do grande dramaturgo, no dia 23 de abril. A descoberta constituirá o ponto focal de um novo programa de estudos shakespearianos, e é o exemplar central de uma mostra inaugurada em 7 de abril de 2016, em Mount Stuart, que permanecerá até o próximo dia 30 de outubro.

John Mullan - foto de goupspaces


John Mullan, professor de literatura inglesa junto ao University College de Londres, há muitos anos já havia se expressado sobre o profundo valor histórico que os manuscritos shakespearianos possuem, ainda antes que a extraordinária descoberta fosse feita. "Para os acadêmicos, esta é a mais importante de todas as publicações em língua inglesa", explicou Mullan em um longo editorial publicado no Guardian. "Shakespeare não se preocupava com a publicação de suas obras, pois o sucesso e as maiores arrecadações provinham das representações no teatro: apenas 18 das suas obras, exatamente metade da produção literária, surgiu em forma impressa durante a sua vida. Existe algo de milagroso na simples existência dessa edição".


William Shakespeare - foto do site do EBC Rádios

sexta-feira, 6 de maio de 2016

O MEU DIÁLOGO COM JERZY GROTOWSKI

De Volta à Sala Fechada: o meu diálogo com Jerzy Grotowski

De Franco Ruffini Universidade de Roma 3, Itália
Em: Revista Brasileira de Estudos da Presença
De jan/jun 2011


Imagem da internet - Spettacoli Teatro


Franco Ruffini é professor no Departamento de Comunicação e Espetáculo da Universidade de Roma 3. É membro fundador da equipe científica e pedagógica da ISTA (International School of Theatre Anthropology), dirigida por Eugenio Barba. É autor de diversos livros sobre teatro no Renascimento e sobre diretores-pedagogos do século XX: Artaud, Craig, Stanislavski, entre outros.








RESUMO – De Volta à Sala Fechada: o meu diálogo com Jerzy Grotowski – A partir da leitura de cartas e textos de Jerzy Grotowski, Eugenio Barba e Constantin Stanislavski, este texto discute as diferentes compreensões do autor acerca da obra de Grotowski. Ao comparar diferentes passagens de escritos de Grotowski e Stanislavski, este texto elucida e problematiza, do ponto de vista histórico, alguns elementos na genealogia da obra desses autores, incluindo a filiação de Grotowski em relação a Stanislavski. Por fim, apresenta-se o trabalho do ator no panorama de conceitos como memória e corpo-energia, próprios da herança desses diretores-pedagogos. Palavras-chave: Teatro. Jerzy Grotowki. Constantin Stanislavski. Eugenio Barba. Ator.

O Início: onde conto como encontrei a sala fechada

Uma carta, um livro

Roma, 31 de maio de 1997
Querido Jerzy,
eu nunca consegui lhe dizer, nem mesmo no outro dia em Pontedera. Agradeci-lhe apenas nos livros. Agora quero fazê-lo pelo menos por carta. Eu lhe conheci pela primeira vez em Wroclaw, em 1975, e não entendi nada sobre você e seu trabalho. Eu nem sequer tentei entender. Eu estava apaixonado pelo Odin e, principalmente, era apaixonado por mim mesmo; pior, pela minha inteligência. Uma única coisa posso dizer: para me desculpar. Eu soube imediatamente que eu tinha perdido uma oportunidade importante, e que a inteligência (aquela do cérebro) era a minha verdadeira inimiga. Isso não significa que eu obtenha, desde então, derrota. Eu não conseguiria nem mesmo hoje. Mais tarde, você me convidou para participar de um seminário para diretores, em Pontedera. Pediu-me para falar sobre Stanislavski e sobre as ações físicas. Em vez de falar sobre seus escritos, falei de minhas certezas como professor. Outra oportunidade perdida. Você disse que eu tinha falado de forma ortodoxa e você estava certo. A ortodoxia e a academia são irmãs e ambas se originam da presunção de inteligência. Passaram-se oito ou nove anos desde aquele encontro e espero ter aprendido alguma coisa com as minhas oportunidades perdidas. Acredito que Artaud me disse algo profundo e verdadeiro sobre você e o seu trabalho.
Não digo que entendi, não quero dizê-lo. Mas sei que o seu trabalho – na prática e no sentido – está no centro do teatro. Ele baseia-se no valor. Em abril passado, em Wroclaw, Flaszen falou de você, disse que "você procurava a verdade e encontrou a beleza" e assim recomeçou a procurar a verdade. Pode ser que haja um ponto no qual a beleza não é a perda da verdade, mas é a sua manifestação brilhante. Se alguém pode chegar a esse ponto, esse alguém é você. Obrigado. Um grande abraço,
Franco[i]

É difícil evitar que a sinceridade plena atravesse limites na intensidade. O essencial é que por trás da intensidade, esteja também presente a sinceridade. Isso existia naquela minha carta: palavra por palavra. Grotowski me respondeu, em poucos dias, com uma pequena mensagem na parte de trás de um cartão postal. Ele descreveu a minha carta como "um verdadeiro sinal de amizade" e concluiu dizendo que pensa em mim como "alguém muito próximo a [seu] coração". Pode ser que até mesmo em suas palavras houvesse intensidade. Tenho certeza que havia sinceridade por trás.
31 de maio de 1997. Outro dia que mencionei na carta foi 26 de maio, quando houve a cerimônia de outorga da cidadania honorária de Pontedera para Eugenio Barba. Na ocasião, Barba, falando com Grotowski do livro que estava escrevendo sobre seu aprendizado na Polônia, de 1961 a 1964, disse que os amigos aos quais ele deu para ler o primeiro rascunho, tinham visto uma história de amor. Grotowski riu um pouco, entre ironia e nostalgia. É verdade: A Terra de Cinzas e Diamantes é uma história de amor, quando se usam palavras tão pomposas (Barba, 2004). Mas é também muito, muito mais.
As cartas de Grotowski que foram publicadas levantam questões inéditas, para além do trabalho realizado com Cieslak em o Príncipe Constante, ao qual se referem. Falam de "um conhecimento absolutamente concreto que você pode estudar e testar no seu próprio organismo". Está escrito em uma carta datada de 21 de setembro de 1963 (a parte em itálico é de Grotowski). Eles falam sobre algo que você não pode ou é inútil falar. A palavra não é o próprio organismo.
Uma sensação similar eu sempre sentia quando lia Per un teatro povero. Como se também no seu livro Grotowski mostrasse algo que, porém, não podia ser colocado na página. As cartas confortavam essa minha sensação. Elas sugeriam-me a base, o alicerce. Per un teatro povero pareceu-me como uma casa bem construída com uma sala no centro. Rodeando-a, o livro-casa aponta a sala, entretanto, a sala está vazia.
Eu tinha o título para um ensaio, que na verdade foi intitulado assim: A Sala Vazia. Um estudo sobre o livro de Jerzy Grotowski. Ele saiu em 2000. Hoje o título mudou e está reduzido nas suas dimensões. A sala vazia está renomeada como a sala fechada. É cheia, mas não de palavras. O livro-casa que a contém não permite a entrada. Está cheia e, por esta razão, está fechada (Barba, 1965).
A sala fechada, então. Em 1968 vem publicado, em inglês, Towards a Poor Theatre (Per un teatro povero), como número 7 da revista Teatrets og Teknikk Theory (TTT), normalmente publicada em dinamarquês pelo Odin Teatret de Eugenio Barba. Os textos de Grotowski são apenas 5 de 14; os dois ensaios mais amplos e orgânicos foram publicados recentemente por Barba em seu livro de 1965, Alla ricerca del teatro perduto (Barba, 1965). No entanto, e apesar de na época não falar inglês, Grotowski participa do trabalho editorial de forma diligente e meticulosa; realizando cortes e variantes e controlando a tradução palavra por palavra.
Lembra Barba, promotor do livro, que "[...] houve uma mudança nas prioridades de Grotowski". Depois do trabalho sobre o Príncipe constante, "[...] tornou-se central ‘o ato total’ do ator e o processo para chegar lá” (Barba, 2004, p. 93). A preparação do espetáculo abrange os anos de 1963 a 1965. Aquele trabalho e aqueles anos são o motor central do livro.

