sexta-feira, 27 de maio de 2016

Físico de narrador – O corpo no Teatro dos “atores que narram”

Nosso artigo de hoje traz uma análise do trabalho corporal de dois importantes atores do teatro de narração italiano.
O Teatro de narração é um novo gênero do teatro italiano e se diferencia dos espetáculos de narrativas orais que estamos acostumados no Brasil (observem os vídeos anexados ao artigo), embora também sejam caracterizados por uma pessoa em cena que conta histórias. Esse gênero possui um caráter mais social e, a partir dele, desenvolve-se o Teatro Civile, um sub gênero que é a tendência italiana em Teatro moderno e sobre o qual já escrevemos anteriormente[i] e que se caracteriza por uma temática voltada para a atualidade política e social.
Boa leitura!
Marco Paolini - imagem do site
http://cinema-tv.virgilio.it/


Físico de narrador – O corpo no Teatro dos “atores que narram”

Por Nicola Zuccherini, disponível no portal de literatura
http://www.griseldaonline.it/temi/il-corpo/fisico-da-narratore-zuccherini.html

Tradução de Claudia Venturi

Dizer, atualmente, que um escritor é um narrador, é dizer pouco. Poderá, no máximo, dizer que ele produz romances ou contos, mas neste ponto todos irão querer saber a qual gênero ou a qual estilo literário pertencem estas obras (e nenhum leitor irá além da primeira linha sem o saber) e a definição ainda não significará nada. Dizer isto de um ator, ao contrário, é atribuir a ele um território bem preciso: de um “teatro de narração”, se diz então, até de forma autoral, como de um gênero com as suas regras, os seus filões bem distintos, os seus criadores de gênero literário[ii]. Os narradores são os atores que recriam sozinhos, que assinam os seus espetáculos do texto à direção (mas com importantes colaborações), que contam histórias reais, imaginárias, ou tradicionais, mas sempre bem sedimentadas em uma memória coletiva, que constroem os seus textos sobre uma base de longas pesquisas do tipo antropológico, jornalístico ou sociológico, que com os seus espetáculos desenvolvem uma função de denúncia, de revelação, de protesto ou de educação e memória civil. Os nomes são bem conhecidos dos espectadores de teatro: Marco Paolini, Laura Curino, Marco Baliani, Ascanio Celestini, Davide Enia.
Laura Curino, imagem de http://www.barrios.it/

Um ‘gênero’ que se definiu no final dos anos 80, através de um processo inventivo original, um rompimento suave, não completamente percebido, na transmissão do saber e das práticas de palco. A narração foi a solução encontrada por alguns talentos frente a novos problemas da cena, aos quais as respostas clássicas do teatro experimental mais avançado não correspondiam. Marco Baliani, que com o seu Kohlhaas (1989) marcou a fundação do gênero, encontrava nos contos de um “ator sozinho” a estrada para abandonar as práticas tradicionais da cena e recusar o teatro de representação sem perder o contato com os conteúdos fortes e a comunicação com o público[iii]. Junto à companhia Teatro Settimo havia Marco Paolini e Laura Curino, que construíram as ferramentas do teatro de narração a partir de modelos compositivos autobiográficos que, sobretudo no caso de Paolini, utilizava fundamentos do teatro cômico[iv].

Marco Baliani - imagem de http://www.solaresonline.it/

O “gênero”, então, há uma forte raiz nas experiências teatral-experimentais dos anos 1970, mas desde cedo se distanciou daqueles tempos e dos estilos da pesquisa teatral. Os narradores apelam a diversos pontos de referência: poetas, escritores, profissionais, pessoas que talvez sejam próximas ao mundo do teatro, mas que não fazem parte dele. Em torno dessas experiências nasceu uma relação com os espectadores de uma intensidade que, no teatro italiano, parecia desaparecida para sempre: aproximação, cumplicidade e paixão, mas sem o cheiro de fechado de tantas experiências novistas[v]; grandes números, mas sem a passividade dos espetáculos para um vasto público. Do novo teatro dos anos 1970 os narradores conservam alguns modos de agir: a quase conexão entre a escrita literária e a direção, a elaboração lenta e complexa do espetáculo, o trabalho prático de oficina. O resultado é, porém, muito diferente: é “a extrema unificação entre a escrita teatral e a escrita cênica”, do qual escreveu Paolo Puppa[vi]. A palavra é central, a encenação é funcional ao conto, as sutilezas formais e estilísticas ao invés de serem exibidas, são integradas até desaparecerem na narração, há uma primazia dos fatos narrados sobre o evento representativo.

