De
Volta à Sala Fechada: o meu diálogo com Jerzy Grotowski
De
Franco Ruffini Universidade de Roma 3, Itália
Em: Revista Brasileira de Estudos da Presença
De
jan/jun 2011
|
Imagem da internet - Spettacoli Teatro |
Franco Ruffini é professor no Departamento de
Comunicação e Espetáculo da Universidade de Roma 3. É membro fundador da equipe
científica e pedagógica da ISTA (International School of Theatre Anthropology),
dirigida por Eugenio Barba. É autor de diversos livros sobre teatro no
Renascimento e sobre diretores-pedagogos do século XX: Artaud, Craig,
Stanislavski, entre outros.
RESUMO – De Volta à
Sala Fechada: o meu diálogo com Jerzy Grotowski – A partir da leitura de cartas
e textos de Jerzy Grotowski, Eugenio Barba e Constantin Stanislavski, este
texto discute as diferentes compreensões do autor acerca da obra de Grotowski.
Ao comparar diferentes passagens de escritos de Grotowski e Stanislavski, este
texto elucida e problematiza, do ponto de vista histórico, alguns elementos na
genealogia da obra desses autores, incluindo a filiação de Grotowski em relação
a Stanislavski. Por fim, apresenta-se o trabalho do ator no panorama de
conceitos como memória e corpo-energia, próprios da herança desses
diretores-pedagogos. Palavras-chave: Teatro. Jerzy Grotowki. Constantin
Stanislavski. Eugenio Barba. Ator.
O Início: onde conto
como encontrei a sala fechada
Uma carta, um livro
Roma, 31 de maio
de 1997
Querido Jerzy,
eu nunca
consegui lhe dizer, nem mesmo no outro dia em Pontedera. Agradeci-lhe apenas
nos livros. Agora quero fazê-lo pelo menos por carta. Eu lhe conheci pela
primeira vez em Wroclaw, em 1975, e não entendi nada sobre você e seu trabalho.
Eu nem sequer tentei entender. Eu estava apaixonado pelo Odin e,
principalmente, era apaixonado por mim mesmo; pior, pela minha inteligência.
Uma única coisa posso dizer: para me desculpar. Eu soube imediatamente que eu
tinha perdido uma oportunidade importante, e que a inteligência (aquela do
cérebro) era a minha verdadeira inimiga. Isso não significa que eu obtenha,
desde então, derrota. Eu não conseguiria nem mesmo hoje. Mais tarde, você me
convidou para participar de um seminário para diretores, em Pontedera. Pediu-me
para falar sobre Stanislavski e sobre as ações físicas. Em vez de falar sobre
seus escritos, falei de minhas certezas como professor. Outra oportunidade
perdida. Você disse que eu tinha falado de forma ortodoxa e você estava certo. A ortodoxia e a academia são irmãs e
ambas se originam da presunção de inteligência. Passaram-se oito ou nove anos
desde aquele encontro e espero ter aprendido alguma coisa com as minhas
oportunidades perdidas. Acredito que Artaud me disse algo profundo e verdadeiro
sobre você e o seu trabalho.
Não digo que
entendi, não quero dizê-lo. Mas sei que o seu trabalho – na prática e no
sentido – está no centro do teatro. Ele baseia-se no valor. Em abril passado,
em Wroclaw, Flaszen falou de você, disse que "você procurava a verdade e
encontrou a beleza" e assim recomeçou a procurar a verdade. Pode ser que
haja um ponto no qual a beleza não é a perda da verdade, mas é a sua
manifestação brilhante. Se alguém pode chegar a esse ponto, esse alguém é você.
Obrigado. Um grande abraço,
É
difícil evitar que a sinceridade plena atravesse limites na intensidade. O
essencial é que por trás da intensidade, esteja também presente a sinceridade.
Isso existia naquela minha carta: palavra por palavra. Grotowski me respondeu,
em poucos dias, com uma pequena mensagem na parte de trás de um cartão postal.
Ele descreveu a minha carta como "um verdadeiro sinal de amizade" e
concluiu dizendo que pensa em mim como "alguém muito próximo a [seu] coração".
Pode ser que até mesmo em suas palavras houvesse intensidade. Tenho certeza que
havia sinceridade por trás.
31
de maio de 1997. Outro dia que mencionei na carta foi 26 de maio, quando houve
a cerimônia de outorga da cidadania honorária de Pontedera para Eugenio Barba.
Na ocasião, Barba, falando com Grotowski do livro que estava escrevendo sobre
seu aprendizado na Polônia, de 1961 a
1964, disse que os amigos aos quais ele deu para ler o primeiro rascunho,
tinham visto uma história de amor. Grotowski riu um pouco, entre ironia e
nostalgia. É verdade: A Terra de Cinzas e
Diamantes é uma história de amor, quando se usam palavras tão pomposas
(Barba, 2004). Mas é também muito, muito mais.
As
cartas de Grotowski que foram publicadas levantam questões inéditas, para além do
trabalho realizado com Cieslak em o Príncipe
Constante, ao qual se referem. Falam de "um conhecimento absolutamente
concreto que você pode estudar e testar no seu próprio organismo". Está
escrito em uma carta datada de 21 de setembro de 1963 (a parte em itálico é de
Grotowski). Eles falam sobre algo que você não pode ou é inútil falar. A palavra
não é o próprio organismo.
Uma
sensação similar eu sempre sentia quando lia Per un teatro povero. Como se também no seu livro Grotowski
mostrasse algo que, porém, não podia ser colocado na página. As cartas
confortavam essa minha sensação. Elas sugeriam-me a base, o alicerce. Per un teatro povero pareceu-me como uma
casa bem construída com uma sala no centro. Rodeando-a, o livro-casa aponta a
sala, entretanto, a sala está vazia.
Eu
tinha o título para um ensaio, que na verdade foi intitulado assim: A Sala Vazia. Um estudo sobre o livro de
Jerzy Grotowski. Ele saiu em 2000. Hoje o título mudou e está reduzido nas
suas dimensões. A sala vazia está renomeada como a sala fechada. É cheia, mas
não de palavras. O livro-casa que a contém não permite a entrada. Está cheia e,
por esta razão, está fechada (Barba, 1965).
A
sala fechada, então. Em 1968 vem publicado, em inglês, Towards a Poor Theatre (Per
un teatro povero), como número 7 da revista Teatrets og Teknikk Theory (TTT), normalmente publicada em
dinamarquês pelo Odin Teatret de Eugenio Barba. Os textos de Grotowski são
apenas 5 de 14; os dois ensaios mais amplos e orgânicos foram publicados
recentemente por Barba em seu livro de 1965,
Alla ricerca del teatro perduto (Barba, 1965). No entanto, e apesar de na
época não falar inglês, Grotowski participa do trabalho editorial de forma
diligente e meticulosa; realizando cortes e variantes e controlando a tradução
palavra por palavra.