Eugenio Barba - foto da internet, do site
SIBIU - International Theatre Festival

Ainda assim, o índice apresenta um vácuo peculiar daquele período. O treinamento do ator (1959-1962) e O treinamento do ator (1966) são os títulos de dois capítulos dedicados especificamente ao treinamento (training). Um após o outro, com o mesmo título – inclusive, no caso de 1966, dado ex novo para a transcrição de um seminário –, mesma indicação temporal entre parênteses. Vácuo entre 1963 e 1965. Isso seria o suficiente. Não existe maneira melhor de sinalizar uma descontinuidade que construir um ambiente de continuidade sobre o qual incidi-la.
Mas há, além disso, os resultados de fato. O treinamento do ator (1959-1962) retoma um texto publicado em 1965 por Barba em Alla ricerca del teatro perduto. Apareceu com o mesmo título, exceto a limitação temporal. Além disso, na versão de Per un teatro povero desaparece a lista dos mestres, que se referia a 1964 (Barba, 1998). É eliminado, por fim, toda referência ao Kathakali, que foi introduzido no treinamento (training) do Teatro Laboratório em dezembro de 1963 – quando Barba trazia a descrição da Índia – permanecendo apenas alguns meses (Barba, 1998, p. 55). Todas as três intervenções – a introdução de limites temporais, a eliminação da lista dos mestres e da referência ao Kathakali – têm, claramente, concordemente, o efeito de retrodatar a escrita de Barba para 1962, criando assim um vácuo de anos no panorama do Treinamento do ator.
O que Grotowski queria apagar com aquela lacuna temporal? O contexto no qual a busca de resposta é oferecida por meio da comparação entre a versão não datada de O Treinamento do ator e aquela antedatada a 1962. Do texto original resulta excluído um trecho longo sobre os exercícios psíquicos para o transe. O mesmo trecho, em termos mais amplos, apareceu também no Novo Testamento do Teatro, versão de Barba. Mas ao propor novamente o texto – com o mesmo título – em Per un teatro povero, o trecho foi excluído, embora neste caso não houvesse problemas de data para impô-lo.
A antedata da versão de Barba do Treinamneto do ator foi um fato intencional. Caso contrário, por que cancelar todas as provas que prolongaram a cobertura temporal até depois de 1962? A eliminação dos exercícios psíquicos para o transe também foi intencional. Caso contrário, por que motivo aplicá-la também pelo Novo Testamento do Teatro?
É claro que as duas intervenções não são independentes uma da outra: os anos de vácuo tiveram o efeito de excluir a questão do transe e é claro que não se tratou de um efeito acidental, ou indesejado.
Isto é o que o livro poderia dizer. Para avançar é preciso sair.
Em uma carta datada de 15 de setembro de 1963, quando ele recentemente havia começado o trabalho com Cieslak para O Príncipe Constante, Grotowski escreve a Barba e diz estar "recapitulando as [suas] investigações deste último período". Aquele trabalho foi uma revelação para ele, uma "[...] experiência não comum, que compromete até os próprios limites".
Em 5 de Abril de 1965, no limiar da estreia do espetáculo, falando sobre o livro de Barba e esperando a publicação em polonês, Grotowski acrescenta que, neste caso, teria que "[...] acrescentar um apêndice sobre o desenvolvimento do método de 1964 [data em que o livro foi aprovado para a edição em italiano] até hoje".
Tal qual a edição polonesa, também o apêndice planejado nunca viu a luz. Entretanto, é possível imaginar o seu conteúdo através da leitura das cartas daquele período. "Atravessamos uma fase de trabalho que é diferente daquela que ele participou” – escreve em 29 de dezembro de 1964 – “da maneira de conduzir os ensaios do Príncipe Constante até os exercícios, tudo é distante, até diferente de como o fazíamos antes [...] as minhas ideias agora são heréticas em relação as anteriores (aquelas do período da sua estadia)".
Aquilo que Barba poderia testemunhar foi a primeira das heresias. O desenvolvimento do método revelou "um fenômeno psíquico útil para tarefas concretas (para a ‘técnica 2’, e não em nível inicial)", como se lê em uma carta datada de 6 de fevereiro de 1965. O destaque é meu.
Sobre a técnica 1 e técnica 2, Barba recorda as longas e apaixonadas conversas com Grotowski. A técnica 1 é a arte teatral, transmitida a partir de Stanislavski. A técnica 2 tende a liberar a energia espiritual para "[...] o acesso as regiões conhecidas pelos xamãs, pelos iogues, pelos místicos [... e] avançar na noite escura da energia interior” (Barba, 1998, p. 53-54).
Os exercícios psíquicos através do transe relatados por Barba eram o nível inicial da "técnica 2". O desenvolvimento do método só aconteceria com o trabalho com Cieslak em O Príncipe Constante. Grotowski não escreveu isso, como sabemos. Além disso, ele cuidadosamente riscou do livro até a premissa, o nível inicial. Por quê?