Davide Enia - imagem disponível no flickr.

E o corpo, então? Apenas um veículo, mesmo que potentíssimo, da história, apenas um fantoche possuído pela força da narração? Apenas um instrumento interpretativo? Não mesmo. Ao contrário, se observar a interpretação dos narradores é um ponto de partida indispensável para compreender como funciona a corporeidade do teatro deles, limitar-nos a este aspecto nos faria perder o caminho. É evidente: exatamente a forma particular desses textos, destinados à narração em público, torna a corporeidade do narrador um elemento indispensável à escrita. A relação que conta é aquela do corpo com a palavra: mas com a palavra escrita, não com a falada.

Ascanio Celestini - imagem do site http://www.ilrestodelcarlino.it/

Partimos – como prometido – da interpretação, aliás, da construção do conto que será interpretado, escolhendo dois exemplos que emblematicamente podem ser reconduzidos a duas fases diversas do “gênero” teatral narrativo: Marco Paolini e Ascanio Celestini. Marco Paolini coloca em cena espetáculos de narração do final dos anos 1980. Uma produção que, grosso modo, pode ser dividida em dois filões: aquele em primeira pessoa, em Album e nos Bestiari [vii], fundamentados sobre a trama de autobiografia, observação do presente e memória coletiva (e nascidos como espetáculos de teatro cômico) e o teatro de compromisso civil, narrado em terceira pessoa. Nascem todos de elaborações complexas, processos que colocam em campo não apenas o ator-autor e os seus colaboradores de cena (e de página, basta observar as longas listas de contribuições à dramaturgia que acompanham os programas dos espetáculos), mas também verdadeiras redações com tantos cronistas, operadores de vídeo e fotógrafos. Para colocar em cena precisa, então, rever os materiais, selecioná-los, cortar, espremer[viii]. Escolher aquilo que se pode dizer e aquilo que não se poderá contar. Daqui vem o texto que, podemos dizer, será verdadeiramente escrito somente quando o ator o colocar em cena para recriá-lo. Com a interpretação ganham vida não apenas os personagens e os eventos narrados: Paolini, escreveu Marchiori, “começou a multiplicar o ponto de vista e aprendeu a assumir [...] até aquele dos animais, das coisas inanimadas, da paisagem desamparada. Enfim, conseguiu dar voz à paisagem”[ix]. Paolini é um ator tecnicamente preparado e hábil. O corpo do ator é forte, mas não imponente, móvel, mas não plena agilidade; sobretudo as mãos desenham lugares, coisas e espaços, os posicionam, os indicam para trazê-los para a cena. Enfim, uma interpretação que não é apenas descritiva, mas serve para transformar a presença do ator de carne e osso em um corpo-paisagem.

Trecho de Album - espetáculo de Marco Paolini

Muito diferente é o caso de Ascanio Celestini, ator bem menos técnico e que nasceu artisticamente quando o teatro de narração já havia se tornado um gênero. Uma cena reduzida ao osso dos seus espetáculos mais consumados (em geral uma cadeira e um abajur, outros poucos elementos, nenhum objeto para manipular, sem comprometer o espaço do palco)[x] Celestini pratica uma escrita composta na qual entram as técnicas interpretativas e os métodos da etnologia e da história oral.
Sobre este assunto ele já falou várias vezes: “No centro do meu trabalho não está a encenação do espetáculo, mas aquilo que vem antes: uma pesquisa de campo. [...] A minha escrita e o meu modo de agir devem muito, sobretudo, a antropologia de Ernesto De Martino, Gianni Bosio e, hoje, Alessandro Portelli”[xi]. Há sobretudo uma particular capacidade de dar oportunidade ao conto das pessoas (aprendida em casa, diz) e de incluir a formação das memórias pessoais e coletivas[xii]. É sabido que os seus espetáculos emblemáticos nasceram de pesquisas, experiências e oficinas de caráter antropológico e teatral. Experiências um tanto complexas, às vezes, para desvincular da preparação do espetáculo e ter uma vida própria. Um material um tanto abundante e estratificado vem restituído com uma técnica de palco que, ao invés de enfatizar a variedade, reconduz tudo a uma economia extrema de meios cênicos e, sobretudo, interpretativos. Celestini é super concentrado: fica muito sentado, se movimenta pouco, confia a interpretação a breves movimentos das mãos e do rosto, se acena um gesto é porque aquele gesto serve para mostrar aquilo que o narrador viu ou o seu espectador. Os personagens e os lugares não são interpretados, mas vivem no texto.