Lembra
Barba, promotor do livro, que "[...] houve uma mudança nas prioridades de
Grotowski". Depois do trabalho sobre o Príncipe
constante, "[...] tornou-se central ‘o ato total’ do ator e o processo
para chegar lá” (Barba, 2004, p. 93). A preparação do espetáculo abrange os
anos de 1963 a 1965. Aquele trabalho e aqueles anos são o motor central do
livro.
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Eugenio Barba - foto da internet, do site
SIBIU - International Theatre Festival |
Ainda
assim, o índice apresenta um vácuo peculiar daquele período. O treinamento do ator (1959-1962) e O treinamento do ator (1966) são os
títulos de dois capítulos dedicados especificamente ao treinamento (training).
Um após o outro, com o mesmo título – inclusive, no caso de 1966, dado ex novo para a transcrição de um seminário
–, mesma indicação temporal entre parênteses. Vácuo entre 1963 e 1965. Isso
seria o suficiente. Não existe maneira melhor de sinalizar uma descontinuidade
que construir um ambiente de continuidade sobre o qual incidi-la.
Mas
há, além disso, os resultados de fato. O
treinamento do ator (1959-1962) retoma um texto publicado em 1965 por Barba
em Alla ricerca del teatro perduto.
Apareceu com o mesmo título, exceto a limitação temporal. Além disso, na versão
de Per un teatro povero desaparece a
lista dos mestres, que se referia a 1964 (Barba, 1998). É eliminado, por fim,
toda referência ao Kathakali, que foi introduzido no treinamento (training) do
Teatro Laboratório em dezembro de 1963 – quando Barba trazia a descrição da
Índia – permanecendo apenas alguns meses (Barba, 1998, p. 55). Todas as três
intervenções – a introdução de limites temporais, a eliminação da lista dos
mestres e da referência ao Kathakali – têm, claramente, concordemente, o efeito
de retrodatar a escrita de Barba para 1962, criando assim um vácuo de anos no
panorama do Treinamento do ator.
O
que Grotowski queria apagar com aquela lacuna temporal? O contexto no qual a
busca de resposta é oferecida por meio da comparação entre a versão não datada
de O Treinamento do ator e aquela
antedatada a 1962. Do texto original resulta excluído um trecho longo sobre os exercícios psíquicos para o transe. O
mesmo trecho, em termos mais amplos, apareceu também no Novo Testamento do Teatro, versão de Barba. Mas ao propor novamente
o texto – com o mesmo título – em Per un
teatro povero, o trecho foi excluído, embora neste caso não houvesse
problemas de data para impô-lo.
A
antedata da versão de Barba do Treinamneto
do ator foi um fato intencional. Caso contrário, por que cancelar todas as
provas que prolongaram a cobertura temporal até depois de 1962? A eliminação
dos exercícios psíquicos para o transe também
foi intencional. Caso contrário, por que motivo aplicá-la também pelo Novo Testamento do Teatro?
É
claro que as duas intervenções não são independentes uma da outra: os anos de
vácuo tiveram o efeito de excluir a questão do transe e é claro que não se
tratou de um efeito acidental, ou indesejado.
Isto
é o que o livro poderia dizer. Para avançar é preciso sair.
Em
uma carta datada de 15 de setembro de 1963, quando ele recentemente havia
começado o trabalho com Cieslak para O
Príncipe Constante, Grotowski escreve a Barba e diz estar
"recapitulando as [suas] investigações deste último período". Aquele
trabalho foi uma revelação para ele, uma "[...] experiência não comum, que
compromete até os próprios limites".
Em
5 de Abril de 1965, no limiar da estreia do espetáculo, falando sobre o livro
de Barba e esperando a publicação em polonês, Grotowski acrescenta que, neste
caso, teria que "[...] acrescentar um apêndice sobre o desenvolvimento do
método de 1964 [data em que o livro foi aprovado para a edição em italiano] até
hoje".
Tal
qual a edição polonesa, também o apêndice planejado nunca viu a luz.
Entretanto, é possível imaginar o seu conteúdo através da leitura das cartas
daquele período. "Atravessamos uma fase de trabalho que é diferente
daquela que ele participou” – escreve em 29 de dezembro de 1964 – “da maneira
de conduzir os ensaios do Príncipe
Constante até os exercícios, tudo é distante, até diferente de como o
fazíamos antes [...] as minhas ideias agora são heréticas em relação as
anteriores (aquelas do período da sua estadia)".
Aquilo
que Barba poderia testemunhar foi a primeira das heresias. O desenvolvimento do
método revelou "um fenômeno psíquico útil para tarefas concretas (para a ‘técnica
2’, e não em nível inicial)", como se lê em uma carta datada de 6 de
fevereiro de 1965. O destaque é meu.
Sobre
a técnica 1 e técnica 2, Barba recorda as longas e apaixonadas conversas com
Grotowski. A técnica 1 é a arte
teatral, transmitida a partir de Stanislavski. A técnica 2 tende a liberar a energia espiritual para "[...] o
acesso as regiões conhecidas pelos xamãs, pelos iogues, pelos místicos [... e]
avançar na noite escura da energia interior” (Barba, 1998, p. 53-54).
Os
exercícios psíquicos através do transe relatados por Barba eram o nível inicial da "técnica 2".
O desenvolvimento do método só aconteceria com o trabalho com Cieslak em O Príncipe
Constante. Grotowski não escreveu isso, como sabemos. Além disso, ele
cuidadosamente riscou do livro até a premissa, o nível inicial. Por quê?
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Jerzy Grotowski - foto de blog da internet |
A
resposta é o próprio Grotowski que fornece de forma inequívoca. Para a
apresentação do Príncipe constante,
havia escrito um texto-programa, como ele o define, intitulado Per un teatro povero[ii].
Está no início do livro: entrega-lhe o título
e o programa. Na versão original
aparecia a seguinte passagem: “[...] na verdade pode-se afirmar que, neste
método o processo interior é em si uma forma de conhecimento técnico, mas não
seria totalmente exato. Porque esse processo não pode ser ensinado”.
Na
versão do livro, essas linhas desaparecem. Mas apenas no papel. O fato
permanece. Seja qual for o nível, “[...] o processo interior não pode ser
ensinado". Ele não pode ser escrito em um livro, destinado objetivamente –
se não pensado – para ensinar. O que mais as palavras escritas podem fazer em
um livro?