Jerzy Grotowski - foto de blog da internet

A resposta é o próprio Grotowski que fornece de forma inequívoca. Para a apresentação do Príncipe constante, havia escrito um texto-programa, como ele o define, intitulado Per un teatro povero[ii]. Está no início do livro: entrega-lhe o título e o programa. Na versão original aparecia a seguinte passagem: “[...] na verdade pode-se afirmar que, neste método o processo interior é em si uma forma de conhecimento técnico, mas não seria totalmente exato. Porque esse processo não pode ser ensinado”.
Na versão do livro, essas linhas desaparecem. Mas apenas no papel. O fato permanece. Seja qual for o nível, “[...] o processo interior não pode ser ensinado". Ele não pode ser escrito em um livro, destinado objetivamente – se não pensado – para ensinar. O que mais as palavras escritas podem fazer em um livro?
Mas, se as palavras ensinam o que dizem, através daquilo que omitem, têm o poder de indicar. Trata-se de um espaço de silêncio, fato que está presente – por omissão – em um discurso que renuncia em entrar dentro dele. Porque não é possível entrar dentro.
Onde termina o ensinamento, só ali pode começar a transmissão. A transmissão exige o ensinamento – o processo espiritual pressupõe o ofício, a arte – mas a transmissão não é o ensinamento. Trata-se de preceitos, bons conselhos, exercícios para ensinar, que circunscrevem o espaço do que não pode ser ensinado.
A sala fechada.
O encontro com a sala fechada está no início do meu diálogo com Grotowski. Mas há início e início. Há o início que não tem nada por trás dele. Um tempo zero. E há um início que é um laço de tempo: onde juntam-se, o antes e o depois se passam o bastão.

Primeiras Lembranças, para Olhar em Frente

Wroclaw, 1975. Mel em São João

Quase toda noite havia um UI (Colmeia), que era aberta para todos os participantes [...] Imediatamente depois do primeiro UI ao qual participei, transcrevi a máquina as minhas impressões. Subimos as escadas até a sala onde aconteceu o espetáculo Apocalypsis, mas por uma outra entrada. [...] A sala era quente. Nós sentamos lá por um longo, longo tempo. Depois alguém começou a cantarolar de boca fechada e isso prosseguiu por um longo tempo e devagar se chegou em uma situação na qual todos cantarolavam ou cantavam ou emitiam sons. A seguir todos nós levantamos e começamos a dançar e depois – BUM – chegaram as pessoas correndo com tochas acesas [...] Então alguns saltavam em cima e agarravam as tochas e corriam ao redor da sala, cantando, gritando e cantando salmos [...] e depois alguém trouxe uma jarra de vidro grande que continha mel. No início não sabia que espécie de líquido poderia ser. Uma pessoa mergulhou a mão dentro do mel e depois passou, por assim dizer, a mão em outra pessoa que pegou um pouco de mel e também lambeu um pouco da mão e foi indo desse jeito. As pessoas pegavam o mel dos outros e do recipiente e davam a mão para alguém para lambê-la ou chupar os dedos. Era como um sacramento, um sacramento laico, carnal [...]. Foi muito agradável, suave, leve, fácil, algo que parecia um ritual.

Esta é uma de muitas Colmeias que ocorreram durante a Universidade da Pesquisa, entre 14 de junho e 07 julho de 1975, em Wroclaw, na sede do Instituto Grotowski. Faziam parte do Programa Geral, aberto a todos. Para acessar as atividades do programa especializado era necessário, ao contrário, uma entrevista pessoal com Grotowski, para uma autorização formal e decisiva[iii].
As Colmeias – num total de 21 – assemelhavam-se um pouco na estrutura. Aquela que eu chamo de “colmeia de mel” foi a da qual eu participei. Mas o testemunho que citei não é meu. É de Richard Brennen, um estudioso reputado, como muitos outros dos presentes, que tinham seguido na América as atividades do “Special Project”, do qual a Universidade pode ser considerada a conclusão (Brennen, 1975, p. 63-64).
Na época eu não era um erudito, muito menos reputado. Eu ensinava matemática nas escolas secundárias e, por uma série de circunstâncias que aqui não é o lugar para lembrar, eu estava em Wroclaw com o Odin, acompanhado por Ferruccio Marotti. Dos estudos teatrais eu sabia principalmente que, com um pouco de mente aberta, era possível reciclar as habilidades que eu havia adquirido por minha sorte na formação científica.
É como eu escrevi muitos anos mais tarde, em uma carta para Grotowski. Além do desejo de mudar de emprego, para atrair-me para o teatro era somente a paixão pelo Odin – do qual havia sofrido as faíscas de Ferai, em 1970, e de Min Fars Hus, em Roma, em 1974 – e, para o meu entendimento, eu estava me colocando à prova, com incursões nas recém-surgidas disciplinas semióticas.
Ao contrário de Brennen, para mim a Colmeia de mel não foi um sacramento laico, carnal ou ritual. Não foi agradável, suave, leve, fácil. Foi um tormento. Além disso, foi uma humilhação de inteligência e, de certa forma, uma humilhação do Odin. Um insulto para os dois objetos do meu amor. Eu também tinha uma entrevista pessoal com Grotowski, para autorizar as atividades do programa especializado. Das suas palavras não entendia nada. Inútil dizer que não fui ao encontro.
À noite, na mesma sala da colmeia de mel, assistia a Apocalypsis cum figuris, não podia não ser tocado. E Barba repetia que Grotowski era o seu mestre. Se não tivesse sido por estas duas condições, com base apenas no mel e na entrevista pessoal – Deus me perdoe – eu teria arquivado Grotowski como um charlatão brilhante.
Posso dizer hoje que o mel de Wroclaw, em 1975, e aquele encontro traído foram a fonte da minha paixão pelo teatro: se é verdade – como é real – que a paixão não é a mesma coisa que amor. É amor mais sofrimento. Amor alimentado pelo sofrimento.
A colmeia de mel e o encontro traído me fizeram tocar com a mão o rosto do padecimento. Ou, se a palavra soa forte demais, o rosto do sofrimento. Eu toquei o rosto do prazer na festa de São João.
A tabela 222 em Grotowski Sourcebook leva a didascália “Grotowski and Barba, Wroclaw, 1975”. É uma foto de Tony D'Urso e foi feita durante a festa de São João. Barba e Grotowski estão de pé, ambos com camisa de mangas, braços cruzados e com óculos grandes. Não é possível saber o que eles olham, pois a foto não mostra. Grotowski aparece magro, com cabelos longos, bem como Barba. Barba está com uma expressão de sorriso, Grotowski com expressão neutra. Na parte baixa, sentados no chão, um grupo de jovens com roupas e rostos da época. Na foto inteira, publicada pela Osinski, e que está entre as relíquias de uma parede gloriosa do meu escritório, eu também apareço junto com Fabrizio Cruciani (Osinski, 1998, p. 28-29).
Em outro disparo da mesma série, é possivel ver o que nós estávamos olhando. Era uma atriz do Odin com um vestido de palhaço. Está de costas, inclinada para o chão. Eu não lembro o que ela estava fazendo, mas com certeza foi uma coisa engraçada. Barba ria visivelmente; Grotowski também ria, porém um pouco menos visível. No fundo, um emaranhado de árvores e arbustos, grama alta no chão.
A festa de São João ocorreu em uma floresta, e ria-se, se era feliz e se mostrava. Foi organizada por Barba juntamente com os atores do Odin. Se não foi intencionalmente uma resposta contra a corrente para as colmeias de mel e para as atividades especializadas, com certeza, como tal, foi vivida por muitos dos participantes. Lembro-me de um grande gramado em declive, as pessoas corriam e se deixavam rolar. Havia longas cordas com um nó no final, penduradas nas árvores. Sentava-se sobre o nó como se fosse montar em um cavalo e faziam oscilações vertiginosas. Os atores do Odin estavam espalhados pela floresta. Faziam música e, de repente, os encontrava depois de ter sido deixado chamar pelo som. Aqui e ali, havia mesas com coisas simples para comer e beber. Um tronco cortado queimava sobre um platô, e muitos – eu por primeiro – aquecidos pelo prazer, pelo vinho, pela felicidade e pela gangorra, dançavam ao redor, cantando também.
Houve tudo o que havia na colmeia de mel – música, canto, dança, fogo – mas com um sinal oposto. Na colmeia o sorriso nunca explodiu em risos, aqui o primeiro a explodir foi o riso, para depois decantar em sorriso. Lá, as chamas eram um ponto brilhante comido pela escuridão; aqui a luz cancelava a escuridão. Aqui, os guias acompanhavam você sem saber onde você queria ir, na colmeia lhe levavam para onde você sabia que não queria ir.
Encerro aqui a narração, porque a colmeia de mel e a festa de São João, ambas, são aquelas coisas que não suportam ser contadas. Como os balões das crianças que, quando você tira o conteúdo, se esvaziam e não permanece mais nada.
A colmeia de mel e a festa de São João. Sofrimento e prazer, Grotowski e Barba: um separado do outro. Meu esforço constante, até agora, foi para não separá-los. Sem confundi-los.