Trecho de Fabbrica - espetáculo de Ascanio Celestini

O corpo-paisagem de Marco Paolini – que delimita e contém a história – e a concentração de Ascanio Celestini, garantida pela extrema economia de recursos interpretativos físicos: dois indícios do vínculo estreito entre o corpo e a escrita no teatro de narração. Leiamos também esta observação de Marco Baliani: “Então toca o sinal e o meu corpo vai em frente, sabe o que deve fazer, aonde deve olhar, ele tem uma boa memória. Tem razão o velho Beckett, ‘o meu corpo dará o melhor de si, mesmo sem mim’.”[xiii] Os textos estratificados, contidos e dilatados do teatro de narração encontram a sua definição só no corpo narrante[xiv]. No final dos processos de escrita e elaboração linguística, será a presença física do ator a desenhar e delimitar o que será narrado: um material de escrita muito especial para espetáculos que foram concebidos como livros, mas escritos com o corpo.



[i] Leia o artigo em http://circuloartisticoteodora.blogspot.com.br/2016/02/teatro-civile-tendencia-italiana.html
[ii] Sobre o Teatro de Narração e sobre a sua definição podem ser encontrados numerosas intervenções de Oliviero Ponte di Pino: “Il racconto. Conversazione con Marco Baliani, Il Patalogo 18, organizado por Franco Quadri, Ubulibri, Milão, 1999; Sei spettacoli na Raidue, Il Patalogo 19, IBID 2000”; Sobre a narração e seus narradores, “Diario della settimana” , 14 de abril de 1999. Intervenções atuais todas reunidas, consolidadas, nas páginas da revista online “ateatro” (www.ateatro.it). Da mesma revista veja-se o número monográfico dedicado a La narrazione e la voce (nº 56, agosto 2003). Igualmente importante são alguns livros “doutrinários”, escritos por narradores ou dedicados a eles: Oliviero Ponte Di Pino – Marco Paolini, Quaderno Del Vajont, Einaudi, Torino 1999; Fernando Marchiori, Mapa mondo. O Teatro de Marco Paolini, Einaudi, Torino 2003; Marco Baliani, Corpo di Stato. Il delito Moro. Rizzoli, Milão 2003; Ascanio Celestini, Cecafumo. Storie da leggere as alta você, Donzelli, Roma 2003. Uma perspectiva crítica mais imediata em Paolo Puppa, Il teatro dei testi. La drammaturgia italiana nel Novecento, Utet libreria, Torino 2003 pp. 200-209.
[iii] Fato narrado na entrevista organizada por Oliviero Ponte di Pino. Il racconto. Conversazione con Marco Baliani, obra citada.
[iv] A passagem de Paolini do teatro de representação para o de narração é contado por Fernando Marchiori, Mappa mondo, obra citada, pp 82-88.
[v] Tendência a considerar o que é novo melhor.
[vi] O teatro dos testos, obra citada, p. 200.
[vii] Espetáculos de Marco Paolini.
[viii] Para uma documentação destas atividades o filme Questo radichio non si toca. Diario di un’estate, de Giuseppe Baresi e Marco Paolini, prod. Jolefilm – Stilo 2003 (distribuído em videocassete anexa a Fernando Marchiori, Mappa mondo, obra citada).
[ix] Mappa mondo. Obra citada, p. 40.
[x] Pensemos em Radio Clandestina (2000) e Fabbrica (2002); observa-se que no mais recente Le nozze di Antigone, a escrita de Celestini se abriu para um tipo de narração com mais vozes.
[xi] Escutem! Chegou Ascanio Celestini, entrevista de Nicola Zuccherini, “Zero na conduta”, 6 de dezembro de 2002. Consultar também a entrevista dada a Tiziano Fratus, Lo spazio aperto. Il teatro ad uso delle giovani generazioni, Editoria e spettacolo, Roma 2002, p. 38 entre outras.
[xii] Consultar ainda o que disse a Tiziano Fratus, ló spazio aperto, obra citada, p. 33.
[xiii] Corpo di Stato, cit. p. 109
[xiv] que narra.

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