Mas,
se as palavras ensinam o que dizem, através daquilo que omitem, têm o poder de
indicar. Trata-se de um espaço de silêncio, fato que está presente – por
omissão – em um discurso que renuncia em entrar
dentro dele. Porque não é possível entrar
dentro.
Onde
termina o ensinamento, só ali pode começar a transmissão. A transmissão exige o
ensinamento – o processo espiritual pressupõe o ofício, a arte – mas a
transmissão não é o ensinamento. Trata-se de preceitos, bons conselhos,
exercícios para ensinar, que circunscrevem o espaço do que não pode ser
ensinado.
A
sala fechada.
O
encontro com a sala fechada está no início do meu diálogo com Grotowski. Mas há
início e início. Há o início que não tem nada por trás dele. Um tempo zero. E
há um início que é um laço de tempo: onde juntam-se, o antes e o depois se
passam o bastão.
Primeiras Lembranças,
para Olhar em Frente
Wroclaw, 1975. Mel em
São João
Quase toda noite
havia um UI (Colmeia), que era aberta para todos os participantes [...]
Imediatamente depois do primeiro UI ao qual participei, transcrevi a máquina as
minhas impressões. Subimos as escadas até a sala onde aconteceu o espetáculo Apocalypsis, mas por uma outra entrada.
[...] A sala era quente. Nós sentamos lá por um longo, longo tempo. Depois
alguém começou a cantarolar de boca fechada e isso prosseguiu por um longo
tempo e devagar se chegou em uma situação na qual todos cantarolavam ou
cantavam ou emitiam sons. A seguir todos nós levantamos e começamos a dançar e
depois – BUM – chegaram as pessoas correndo com tochas acesas [...] Então
alguns saltavam em cima e agarravam as tochas e corriam ao redor da sala,
cantando, gritando e cantando salmos [...] e depois alguém trouxe uma jarra de
vidro grande que continha mel. No início não sabia que espécie de líquido
poderia ser. Uma pessoa mergulhou a mão dentro do mel e depois passou, por
assim dizer, a mão em outra pessoa que pegou um pouco de mel e também lambeu um
pouco da mão e foi indo desse jeito. As pessoas pegavam o mel dos outros e do
recipiente e davam a mão para alguém para lambê-la ou chupar os dedos. Era como
um sacramento, um sacramento laico, carnal [...]. Foi muito agradável, suave,
leve, fácil, algo que parecia um ritual.
Esta
é uma de muitas Colmeias que ocorreram durante a Universidade da Pesquisa, entre 14 de junho e 07 julho de 1975, em
Wroclaw, na sede do Instituto Grotowski. Faziam parte do Programa Geral, aberto a todos. Para acessar as atividades do programa especializado era necessário,
ao contrário, uma entrevista pessoal com Grotowski, para uma autorização formal
e decisiva[iii].
As
Colmeias – num total de 21 – assemelhavam-se um pouco na estrutura. Aquela que
eu chamo de “colmeia de mel” foi a da qual eu participei. Mas o testemunho que
citei não é meu. É de Richard Brennen, um estudioso reputado, como muitos
outros dos presentes, que tinham seguido na América as atividades do “Special
Project”, do qual a Universidade pode ser considerada a conclusão (Brennen,
1975, p. 63-64).
Na
época eu não era um erudito, muito menos reputado. Eu ensinava matemática nas
escolas secundárias e, por uma série de circunstâncias que aqui não é o lugar
para lembrar, eu estava em Wroclaw com o Odin, acompanhado por Ferruccio
Marotti. Dos estudos teatrais eu sabia principalmente que, com um pouco de mente
aberta, era possível reciclar as habilidades que eu havia adquirido por minha
sorte na formação científica.
É
como eu escrevi muitos anos mais tarde, em uma carta para Grotowski. Além do
desejo de mudar de emprego, para atrair-me para o teatro era somente a paixão
pelo Odin – do qual havia sofrido as faíscas de Ferai, em 1970, e de Min Fars Hus, em Roma, em 1974 – e, para
o meu entendimento, eu estava me colocando à prova, com incursões nas
recém-surgidas disciplinas semióticas.
Ao
contrário de Brennen, para mim a Colmeia de mel não foi um sacramento laico,
carnal ou ritual. Não foi agradável,
suave, leve, fácil. Foi um tormento. Além disso, foi uma humilhação de
inteligência e, de certa forma, uma humilhação do Odin. Um insulto para os dois
objetos do meu amor. Eu também tinha uma entrevista pessoal com Grotowski, para
autorizar as atividades do programa especializado. Das suas palavras não
entendia nada. Inútil dizer que não fui ao encontro.
À
noite, na mesma sala da colmeia de mel, assistia a Apocalypsis cum figuris, não podia não ser tocado. E Barba repetia
que Grotowski era o seu mestre. Se não tivesse sido por estas duas condições,
com base apenas no mel e na entrevista pessoal – Deus me perdoe – eu teria
arquivado Grotowski como um charlatão brilhante.
Posso
dizer hoje que o mel de Wroclaw, em 1975, e aquele encontro traído foram a
fonte da minha paixão pelo teatro: se é verdade – como é real – que a paixão
não é a mesma coisa que amor. É amor mais sofrimento. Amor alimentado pelo
sofrimento.
A
colmeia de mel e o encontro traído me fizeram tocar com a mão o rosto do
padecimento. Ou, se a palavra soa forte demais, o rosto do sofrimento. Eu
toquei o rosto do prazer na festa de São João.
A
tabela 222 em Grotowski Sourcebook
leva a didascália “Grotowski and Barba, Wroclaw, 1975”. É uma foto de Tony
D'Urso e foi feita durante a festa de São João. Barba e Grotowski estão de pé,
ambos com camisa de mangas, braços cruzados e com óculos grandes. Não é
possível saber o que eles olham, pois a foto não mostra. Grotowski aparece
magro, com cabelos longos, bem como Barba. Barba está com uma expressão de sorriso,
Grotowski com expressão neutra. Na parte baixa, sentados no chão, um grupo de
jovens com roupas e rostos da época. Na foto inteira, publicada pela Osinski, e
que está entre as relíquias de uma parede gloriosa do meu escritório, eu também
apareço junto com Fabrizio Cruciani (Osinski, 1998, p. 28-29).
Em
outro disparo da mesma série, é possivel ver o que nós estávamos olhando. Era
uma atriz do Odin com um vestido de palhaço. Está de costas, inclinada para o
chão. Eu não lembro o que ela estava fazendo, mas com certeza foi uma coisa
engraçada. Barba ria visivelmente; Grotowski também ria, porém um pouco menos
visível. No fundo, um emaranhado de árvores e arbustos, grama alta no chão.