Pontedera 1989. O cigarro de Stanislavski

Roma, 28 de outubro de 1999
Querido Thomas e querido Mario, quero agradecer pela paixão e habilidade com que vocês leram meu texto e reagiram. Mas esta pode ser uma ocasião não apenas para trocarem-se justos e agradáveis louvores. Vocês sabem o que eu quero dizer. Recapitulando, um pouco drasticamente. Eu escrevi um texto sobre Per un teatro povero de Grotowski. Eu não os consultei para decidir fazê- lo, e agora, com as coisas feitas, não pretendo mudar em relação a resposta de vocês. Isso quer dizer que peço autonomia. Depois de escrever, eu lhes enviei o texto, submetendo-o sem reservas à crítica de vocês. Isso significa que peço colaboração.

Com este e-mail – o resto não tem interesse – fechava uma pequena espécie de controvérsia com Thomas Richards e Mario Biagini, sobre o meu ensaio A sala vazia. Um estudo sobre o livro de Jerzy Grotowski, que sairia em 2000 em Teatro e Storia. Algumas semanas antes lhes havia enviado o texto e estava muito interessado nas suas reações. Nós nos encontramos alguns dias depois, em Pontedera e, as reações deles – especialmente aquelas de Biagini – vieram: com competência e muita paixão, mesmo que juntamente com apreciações positivas.
Um ano depois, durante um seminário com os alunos da Universidade de Roma 3 La Sapienza (28-30 de novembro de 2000), Biagini lembrava meu ensaio recém publicado, renovando os elogios mas confirmando "[...] não estar de acordo com algumas conclusões e que se tratava de temas importantes”. Eu não pensava mais no assunto, até acontecer de eu ler uma versão revista daquele seminário. Está em um livro de 2007 (Attisani; Biagini, 2007). Inesperadamente – depois de muitos anos – eu encontrei a citação do meu ensaio.
É uma boa ideia tratar o caso como um mestre do improviso. Então decidi fazer aquilo que eu não havia feito da primeira vez, isto é, mudar o ensaio em relação às críticas recebidas. As quais eram substancialmente três: 1) ao começar pela análise de Per un teatro povero, esticava indevidamente – e, em alguns aspectos erroneamente – o arremesso ao trabalho no Workcenter; 2) ao apontar os cortes feitos nas versões originais dos materiais, acabava por sugerir que o que estava contido nas passagens suprimidas – essencialmente os exercícios psíquicos através do transe – descrevesse o trabalho de Grotowski com Cieslak em O Príncipe Constante e não, simplesmente, constituísse uma premissa; 3) defini incorretamente o exercício de composição rítmica sobre o tema de acender um cigarro – também eliminado – "uma típica linha de ações físicas segundo Stanislavski".
Quanto às duas primeiras questões, Biagini estava certo. Consequentemente intervi, como é possível verificar inclusive na versão suscinta que coloquei no início. Mas o cigarro de Stanislavski não: naquela questão, Biagini não tinha razão.
Não valeria a pena calar-se em uma polêmica acadêmica, se não fosse por um seminário sobre direção em 1989.
De 7 a 11 Agosto de 1989, em Pontedera, Grotowski realizou um seminário sobre direção. Trabalhava-se continuamente das onze horas da noite até as cinco, seis da manhã. Fui convidado para participar como um erudito, com Nicola Savarese e Ferdinando Taviani, e Grotowski me pediu para falar aos participantes – na sua presença – justamente sobre as ações físicas segundo Stanislavski.
Querido Jerzy, me preparaste uma armadilha e eu caí dentro dela. Outra oportunidade perdida, te escrevi na minha carta de 31 de maio de 1997. É para tentar recuperar o tempo perdido que eu falo agora das ações físicas, a partir do cigarro de Stanislavski.
O exercício consiste na decomposição da ação de acender um cigarro ao vento, ou ainda mais, sequências indivisíveis como: 1) eu quero acender um cigarro; 2) olho para onde estão os cigarros; 3) estico a mão; 4) pego o pacote, e assim por diante. Na terminologia de Stanislavski, acender um cigarro é a "ação maior", ou principal, as sequências indivisíveis são as "ações auxiliares". Cada uma dessas ações deve ser realizada sem acessórios, de tempos em tempos, variando o temporitmo, e certificando-se que há sempre uma justificativa.

Konstantin Stanislavski -
imagem da inernet

Além da correção para a definição de tal exercício como "[...] uma típica linha de ações físicas, segundo Stanislavski", Biagini acrescentou não saber "[...] o que Grotowski disse desse exercício na versão anterior ao corte [...] nem o motivo do corte", enfatizando que, para Grotowski, as sequências indivisíveis e individuais (olhar, estender a mão) são "atividades" e não ações (Attisani; Biagini, 2007, p. 33-34).
Continuo por pontos. A capacidade de transformar uma atividade em ação é um, se não o principal, entre os desafios do exercício, caso contrário degenera em mera formalidade técnica. Stanislavski é absolutamente claro em relação a isso. As ações auxiliares são auxiliares, mas devem ser ações, não "atividades". O exemplo atual é aquele de escrever uma carta sem uma caneta ou papel ou tinta, "sem nada". Stanislavski levou isso em conta por toda a vida, e Grotowski lembra o mesmo (Flaszen; Pollastrelli, 2001, p. 186). Privado de objetos, além de segmentar a ação principal, o ator é obrigado a comensurar mentalmente cada ação ao objeto inexistente. Ele deve estar totalmente concentrado, passo por passo, momento por momento.
De acordo com Stanislavski, a sequência de acender o cigarro era uma linha típica de ações físicas, sem dúvida. Igualmente certo é que Grotowski a considerava como tal. Basta verificar as versões anteriores ao corte contidas no Théâtre psychodynamique, de 1963, e em Alla ricerca del teatro perduto, de 1965. Em ambas as versões cita-se as ações físicas de Stanislavski como uma das fontes para o treinamento do ator, e se reporta ao exercício do cigarro.
Além disso, me confirma Barba que "[...] no tempo de Opole, Grotowski sempre citava o exemplo de acender um cigarro como um exercício de Stanislavski, a tal ponto que eu sempre pensei que havia lido em algum texto do diretor russo ou que havia aprendido durante a sua estada em Moscou”. Basta assim.
O problema está além disso: está nas razões pelas quais Grotowski eliminou o exercício da sua obra Per un teatro povero. Em Alla ricerca del teatro perduto apenas diz que aquele tipo de exercício "[...] não causa uma verdadeira concentração psíquica do ator (transe)" (Barba, 1965, p. 131). A versão anterior, no Théâtre psycho-dynamique, é mais analítica: “[...] os exercícios de Stanislawski não levam a um transe [...] Esta forma de concentração é fundamental para o ator artificial (ator de composição)[iv]”. Ela afeta o esclarecimento. Quase um aviso para evitar confusão. Grotowski distingue claramente: "[...] eu diria que existem dois tipos de ator: o ator do processo e o ator da composição. O maior ator que eu conheci no campo do processo foi Ryszard Cieslak" (Grotowski, s/d, p. 79). Em um livro cujo centro motor – mantido na sala fechada – era justamente o processo interior que “não pode ser ensinado”, melhor deixar cartas de escrever ou cigarros para acender “sem nada” aos livros de Stanislavski.
Sabia muito bem que para interessar ao Grotowski de Pontedera não era o método das ações físicas para acender cigarros nem, muito menos, aquele utilizado pelo diretor para a encenação. E, no entanto, decidi falar justamente deste último. Fazia algum tempo que eu tinha lido na edição inglês do livro de Toporkov sobre os últimos anos de Stanislavski, e eu sabia qual a importância que Grotowski lhe atribuía (Toporkov, 1979, 1991). Os exemplos pro domo mea não faltavam. Citei-os em abundância. Que melhor oportunidade para pavonear-me um pouco diante do mestre? Concluí afirmando que o método das ações físicas – aquele do qual falei, naturalmente – não foi uma revolução para Stanislavski.
No final da jornada de trabalho, Grotowski parou para falar comigo. Ele disse que eu tinha feito uma boa lição ortodoxa, como um verdadeiro professor. Ele o fez, sorrindo e olhando-me diretamente nos olhos, por trás daquelas lentes grossas, como pela primeira vez em Wroclaw muitos anos antes. Enquanto eu esperava pela reprovação que eu mesmo havia procurado, inesperadamente ele começou a falar sobre o livro de Toporkov. É um livro fundamental para a compreensão de Stanislavski, disse ele, mas é preciso estar atento às datas. Sendo um livro, tendemos a lê-lo como uma unidade de texto, quando na verdade ele apresenta três momentos muito distantes no tempo, de Dissipatori de 1927, a Anime morte de 1932 e a Tartufo de 1938. As datas são importantes, concluiu. Em seguida, ele acrescentou que para compreender plenamente o livro de Toporkov é preciso lê-lo em paralelo, inclusive retroiluminado com o Romance teatral de Bulgakov. A contralição de Grotowski terminou assim. Mesmo sorriso e nada mais. Despedimo-nos.
O que ele queria me dizer? Só posso dizer o que eu senti das suas palavras.
Ao declarar em diversas ocasiões a continuidade e, ao mesmo tempo, o salto de seu próprio trabalho em relação ao de Stanislavski, Grotowski nunca utilizou indicações de tempos genéricos. Ele disse que sua pesquisa tinha começado no ponto em que Stanislavski tinha parado, “[...] porque ele morreu" (Grotowski, s/d, p. 50). Ou seja, desde Tartufo, durante o qual justamente a morte o levou. É nas experimentações de Tartufo que “aconteciam as coisas mais interessantes”. Basta ler. As ações físicas, que eram a espinha dorsal, não eram destinadas ao diretor para a construção da peça, eram "trabalho interior para os atores", como aponta Grotowski (s/d, p. 93). Além do cigarro para acender, tratava-se do processo do ator na estrada.
Touché: as datas com certeza são importantes.
Retroiluminado com o livro de Toporkov, essa paródia do Romance teatral revela a primeira condição para embarcar naquela estrada. Toporkov refere-se ao livro de Bulgakov, justamente no capítulo sobre Tartufo. Centra-se no episódio em que o Stanislavski da ficção de Bulgakov constringe um ator a fazer a sua declaração para a amada, pedalando uma bicicleta. Mas não se encandaliza. Na verdade, ele conclui que "[...] se você excluir alguns exageros que dão um tom cômico para a história, o método de trabalho em si é muito típico de Stanislavski" (Toporkov, 1991, p. 104-105).
Como Toporkov conhecia o livro de Bulgakov, Bulgakov também devia conhecer bem o trabalho de Stanislavski no seu último Estúdio. Se o episódio da bicicleta não encontra relação no testemunho de Toporkov, entretanto, encontra o exercício de escrever uma carta sem nada, como convém ridicularizar.
Mas nada melhor do que uma caricatura para ver a realidade. Toporkov tinha percebido isso sobre a bicicleta. Grotowski insistiu para que eu notasse a respeito da doença de Stanislavski, através da caricatura de Bulgakov. Stanislavski estava realmente morrendo, todo mundo sabia e inclusive ele sabia disso. Cada momento podia ser o último. No entanto, a palavra mais usada por Toporkov para descrever o trabalho é jogo. Não trabalhavam, jogavam. E a primeira regra do jogo era a confiança absoluta de cada um em relação ao outro e de todos em relação ao mestre.
"O que me interessa agora é transmitir-lhes a experiência que ganhei em toda minha vida", disse Toporkov para Stanislavski (Toporkov, 1991, p. 106- 107). Para coletar o trabalho de Stanislavski interrompido "porque ele morreu", para "transmitir a experiência", é necessária uma completa solidariedade, uma confiança íntima e incondicionada entre mestre e aluno. Como acontecerá entre Grotowski e Cieslak no Príncipe Constante.
"Onde termina o ensinamento – eu escrevi – somente ali pode começar a transmissão. A transmissão envolve o ensinamento, o processo espiritual requer o ofício, mas a transmissão não é o ensinamento”. Entre o ensinamento e a transmissão passa também a disponibilidade de pedalar em frente da mulher amada, com toda a seriedade de um jogo no qual você se coloca no jogo sem reservas, pudor ou medo.
Ao jogar ele também é o professor – com datas, comparando livros – acredito que Grotowski queria me dizer isso naquele encontro pessoal em Pontedera, depois da minha aula ortodoxa. A autocitação é apenas uma maneira de agradecê-lo.
Seguro da sua lição, podia tentar entrar na sala fechada.