A
festa de São João ocorreu em uma floresta, e ria-se, se era feliz e se
mostrava. Foi organizada por Barba juntamente com os atores do Odin. Se não foi
intencionalmente uma resposta contra a corrente para as colmeias de mel e para
as atividades especializadas, com
certeza, como tal, foi vivida por muitos dos participantes. Lembro-me de um
grande gramado em declive, as pessoas corriam e se deixavam rolar. Havia longas
cordas com um nó no final, penduradas nas árvores. Sentava-se sobre o nó como
se fosse montar em um cavalo e faziam oscilações vertiginosas. Os atores do
Odin estavam espalhados pela floresta. Faziam música e, de repente, os
encontrava depois de ter sido deixado chamar pelo som. Aqui e ali, havia mesas
com coisas simples para comer e beber. Um tronco cortado queimava sobre um
platô, e muitos – eu por primeiro – aquecidos pelo prazer, pelo vinho, pela
felicidade e pela gangorra, dançavam ao redor, cantando também.
Houve
tudo o que havia na colmeia de mel – música, canto, dança, fogo – mas com um
sinal oposto. Na colmeia o sorriso nunca explodiu em risos, aqui o primeiro a
explodir foi o riso, para depois decantar em sorriso. Lá, as chamas eram um
ponto brilhante comido pela escuridão; aqui a luz cancelava a escuridão. Aqui,
os guias acompanhavam você sem saber onde você queria ir, na colmeia lhe
levavam para onde você sabia que não queria ir.
Encerro
aqui a narração, porque a colmeia de mel e a festa de São João, ambas, são
aquelas coisas que não suportam ser contadas. Como os balões das crianças que,
quando você tira o conteúdo, se esvaziam e não permanece mais nada.
A
colmeia de mel e a festa de São João. Sofrimento e prazer, Grotowski e Barba:
um separado do outro. Meu esforço constante, até agora, foi para não
separá-los. Sem confundi-los.
Pontedera 1989. O
cigarro de Stanislavski
Roma, 28 de
outubro de 1999
Querido Thomas e
querido Mario, quero agradecer pela paixão e habilidade com que vocês leram meu
texto e reagiram. Mas esta pode ser uma ocasião não apenas para trocarem-se
justos e agradáveis louvores. Vocês sabem o que eu quero dizer. Recapitulando,
um pouco drasticamente. Eu escrevi um texto sobre Per un teatro povero de Grotowski. Eu não os consultei para decidir
fazê- lo, e agora, com as coisas feitas, não pretendo mudar em relação a
resposta de vocês. Isso quer dizer que peço autonomia. Depois de escrever, eu
lhes enviei o texto, submetendo-o sem reservas à crítica de vocês. Isso
significa que peço colaboração.
Com
este e-mail – o resto não tem interesse – fechava uma pequena espécie de
controvérsia com Thomas Richards e Mario Biagini, sobre o meu ensaio A sala vazia. Um estudo sobre o livro de
Jerzy Grotowski, que sairia em 2000 em Teatro
e Storia. Algumas semanas antes lhes havia enviado o texto e estava muito
interessado nas suas reações. Nós nos encontramos alguns dias depois, em
Pontedera e, as reações deles – especialmente aquelas de Biagini – vieram: com competência
e muita paixão, mesmo que juntamente com apreciações positivas.
Um
ano depois, durante um seminário com os alunos da Universidade de Roma 3 La Sapienza (28-30 de novembro de 2000),
Biagini lembrava meu ensaio recém publicado, renovando os elogios mas
confirmando "[...] não estar de acordo com algumas conclusões e que se
tratava de temas importantes”. Eu não pensava mais no assunto, até acontecer de
eu ler uma versão revista daquele seminário. Está em um livro de 2007
(Attisani; Biagini, 2007). Inesperadamente – depois de muitos anos – eu
encontrei a citação do meu ensaio.
É
uma boa ideia tratar o caso como um mestre do improviso. Então decidi fazer
aquilo que eu não havia feito da primeira vez, isto é, mudar o ensaio em
relação às críticas recebidas. As quais eram substancialmente três: 1) ao
começar pela análise de Per un teatro
povero, esticava indevidamente – e, em alguns aspectos erroneamente – o
arremesso ao trabalho no Workcenter; 2) ao apontar os cortes feitos nas versões
originais dos materiais, acabava por sugerir que o que estava contido nas
passagens suprimidas – essencialmente os exercícios psíquicos através do transe
– descrevesse o trabalho de Grotowski com Cieslak em O Príncipe Constante e não, simplesmente, constituísse uma
premissa; 3) defini incorretamente o exercício de composição rítmica sobre o
tema de acender um cigarro – também eliminado – "uma típica linha de ações
físicas segundo Stanislavski".
Quanto
às duas primeiras questões, Biagini estava certo. Consequentemente intervi,
como é possível verificar inclusive na versão suscinta que coloquei no início.
Mas o cigarro de Stanislavski não: naquela questão, Biagini não tinha razão.
Não
valeria a pena calar-se em uma polêmica acadêmica, se não fosse por um
seminário sobre direção em 1989.
De
7 a 11 Agosto de 1989, em Pontedera, Grotowski realizou um seminário sobre
direção. Trabalhava-se continuamente das onze horas da noite até as cinco, seis
da manhã. Fui convidado para participar como um erudito, com Nicola Savarese e
Ferdinando Taviani, e Grotowski me pediu para falar aos participantes – na sua
presença – justamente sobre as ações físicas segundo Stanislavski.
Querido
Jerzy, me preparaste uma armadilha e eu caí dentro dela. Outra oportunidade
perdida, te escrevi na minha carta de 31 de maio de 1997. É para tentar
recuperar o tempo perdido que eu falo agora das ações físicas, a partir do
cigarro de Stanislavski.
O
exercício consiste na decomposição da ação de acender um cigarro ao vento, ou
ainda mais, sequências indivisíveis como: 1) eu quero acender um cigarro; 2)
olho para onde estão os cigarros; 3) estico a mão; 4) pego o pacote, e assim
por diante. Na terminologia de Stanislavski, acender um cigarro é a "ação
maior", ou principal, as sequências indivisíveis são as "ações
auxiliares". Cada uma dessas ações deve ser realizada sem acessórios, de
tempos em tempos, variando o temporitmo, e certificando-se que há sempre uma
justificativa.
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Konstantin Stanislavski -
imagem da inernet |
Além
da correção para a definição de tal exercício como "[...] uma típica linha
de ações físicas, segundo Stanislavski", Biagini acrescentou não saber
"[...] o que Grotowski disse desse exercício na versão anterior ao corte
[...] nem o motivo do corte", enfatizando que, para Grotowski, as sequências
indivisíveis e individuais (olhar, estender a mão) são "atividades" e
não ações (Attisani; Biagini, 2007, p. 33-34).
Continuo
por pontos. A capacidade de transformar uma atividade em ação é um, se não o
principal, entre os desafios do exercício, caso contrário degenera em mera
formalidade técnica. Stanislavski é absolutamente claro em relação a isso. As
ações auxiliares são auxiliares, mas devem ser ações, não
"atividades". O exemplo atual é aquele de escrever uma carta sem uma
caneta ou papel ou tinta, "sem nada". Stanislavski levou isso em
conta por toda a vida, e Grotowski lembra o mesmo (Flaszen; Pollastrelli, 2001,
p. 186). Privado de objetos, além de segmentar a ação principal, o ator é
obrigado a comensurar mentalmente cada ação ao objeto inexistente. Ele deve estar
totalmente concentrado, passo por passo, momento por momento.
De
acordo com Stanislavski, a sequência de acender o cigarro era uma linha típica
de ações físicas, sem dúvida. Igualmente certo é que Grotowski a considerava
como tal. Basta verificar as versões anteriores ao corte contidas no Théâtre psychodynamique, de 1963, e em Alla ricerca del teatro perduto, de
1965. Em ambas as versões cita-se as ações físicas de Stanislavski como uma das
fontes para o treinamento do ator, e se reporta ao exercício do cigarro.
Além
disso, me confirma Barba que "[...] no tempo de Opole, Grotowski sempre
citava o exemplo de acender um cigarro como um exercício de Stanislavski, a tal
ponto que eu sempre pensei que havia lido em algum texto do diretor russo ou
que havia aprendido durante a sua estada em Moscou”. Basta assim.
O
problema está além disso: está nas razões pelas quais Grotowski eliminou o
exercício da sua obra Per un teatro
povero. Em Alla ricerca del teatro
perduto apenas diz que aquele tipo de exercício "[...] não causa uma
verdadeira concentração psíquica do ator (transe)" (Barba, 1965, p. 131).
A versão anterior, no Théâtre
psycho-dynamique, é mais analítica: “[...] os exercícios de Stanislawski
não levam a um transe [...] Esta forma de concentração é fundamental para o
ator artificial (ator de composição)[iv]”.
Ela afeta o esclarecimento. Quase um aviso para evitar confusão. Grotowski
distingue claramente: "[...] eu diria que existem dois tipos de ator: o
ator do processo e o ator da composição. O maior ator que eu conheci no campo
do processo foi Ryszard Cieslak" (Grotowski, s/d, p. 79). Em um livro cujo
centro motor – mantido na sala fechada – era justamente o processo interior que
“não pode ser ensinado”, melhor deixar cartas de escrever ou cigarros para
acender “sem nada” aos livros de Stanislavski.
Sabia
muito bem que para interessar ao Grotowski de Pontedera não era o método das
ações físicas para acender cigarros nem, muito menos, aquele utilizado pelo
diretor para a encenação. E, no entanto, decidi falar justamente deste último.
Fazia algum tempo que eu tinha lido na edição inglês do livro de Toporkov sobre
os últimos anos de Stanislavski, e eu sabia qual a importância que Grotowski
lhe atribuía (Toporkov, 1979, 1991). Os exemplos pro domo mea não faltavam. Citei-os em abundância. Que melhor
oportunidade para pavonear-me um pouco diante do mestre? Concluí afirmando que
o método das ações físicas – aquele do qual falei, naturalmente – não foi uma
revolução para Stanislavski.
No
final da jornada de trabalho, Grotowski parou para falar comigo. Ele disse que
eu tinha feito uma boa lição ortodoxa,
como um verdadeiro professor. Ele o fez, sorrindo e olhando-me diretamente nos
olhos, por trás daquelas lentes grossas, como pela primeira vez em Wroclaw
muitos anos antes. Enquanto eu esperava pela reprovação que eu mesmo havia
procurado, inesperadamente ele começou a falar sobre o livro de Toporkov. É um
livro fundamental para a compreensão de Stanislavski, disse ele, mas é preciso
estar atento às datas. Sendo um livro, tendemos a lê-lo como uma unidade de
texto, quando na verdade ele apresenta três momentos muito distantes no tempo,
de Dissipatori de 1927, a Anime morte de 1932 e a Tartufo de 1938. As datas são
importantes, concluiu. Em seguida, ele acrescentou que para compreender
plenamente o livro de Toporkov é preciso lê-lo em paralelo, inclusive
retroiluminado com o Romance teatral
de Bulgakov. A contralição de Grotowski terminou assim. Mesmo sorriso e nada
mais. Despedimo-nos.
O
que ele queria me dizer? Só posso dizer o que eu senti das suas palavras.
Ao
declarar em diversas ocasiões a continuidade e, ao mesmo tempo, o salto de seu
próprio trabalho em relação ao de Stanislavski, Grotowski nunca utilizou
indicações de tempos genéricos. Ele disse que sua pesquisa tinha começado no
ponto em que Stanislavski tinha parado, “[...] porque ele morreu"
(Grotowski, s/d, p. 50). Ou seja, desde Tartufo, durante o qual justamente a
morte o levou. É nas experimentações de Tartufo que “aconteciam as coisas mais
interessantes”. Basta ler. As ações físicas, que eram a espinha dorsal, não
eram destinadas ao diretor para a construção da peça, eram "trabalho
interior para os atores", como aponta Grotowski (s/d, p. 93). Além do
cigarro para acender, tratava-se do processo do ator na estrada.
Touché:
as datas com certeza são importantes.
Retroiluminado
com o livro de Toporkov, essa paródia do Romance
teatral revela a primeira condição para embarcar naquela estrada. Toporkov
refere-se ao livro de Bulgakov, justamente no capítulo sobre Tartufo. Centra-se no episódio em que o
Stanislavski da ficção de Bulgakov constringe um ator a fazer a sua declaração
para a amada, pedalando uma bicicleta. Mas não se encandaliza. Na verdade, ele
conclui que "[...] se você excluir alguns exageros que dão um tom cômico
para a história, o método de trabalho em si é muito típico de
Stanislavski" (Toporkov, 1991, p. 104-105).