Em Seguida, uma Olhada na Sala Fechada

O ator que voa

Em seu ensaio Os artistas do teatro da colmeia, que abre o livro sobre A arte do teatro, Craig volta-se para o ator. Não para dar conselhos sobre a atuação, mas para falar de voo. "Você é jovem, – diz ele – [...] Talvez já lhe perguntaram por que você queria se dar ao teatro, e você não conseguiu fornecer uma resposta razoável, porque o que você queria fazer nenhuma resposta razoável pode explicar: você queria voar". E ao não aplicar a si mesmo "as asas de um pássaro", mas voltando ao "antes da queda", quando o homem era em "um estado tão perfeito que apenas o desejo de voar já era para ele poder voar[v]”.
O ator que voa. Para essa utopia o teatro é devedor. A utopia é eficaz. Parece impor um objetivo impossível. Na verdade, ele indica um caminho difícil. Mas possível e necessário.
Se o voo do ator no estado imperfeito foi para Craig aquele de Icaro com as suas penas de pássaro, para Grotowski será o de uma galinha batendo as asas no vazio.

Ao ator que reúne rigor e dom, há algo que se revela como a vida que flui no corpo através do corpo". Mas é apenas "a pista de decolagem – conclui Grotowski. [...] O verdadeiro voo não está ligado ao físico" (Grotowski, 1992, p. 17).

O ator "no estado perfeito", disse Grotowski, deve ser capaz tanto de rigor quanto de dom. O rigor é a capacidade de ter a partitura até os mínimos detalhes. Mas, por trás, acrescenta, deve haver "algo misterioso", que é o dom de si. Não para o público: a "[...] algo que é muito maior, que está além de nós, que está acima de nós". Sem o dom, o voo é impossível. Mas não é o suficiente: há atores que têm uma possibilidade de ter o "[...] dom de si mesmo, mas não podem chegar a um verdadeiro rigor, a uma estrutura real, recaindo sempre em um nível elementar, é como uma galinha tentando voar, não há uma decolagem real". Ao ator que reúne rigor e dom, há algo que se revela como a vida que flui no corpo através do corpo". Mas é apenas "a pista de decolagem – conclui Grotowski. [...] O verdadeiro voo não está ligado ao físico" (Grotowski, 1992, p. 17).
Asas falsas, asas impotentes. Craig, Grotowski. Como se entre os dois mestres não houvesse diferença, mas apenas distância, de tempo e de contexto. Em vez disso, a diferença existe. Craig falava da Colmeia, Grotowski descreve uma situação concreta. O ator no estado perfeito é, em carne e osso, Ryszard Cieslak, no Príncipe Constante.

Ryszard Cieslak - imagem da internet,no site Culture.PL

Foi uma revelação. Eles falam com insistência e precisão nas cartas para Barba do período no qual o espetáculo foi preparado. Mais do que um treinamento em vista do espetáculo, se tratava de um "caminho prático", através do qual o ator pode "[...] avançar na noite escura da energia interior", como Barba especificará ao longo de anos (Barba, 2004, p. 54).
Entre o ator que voa de Craig e aquele de Grotowski passa o desafio daquele longo "caminho prático": além disso, com certeza, às custas do espetáculo.
O maestro com longa paciência pela autonomásia também se confrontava com o mesmo desafio. No último período de vida, até os últimos dias, Stanislavski se retirou no apartamento do beco Leont'ev para conduzir os experimentos do seu “Estúdio Operístico Dramático". Conforme comenta Grotowski, as coisas mais interessantes ocorreram "durante os ensaios de Tartufo, quando Stanislavski não estava nem mesmo pensando em fazer um espetáculo público. Para ele o trabalho em Tartufo era apenas um trabalho interior para os atores (Grotowski, s/d, p. 50).