Como
Toporkov conhecia o livro de Bulgakov, Bulgakov também devia conhecer bem o
trabalho de Stanislavski no seu último Estúdio. Se o episódio da bicicleta não
encontra relação no testemunho de Toporkov, entretanto, encontra o exercício de
escrever uma carta sem nada, como convém ridicularizar.
Mas
nada melhor do que uma caricatura para ver a realidade. Toporkov tinha
percebido isso sobre a bicicleta. Grotowski insistiu para que eu notasse a
respeito da doença de Stanislavski, através da caricatura de Bulgakov.
Stanislavski estava realmente morrendo, todo mundo sabia e inclusive ele sabia
disso. Cada momento podia ser o último. No entanto, a palavra mais usada por
Toporkov para descrever o trabalho é jogo.
Não trabalhavam, jogavam. E a primeira regra do jogo era a confiança absoluta
de cada um em relação ao outro e de todos em relação ao mestre.
"O
que me interessa agora é transmitir-lhes a experiência que ganhei em toda minha
vida", disse Toporkov para Stanislavski (Toporkov, 1991, p. 106- 107).
Para coletar o trabalho de Stanislavski interrompido "porque ele
morreu", para "transmitir a experiência", é necessária uma
completa solidariedade, uma confiança íntima e incondicionada entre mestre e
aluno. Como acontecerá entre Grotowski e Cieslak no Príncipe Constante.
"Onde
termina o ensinamento – eu escrevi – somente ali pode começar a transmissão. A transmissão envolve o
ensinamento, o processo espiritual requer o ofício, mas a transmissão não é o
ensinamento”. Entre o ensinamento e a transmissão passa também a
disponibilidade de pedalar em frente da mulher amada, com toda a seriedade de
um jogo no qual você se coloca no jogo sem reservas, pudor ou medo.
Ao
jogar ele também é o professor – com datas, comparando livros – acredito que
Grotowski queria me dizer isso naquele encontro pessoal em Pontedera, depois da
minha aula ortodoxa. A autocitação é
apenas uma maneira de agradecê-lo.
Seguro
da sua lição, podia tentar entrar na sala fechada.
Em Seguida, uma Olhada
na Sala Fechada
O ator que voa
Em
seu ensaio Os artistas do teatro da colmeia, que abre o livro sobre A arte do
teatro, Craig volta-se para o ator. Não para dar conselhos sobre a atuação, mas
para falar de voo. "Você é jovem, – diz ele – [...] Talvez já lhe
perguntaram por que você queria se dar ao teatro, e você não conseguiu fornecer
uma resposta razoável, porque o que você queria fazer nenhuma resposta razoável
pode explicar: você queria voar". E ao não aplicar a si mesmo "as
asas de um pássaro", mas voltando ao "antes da queda", quando o
homem era em "um estado tão perfeito que apenas o desejo de voar já era
para ele poder voar[v]”.
O
ator que voa. Para essa utopia o teatro é devedor. A utopia é eficaz. Parece
impor um objetivo impossível. Na verdade, ele indica um caminho difícil. Mas
possível e necessário.
Se
o voo do ator no estado imperfeito
foi para Craig aquele de Icaro com as suas penas de pássaro, para Grotowski
será o de uma galinha batendo as asas no vazio.
Ao ator que reúne rigor
e dom, há algo que se revela como a vida que flui no corpo através do
corpo". Mas é apenas "a pista de decolagem – conclui Grotowski. [...]
O verdadeiro voo não está ligado ao físico" (Grotowski, 1992, p. 17).
O
ator "no estado perfeito", disse Grotowski, deve ser capaz tanto de
rigor quanto de dom. O rigor é a capacidade de ter a partitura até os mínimos
detalhes. Mas, por trás, acrescenta, deve haver "algo misterioso",
que é o dom de si. Não para o público: a "[...] algo que é muito maior,
que está além de nós, que está acima de nós". Sem o dom, o voo é
impossível. Mas não é o suficiente: há atores que têm uma possibilidade de ter
o "[...] dom de si mesmo, mas não podem chegar a um verdadeiro rigor, a
uma estrutura real, recaindo sempre em um nível elementar, é como uma galinha
tentando voar, não há uma decolagem real". Ao ator que reúne rigor e dom,
há algo que se revela como a vida que flui no corpo através do corpo". Mas
é apenas "a pista de decolagem – conclui Grotowski. [...] O verdadeiro voo
não está ligado ao físico" (Grotowski, 1992, p. 17).
Asas
falsas, asas impotentes. Craig, Grotowski. Como se entre os dois mestres não
houvesse diferença, mas apenas distância, de tempo e de contexto. Em vez disso,
a diferença existe. Craig falava da Colmeia, Grotowski descreve uma situação
concreta. O ator no estado perfeito
é, em carne e osso, Ryszard Cieslak, no Príncipe
Constante.
|
Ryszard Cieslak - imagem da internet,no site Culture.PL |
Foi
uma revelação. Eles falam com insistência e precisão nas cartas para Barba do
período no qual o espetáculo foi preparado. Mais do que um treinamento em vista
do espetáculo, se tratava de um "caminho prático", através do qual o
ator pode "[...] avançar na noite escura da energia interior", como
Barba especificará ao longo de anos (Barba, 2004, p. 54).
Entre
o ator que voa de Craig e aquele de Grotowski passa o desafio daquele longo
"caminho prático": além disso, com certeza, às custas do espetáculo.
O
maestro com longa paciência pela autonomásia também se confrontava com o mesmo
desafio. No último período de vida, até os últimos dias, Stanislavski se
retirou no apartamento do beco Leont'ev para conduzir os experimentos do seu
“Estúdio Operístico Dramático". Conforme comenta Grotowski, as coisas mais
interessantes ocorreram "durante os ensaios de Tartufo, quando
Stanislavski não estava nem mesmo pensando em fazer um espetáculo público. Para
ele o trabalho em Tartufo era apenas um trabalho interior para os atores (Grotowski,
s/d, p. 50).
Mesmo
para Stanislavski, sair do espetáculo foi um preço a pôr em conta para "Tocar
aquilo que não é tangível[vi]”.
Mas naquele "trabalho interno para os atores", a interioridade não
foi o terreno do trabalho. Foi a saída. O terreno era o corpo do ator, engajado
no exercício das ações físicas.
O
longo caminho prático que diferencia Grotowski de Craig começa pelo método das ações físicas de
Stanislavski. Ele é bem conhecido, Grotowski o reiterou em várias ocasiões. O
problema, porém, é o que se entende por método das ações físicas.
Por
trás dessa fórmula, diferentes processos são frequentemente confundidos, para a
diferente finalidade a que se propõem. Aproveito a observação que eu fiz sobre o cigarro de Stanislavski. Em um
primeiro nível: há um método das ações físicas, cujo objetivo é desenvolver a
concentração do ator, e há um método de ações físicas, cujo objetivo é ativar a
memória afetiva. Num segundo nível: o método das ações físicas para fins de
memória afetiva pode ser usado pelo ator no trabalho
sobre si, ou ele pode ser usado – no entanto, com a mediação do ator – pelo
diretor para “trabalhar a cena”.
A
grande descoberta de Stanislavski foi que as ações físicas poderiam servir para
estimular a memória afetiva, uma autêntica revolução. Não mais da memória
afetiva – despertada através de métodos psíquicos – para as ações, mas das
ações para a memória afetiva. Diante da situação dramática, o ator simplesmente
se pergunta o que ele faria se estivesse nas circunstâncias dadas: e ele faz
isso, entra em ação. Com maior precisão, com detalhes cada vez mais pontuais.
Até que o corpo, por assim dizer, é transportado para a situação. Naturalmente,
o transporte é muito mais fluido e
eficaz quanto maior a situação pertencer à vida real do ator, ao invés daquela
fictícia do personagem. Se é o corpo a viver outra vez – diretamente, sem a
intervenção do mediador da memória afetiva – revive animado pela mesma
afetividade de quando ele tinha vivido. A diferença entre o corpo e a alma
perde a sua forma. Radicalmente, se resolve em uma qualidade diferente de
energia que, no entanto, permeia o corpo: mais denso que aquele do corpo animal, mais sutil do que aquele
do corpo animado.
Corpo-energia:
nada mais.
Corpo-energia,
como instrumento e produto das ações físicas. É este o testemunho coletado por
Grotowski, para continuar além de Stanislavski, em direção ao corpo espiritual e à relativa energia.
Lembra
Grotowski:
Quando
eu trabalhava com o ator eu não estava pensando nem sobre "se" nem
sobre as "circunstâncias dadas". O autor apela para a sua vida, sem
olhar no campo da "memória afetiva" nem do "se". Ele se
volta ao corpomemória, não tanto a memória do corpo, mas precisamente para o
corpo-memória. E ao corpo-vida. Então ele se volta para as experiências que
eram realmente importantes para ele e para aquelas que esperamos, que ainda não
vieram (Grotowski, 1992, p. 16-17).
Entre
as experiências "realmente importantes", ele exemplifica, que pode
haver "[...] uma situação chave no que diz respeito a uma mulher”
(Grotowski, 1992, p. 16- 17). Fala de uma mulher porque pensava em Cieslak. Na
verdade, significa o amor.
Assim,
o quadro está completo. O ator não busca no se e nem nas circusntâncias dadas do drama; com o corpo-memória, o corpo-em-vida
– através do exercício intransigente de ações físicas – se dirige para as
experiências que para ele foram realmente
importantes, como pode ser para um jovem o encontro com o amor.
Trata-se
do programa de trabalho com Cieslak em O
príncipe constante, ou melhor, o balanço: o espetáculo estivera em cartaz
quatro anos antes do texto no qual Grotowski cita Cielask, sem nomeá-lo.
Explicitamente irá comentá-lo muito mais tarde, recordando o trabalho para o espetáculo
após a morte do ator em 1990. Ele explica que, embora o texto falasse das
torturas sofridas por um mártir da fé, o trabalho com Cieslak foi baseado
inteiramente na primeira experiência amorosa do ator,
[...]
tal qual pode acontecer somente na adolescência, [o amor] traz consigo toda a
sua sensualidade, tudo que é carnal, mas ao mesmo tempo, por trás, algo
totalmente diferente que não é carnal, ou que é carnal de outro modo, e que é
muito mais como uma oração. É como se, entre esses dois aspectos, se criasse
uma ponte que é uma oração carnal (Grotowski, 1992, p. 16-17).
A
oração carnal é o resultado final, o objetivo, do trabalho sobre as ações
físicas com o qual o ator Cieslak transporta o próprio corpo-energia no hic et nunc da sua primeira experiência
de amor. O corpo se espiritualiza; a oração, reciprocamente, se encarna. Corpo
e espírito: um dentro do outro. O corpo que se eleva, mas não fora de si; o
espírito que desce, mas sem se perder no corpo.
A
oração carnal é o voo do ator: com o corpo como uma pista de decolagem e o voo,
porém, não é (mais) ligado ao físico.
O
volume no qual é selecionado o texto de Grotowski saiu em 1992. No ano
seguinte, saiu o livro de Thomas Richards Al
lavoro con Grotowski sulle azioni fisiche. Como posfácio, Grotowski
publicou o seu Dalla compagnia teatrale a
l’arte come veicolo, no qual ele retoma algumas passagens do texto sobre o Príncipe Constante.
O
transplante é muito significativo. A partir do contexto do espetáculo, o
trabalho com Cieslak foi inserido naquele de a arte como veículo, até mesmo como um exemplo. Talvez o novo
contexto levasse Grotowski a uma maior cautela no uso das palavras. O fato é
que a oração carnal desaparece. "Era como se esse adolescente recordado” –
diz ele – “se libertasse com o seu corpo do próprio corpo, como se fosse
liberado – passo a passo – do peso do corpo". Mas a "[...] terra de
ninguém entre a sensualidade e a oração” (Grotowski apud Richards, 1993, p.
130) em que procede passo a passo, não é ainda o último lugar de oração carnal.
Ao retornar aos impulsos da experiência vivida, o corpo-energia perde o peso,
mas não o suficiente para voar. A energia do corpo animado ainda é muito densa.
Algo
ainda está faltando na história do trabalho de Cieslak.
No
posfácio da reedição em francês e inglês do livro de Richards, em 1995,
Grotowski preenche essa lacuna. Ele acrescentou que, mesmo antes de começar a
trabalhar, ele e Cielask haviam lido
[...]
o Cântico Espiritual de São João da Cruz (que está ligado à tradição bíblica do
Cântico ddos Cânticos). Nessa referência se esconde a relação entre a alma e o
Verdadeiro – ou, se quiserem, entre o Homem e Deus – é a relação da Amada com o
Amado. É isso que levou Cielask em direção à memória de uma experiência de amor
tão única que se tornou uma oração carnal[vii].
Ao
eliminar a densidade residual do corpo-energia do ator, a referência ao Cântico de João da Cruz se tornou a terra de ninguém entre a sensualidade e a
oração em uma oração carnal. Palavras de Grotowski. A experiência do amor
entre um homem e uma mulher, porém, quando profunda, deve ser transcendida em
uma relação entre o Homem e Deus, de
modo que o corpo-energia que a revive torna-se completamente espiritual.