Mesmo para Stanislavski, sair do espetáculo foi um preço a pôr em conta para "Tocar aquilo que não é tangível[vi]”. Mas naquele "trabalho interno para os atores", a interioridade não foi o terreno do trabalho. Foi a saída. O terreno era o corpo do ator, engajado no exercício das ações físicas.
O longo caminho prático que diferencia Grotowski de Craig começa pelo método das ações físicas de Stanislavski. Ele é bem conhecido, Grotowski o reiterou em várias ocasiões. O problema, porém, é o que se entende por método das ações físicas.
Por trás dessa fórmula, diferentes processos são frequentemente confundidos, para a diferente finalidade a que se propõem. Aproveito a observação que eu fiz sobre o cigarro de Stanislavski. Em um primeiro nível: há um método das ações físicas, cujo objetivo é desenvolver a concentração do ator, e há um método de ações físicas, cujo objetivo é ativar a memória afetiva. Num segundo nível: o método das ações físicas para fins de memória afetiva pode ser usado pelo ator no trabalho sobre si, ou ele pode ser usado – no entanto, com a mediação do ator – pelo diretor para “trabalhar a cena”.
A grande descoberta de Stanislavski foi que as ações físicas poderiam servir para estimular a memória afetiva, uma autêntica revolução. Não mais da memória afetiva – despertada através de métodos psíquicos – para as ações, mas das ações para a memória afetiva. Diante da situação dramática, o ator simplesmente se pergunta o que ele faria se estivesse nas circunstâncias dadas: e ele faz isso, entra em ação. Com maior precisão, com detalhes cada vez mais pontuais. Até que o corpo, por assim dizer, é transportado para a situação. Naturalmente, o transporte é muito mais fluido e eficaz quanto maior a situação pertencer à vida real do ator, ao invés daquela fictícia do personagem. Se é o corpo a viver outra vez – diretamente, sem a intervenção do mediador da memória afetiva – revive animado pela mesma afetividade de quando ele tinha vivido. A diferença entre o corpo e a alma perde a sua forma. Radicalmente, se resolve em uma qualidade diferente de energia que, no entanto, permeia o corpo: mais denso que aquele do corpo animal, mais sutil do que aquele do corpo animado.
Corpo-energia: nada mais.
Corpo-energia, como instrumento e produto das ações físicas. É este o testemunho coletado por Grotowski, para continuar além de Stanislavski, em direção ao corpo espiritual e à relativa energia.
Lembra Grotowski:
Quando eu trabalhava com o ator eu não estava pensando nem sobre "se" nem sobre as "circunstâncias dadas". O autor apela para a sua vida, sem olhar no campo da "memória afetiva" nem do "se". Ele se volta ao corpomemória, não tanto a memória do corpo, mas precisamente para o corpo-memória. E ao corpo-vida. Então ele se volta para as experiências que eram realmente importantes para ele e para aquelas que esperamos, que ainda não vieram (Grotowski, 1992, p. 16-17).

Entre as experiências "realmente importantes", ele exemplifica, que pode haver "[...] uma situação chave no que diz respeito a uma mulher” (Grotowski, 1992, p. 16- 17). Fala de uma mulher porque pensava em Cieslak. Na verdade, significa o amor.
Assim, o quadro está completo. O ator não busca no se e nem nas circusntâncias dadas do drama; com o corpo-memória, o corpo-em-vida – através do exercício intransigente de ações físicas – se dirige para as experiências que para ele foram realmente importantes, como pode ser para um jovem o encontro com o amor.
Trata-se do programa de trabalho com Cieslak em O príncipe constante, ou melhor, o balanço: o espetáculo estivera em cartaz quatro anos antes do texto no qual Grotowski cita Cielask, sem nomeá-lo. Explicitamente irá comentá-lo muito mais tarde, recordando o trabalho para o espetáculo após a morte do ator em 1990. Ele explica que, embora o texto falasse das torturas sofridas por um mártir da fé, o trabalho com Cieslak foi baseado inteiramente na primeira experiência amorosa do ator,
[...] tal qual pode acontecer somente na adolescência, [o amor] traz consigo toda a sua sensualidade, tudo que é carnal, mas ao mesmo tempo, por trás, algo totalmente diferente que não é carnal, ou que é carnal de outro modo, e que é muito mais como uma oração. É como se, entre esses dois aspectos, se criasse uma ponte que é uma oração carnal (Grotowski, 1992, p. 16-17).

A oração carnal é o resultado final, o objetivo, do trabalho sobre as ações físicas com o qual o ator Cieslak transporta o próprio corpo-energia no hic et nunc da sua primeira experiência de amor. O corpo se espiritualiza; a oração, reciprocamente, se encarna. Corpo e espírito: um dentro do outro. O corpo que se eleva, mas não fora de si; o espírito que desce, mas sem se perder no corpo.
A oração carnal é o voo do ator: com o corpo como uma pista de decolagem e o voo, porém, não é (mais) ligado ao físico.
O volume no qual é selecionado o texto de Grotowski saiu em 1992. No ano seguinte, saiu o livro de Thomas Richards Al lavoro con Grotowski sulle azioni fisiche. Como posfácio, Grotowski publicou o seu Dalla compagnia teatrale a l’arte come veicolo, no qual ele retoma algumas passagens do texto sobre o Príncipe Constante.
O transplante é muito significativo. A partir do contexto do espetáculo, o trabalho com Cieslak foi inserido naquele de a arte como veículo, até mesmo como um exemplo. Talvez o novo contexto levasse Grotowski a uma maior cautela no uso das palavras. O fato é que a oração carnal desaparece. "Era como se esse adolescente recordado” – diz ele – “se libertasse com o seu corpo do próprio corpo, como se fosse liberado – passo a passo – do peso do corpo". Mas a "[...] terra de ninguém entre a sensualidade e a oração” (Grotowski apud Richards, 1993, p. 130) em que procede passo a passo, não é ainda o último lugar de oração carnal. Ao retornar aos impulsos da experiência vivida, o corpo-energia perde o peso, mas não o suficiente para voar. A energia do corpo animado ainda é muito densa.
Algo ainda está faltando na história do trabalho de Cieslak.
No posfácio da reedição em francês e inglês do livro de Richards, em 1995, Grotowski preenche essa lacuna. Ele acrescentou que, mesmo antes de começar a trabalhar, ele e Cielask haviam lido
[...] o Cântico Espiritual de São João da Cruz (que está ligado à tradição bíblica do Cântico ddos Cânticos). Nessa referência se esconde a relação entre a alma e o Verdadeiro – ou, se quiserem, entre o Homem e Deus – é a relação da Amada com o Amado. É isso que levou Cielask em direção à memória de uma experiência de amor tão única que se tornou uma oração carnal[vii].

Ao eliminar a densidade residual do corpo-energia do ator, a referência ao Cântico de João da Cruz se tornou a terra de ninguém entre a sensualidade e a oração em uma oração carnal. Palavras de Grotowski. A experiência do amor entre um homem e uma mulher, porém, quando profunda, deve ser transcendida em uma relação entre o Homem e Deus, de modo que o corpo-energia que a revive torna-se completamente espiritual.
O que está na memória do corpo-memória? Quem é dono do corpo-memória?
Eu volto para Stanislavski. Entre 1918 e 1922 ele trabalha com um grupo de jovens cantores de ópera em um Estúdio Operístico do Bolshoi. Com o ator-que-canta, ele tenta ir além do Estado criativo do ator-que-fala. A música permite que você acesse o estado heróico. A ação do herói é pessoal, mas transcende a pessoa que a realiza. No estado heróico – explica Stanislavski – tudo é levado ao extremo.
Ele volta-se para uma atriz que deve interpretar uma cena com a irmã que levou o marido dela embora. Você pode alcançar as alturas da arte – ele diz – apenas quando
[...] você se esquecer de si mesma [...] quando você descobrir as circunstâncias que atenuem a culpa de sua irmã, somente quando começar a se perguntar quando e onde você mesmo cometeu injustiça ao seu marido. Então, nascerá de você, irá fluir na cena uma onda de bondade e não de maldições, e mais a energia que vem da tensão heróica do coração feminino e do perdão (Stanislavski, 1980, p. 119).

Quem possui a memória daquela mulher capaz de bondade e não de maldições, de perdão e não de vingança? O corpo-memória que encontra ou descobre isso é o corpo da atriz como corpo, ou como canal? O que é certo é que, também para Stanislavski, mesmo com o compromisso do espetáculo por fazer, além do corpo animado por sua própria experiência, há um corpo ulterior, que é do indivíduo como ser humano universal. O relacionamento amoroso entre o Homem e Deus no Cântico de João da Cruz, no qual a carne de Cieslak torna-se oração, não é substancialmente diferente da compaixão em que o ressentimento de uma mulher traída se transforma em bondade e perdão.
Em termos de energia, as ações físicas são o veículo para mover verticalmente, de baixo para cima; em termos de memória, são o veículo para mover horizontalmente, do agora em direção ao antes. Enquanto a energia se torna mais sutil, a memória torna-se sempre mais antiga. Sobre o eixo da memória, a mulher capaz de não sentir ódio pelo insulto recebido é anterior a mulher que, ao contrário, se deixa animar apenas pelo desejo de vingança. O homem capaz de viver uma experiência de amor como uma relação com o divino é anterior ao homem que se deixa animar apenas pela sensualidade.
O movimento que sobe ao longo do eixo da energia e aquele que vai ao longo do eixo da memória são um único e idêntico movimento no veículo das ações físicas. A arte como um veículo: para subir a escada de Jacob, e para voltar a um tempo sempre mais distante no tempo.
Grotowski escreveu em O Performer:
Toda vez que eu descubro algo tenho a sensação que seja isto que lembro. As descobertas estão atrás de nós, e é preciso fazer uma viagem de volta para chegar até elas. Com um avanço – como no retorno de um exílio – se pode tocar algo que não está mais ligado às origens, mas – se ouso dizer – a origem? Acho que sim (Grotowski, s/d, p. 87).

Origem. No eco de Craig soaria como antes da queda: quando para o homem somente o desejo de voar era já poder voar. Grotowski traduz o desejo em esforço prático, longo caminho, pesquisa exaustiva: para preservar a eficácia da utopia do ator que voa.
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Referências
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[i] Quanto aos eventos citados na carta: sobre o encontro em Wroclaw em 1975 conforme Wroclaw 1975. Miele a San Giovanni; a referência a Artaud está no livro I teatri di Artaud. Crudeltà, corpo-mente, que foi publicado há pouco tempo (Il Mulino, Bologna, 1996); sobre o seminário para diretores ocorrido em Pontedera em 1989 – não nove, então, mas oito anos antes – encontra-se em Pontedera 1989. La sigaretta di Stanislavskij; de 24 a 27 de abril de 1997 se desenvolveu em Wroclaw o encontro Laboratórios, grupos e estudos teatrais no século XIX na Europa
[ii] A definição de texto-programa se encontra na carta a Barba de 5 de setembro de 1965.
[iii] L’Università della ricerca foi realizada com o patrocínio do Instituto Internacional do Teatro, que, de 8 a 28 de junho de 1975, em Varsóvia, havia promovido uma nova edição do Festival de Théâtre des Nations, que havia estado inativo por vários anos. Ele foi organizado pelo Teatro Laboratório de Grotowski, pelo Odin Teatret de Barba e pelo Teatro Daidalos de Malmoe.
[iv] Veja Eugenio Barba, Théâtre psycho-dynamique, p. 75. O texto é uma brochura preparada para uso interno. Barba a retoma amplamente no seu livro de 1965. O agradeço por fornecer-me um manuscrito.
[v] Edward Gordon Craig, Il mio teatro, (Org. Ferruccio Marotti), Feltrinelli, Milano 1971, respectivamente p. 4 e p. 29. Na versão mais ampla, este parágrafo figura no meu L’attore che vola. Boxe, acrobazia, scienza della scena, Bulzoni, Roma, 2010.
[vi] Ver Jerzy Grotowski, Risposta a Stanislavskij. In: Attisani; Biagini (Org.)., Jerzy Grotowski. Testi, p. 50. O texto foi publicado em primeira edição italiana, como apêndice a K. Stanislavskij, L’attore creativo. Conversazioni al Teatro Bol’šoj, por Fabrizio Cruciani e Clelia Falletti. Firenze: La casa Usher, 1980.
[vii] Ver Jerzy Grotowski, Dalla compagnia teatrale, versão definitiva, em A. Attisani e M. Biagini (Org.), Jerzy Grotowski. Testi, p. 99; destaque meu. Devo a sinalização da variante em relação a primeira edição italiana a Mario Biagini e Thomas Richards. Fizeram-me em ocasião da leitura do meu ensaio sobre Per un teatro povero, do qual falei no parágrafo anterior.