O
que está na memória do corpo-memória? Quem é dono do corpo-memória?
Eu
volto para Stanislavski. Entre 1918 e 1922 ele trabalha com um grupo de jovens
cantores de ópera em um Estúdio Operístico do Bolshoi. Com o ator-que-canta,
ele tenta ir além do Estado criativo
do ator-que-fala. A música permite que você acesse o estado heróico. A ação do herói é pessoal, mas transcende a pessoa
que a realiza. No estado heróico – explica Stanislavski – tudo é levado ao
extremo.
Ele
volta-se para uma atriz que deve interpretar uma cena com a irmã que levou o
marido dela embora. Você pode alcançar as alturas da arte – ele diz – apenas
quando
[...]
você se esquecer de si mesma [...] quando você descobrir as circunstâncias que
atenuem a culpa de sua irmã, somente quando começar a se perguntar quando e
onde você mesmo cometeu injustiça ao seu marido. Então, nascerá de você, irá
fluir na cena uma onda de bondade e não de maldições, e mais a energia que vem
da tensão heróica do coração feminino e do perdão (Stanislavski, 1980, p. 119).
Quem
possui a memória daquela mulher capaz de bondade e não de maldições, de perdão
e não de vingança? O corpo-memória que encontra ou descobre isso é o corpo da
atriz como corpo, ou como canal? O que é certo é que, também para Stanislavski,
mesmo com o compromisso do espetáculo por fazer, além do corpo animado por sua
própria experiência, há um corpo ulterior, que é do indivíduo como ser humano
universal. O relacionamento amoroso entre o Homem e Deus no Cântico de João da Cruz, no qual a carne
de Cieslak torna-se oração, não é substancialmente diferente da compaixão em
que o ressentimento de uma mulher traída se transforma em bondade e perdão.
Em
termos de energia, as ações físicas são o veículo para mover verticalmente, de
baixo para cima; em termos de memória, são o veículo para mover
horizontalmente, do agora em direção ao antes. Enquanto a energia se torna mais
sutil, a memória torna-se sempre mais antiga. Sobre o eixo da memória, a mulher
capaz de não sentir ódio pelo insulto recebido é anterior a mulher que, ao contrário, se deixa animar apenas pelo
desejo de vingança. O homem capaz de viver uma experiência de amor como uma
relação com o divino é anterior ao
homem que se deixa animar apenas pela sensualidade.
O
movimento que sobe ao longo do eixo da energia e aquele que vai ao longo do
eixo da memória são um único e idêntico movimento no veículo das ações físicas.
A arte como um veículo: para subir a escada de Jacob, e para voltar a um tempo
sempre mais distante no tempo.
Grotowski
escreveu em O Performer:
Toda
vez que eu descubro algo tenho a sensação que seja isto que lembro. As
descobertas estão atrás de nós, e é preciso fazer uma viagem de volta para
chegar até elas. Com um avanço – como no retorno de um exílio – se pode tocar
algo que não está mais ligado às origens, mas – se ouso dizer – a origem? Acho
que sim (Grotowski, s/d, p. 87).
Origem. No eco de Craig
soaria como antes da queda: quando para o homem somente o desejo de voar era já
poder voar. Grotowski traduz o desejo em esforço prático, longo caminho,
pesquisa exaustiva: para preservar a eficácia da utopia do ator que voa.
______________________________
Referências
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Antonio; BIAGINI, Mario. Seminario a “La Sapienza”, ovvero della coltivazione
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BARBA,
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Il mio apprendistato in Polonia. Seguido por 26 cartas de Jerzy Grotowski a
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BARBA,
Eugenio. La Terra di Cenere e Diamanti.
Il mio apprendistato in Polonia. Seguido por 26 cartas de Jerzy Grotowski a
Eugenio Barba. Bologna: Il Mulino, 1998.
BRENNEN,
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TOPORKOV, Vasilij O. Stanislavski in Rehearsal. The Final Years. New York: Theatre Arts
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[i]
Quanto aos eventos citados na carta: sobre o encontro em Wroclaw em 1975
conforme Wroclaw 1975. Miele a San Giovanni; a referência a Artaud está no livro
I teatri di Artaud. Crudeltà, corpo-mente, que foi publicado há pouco tempo (Il
Mulino, Bologna, 1996); sobre o seminário para diretores ocorrido em Pontedera
em 1989 – não nove, então, mas oito anos antes – encontra-se em Pontedera 1989.
La sigaretta di Stanislavskij; de 24 a 27 de abril de 1997 se desenvolveu em
Wroclaw o encontro Laboratórios, grupos e estudos teatrais no século XIX na
Europa
[ii]
A definição de texto-programa se encontra na carta a Barba de 5 de setembro de
1965.
[iii]
L’Università della ricerca foi realizada com o patrocínio do Instituto
Internacional do Teatro, que, de 8 a 28 de junho de 1975, em Varsóvia, havia
promovido uma nova edição do Festival de Théâtre des Nations, que havia estado
inativo por vários anos. Ele foi organizado pelo Teatro Laboratório de
Grotowski, pelo Odin Teatret de Barba e pelo Teatro Daidalos de Malmoe.
[iv]
Veja Eugenio Barba, Théâtre psycho-dynamique, p. 75. O texto é uma brochura
preparada para uso interno. Barba a retoma amplamente no seu livro de 1965. O
agradeço por fornecer-me um manuscrito.
[v]
Edward Gordon Craig, Il mio teatro, (Org. Ferruccio Marotti), Feltrinelli,
Milano 1971, respectivamente p. 4 e p. 29. Na versão mais ampla, este parágrafo
figura no meu L’attore che vola. Boxe, acrobazia, scienza della scena, Bulzoni,
Roma, 2010.
[vi]
Ver Jerzy Grotowski, Risposta a Stanislavskij.
In: Attisani; Biagini (Org.)., Jerzy Grotowski.
Testi, p. 50. O texto foi publicado em primeira edição italiana, como
apêndice a K. Stanislavskij, L’attore creativo. Conversazioni al Teatro Bol’šoj,
por Fabrizio Cruciani e Clelia Falletti. Firenze: La casa Usher, 1980.
[vii]
Ver Jerzy Grotowski, Dalla compagnia teatrale, versão definitiva, em A.
Attisani e M. Biagini (Org.), Jerzy Grotowski. Testi, p. 99; destaque meu. Devo
a sinalização da variante em relação a primeira edição italiana a Mario Biagini
e Thomas Richards. Fizeram-me em ocasião da leitura do meu ensaio sobre Per un
teatro povero, do qual falei no parágrafo anterior.