Nosso artigo de hoje traz uma análise
do trabalho corporal de dois importantes atores do teatro de narração italiano.
O Teatro de narração é um novo gênero do
teatro italiano e se diferencia dos espetáculos de narrativas orais que estamos
acostumados no Brasil (observem os vídeos anexados ao artigo), embora também
sejam caracterizados por uma pessoa em cena que conta histórias. Esse gênero
possui um caráter mais social e, a partir dele, desenvolve-se o Teatro Civile,
um sub gênero que é a tendência italiana em Teatro moderno e sobre o qual já
escrevemos anteriormente[i] e que se caracteriza por
uma temática voltada para a atualidade política e social.
Boa leitura!
Marco Paolini - imagem do site http://cinema-tv.virgilio.it/ |
Físico de narrador – O corpo no Teatro dos “atores
que narram”
http://www.griseldaonline.it/temi/il-corpo/fisico-da-narratore-zuccherini.html
Tradução de Claudia Venturi
Dizer, atualmente, que um escritor é um
narrador, é dizer pouco. Poderá, no máximo, dizer que ele produz romances ou
contos, mas neste ponto todos irão querer saber a qual gênero ou a qual estilo
literário pertencem estas obras (e nenhum leitor irá além da primeira linha sem
o saber) e a definição ainda não significará nada. Dizer isto de um ator, ao
contrário, é atribuir a ele um território bem preciso: de um “teatro de
narração”, se diz então, até de forma autoral, como de um gênero com as suas
regras, os seus filões bem distintos, os seus criadores de gênero literário[ii]. Os narradores são os
atores que recriam sozinhos, que assinam os seus espetáculos do texto à direção
(mas com importantes colaborações), que contam histórias reais, imaginárias, ou
tradicionais, mas sempre bem sedimentadas em uma memória coletiva, que constroem
os seus textos sobre uma base de longas pesquisas do tipo antropológico,
jornalístico ou sociológico, que com os seus espetáculos desenvolvem uma função
de denúncia, de revelação, de protesto ou de educação e memória civil. Os nomes
são bem conhecidos dos espectadores de teatro: Marco Paolini, Laura Curino,
Marco Baliani, Ascanio Celestini, Davide Enia.
Laura Curino, imagem de http://www.barrios.it/ |
Um ‘gênero’ que se definiu no final dos
anos 80, através de um processo inventivo original, um rompimento suave, não
completamente percebido, na transmissão do saber e das práticas de palco. A
narração foi a solução encontrada por alguns talentos frente a novos problemas
da cena, aos quais as respostas clássicas do teatro experimental mais avançado
não correspondiam. Marco Baliani, que com o seu Kohlhaas (1989) marcou a fundação do gênero, encontrava nos contos
de um “ator sozinho” a estrada para abandonar as práticas tradicionais da cena
e recusar o teatro de representação sem perder o contato com os conteúdos
fortes e a comunicação com o público[iii]. Junto à companhia Teatro Settimo havia Marco Paolini e
Laura Curino, que construíram as ferramentas do teatro de narração a partir de
modelos compositivos autobiográficos que, sobretudo no caso de Paolini, utilizava
fundamentos do teatro cômico[iv].
Marco Baliani - imagem de http://www.solaresonline.it/ |
O “gênero”, então, há uma forte raiz
nas experiências teatral-experimentais dos anos 1970, mas desde cedo se
distanciou daqueles tempos e dos estilos da pesquisa teatral. Os narradores
apelam a diversos pontos de referência: poetas, escritores, profissionais,
pessoas que talvez sejam próximas ao mundo do teatro, mas que não fazem parte
dele. Em torno dessas experiências nasceu uma relação com os espectadores de
uma intensidade que, no teatro italiano, parecia desaparecida para sempre:
aproximação, cumplicidade e paixão, mas sem o cheiro de fechado de tantas
experiências novistas[v]; grandes números, mas sem
a passividade dos espetáculos para um vasto público. Do novo teatro dos anos
1970 os narradores conservam alguns modos de agir: a quase conexão entre a escrita
literária e a direção, a elaboração lenta e complexa do espetáculo, o trabalho
prático de oficina. O resultado é, porém, muito diferente: é “a extrema
unificação entre a escrita teatral e a escrita cênica”, do qual escreveu Paolo
Puppa[vi]. A palavra é central, a
encenação é funcional ao conto, as sutilezas formais e estilísticas ao invés de
serem exibidas, são integradas até desaparecerem na narração, há uma primazia
dos fatos narrados sobre o evento representativo.
Davide Enia - imagem disponível no flickr. |
E o corpo, então? Apenas um veículo, mesmo
que potentíssimo, da história, apenas um fantoche
possuído pela força da narração? Apenas um instrumento interpretativo? Não
mesmo. Ao contrário, se observar a interpretação dos narradores é um ponto de
partida indispensável para compreender como funciona a corporeidade do teatro
deles, limitar-nos a este aspecto nos faria perder o caminho. É evidente:
exatamente a forma particular desses textos, destinados à narração em público,
torna a corporeidade do narrador um elemento indispensável à escrita. A relação
que conta é aquela do corpo com a palavra: mas com a palavra escrita, não com a
falada.
Ascanio Celestini - imagem do site http://www.ilrestodelcarlino.it/ |
Partimos – como prometido – da
interpretação, aliás, da construção do conto que será interpretado, escolhendo
dois exemplos que emblematicamente podem ser reconduzidos a duas fases diversas
do “gênero” teatral narrativo: Marco Paolini e Ascanio Celestini. Marco Paolini
coloca em cena espetáculos de narração do final dos anos 1980. Uma produção
que, grosso modo, pode ser dividida em dois filões: aquele em primeira pessoa,
em Album e nos Bestiari [vii], fundamentados sobre a
trama de autobiografia, observação do presente e memória coletiva (e nascidos
como espetáculos de teatro cômico) e o teatro de compromisso civil, narrado em
terceira pessoa. Nascem todos de elaborações complexas, processos que colocam
em campo não apenas o ator-autor e os seus colaboradores de cena (e de página,
basta observar as longas listas de contribuições à dramaturgia que acompanham
os programas dos espetáculos), mas também verdadeiras redações com tantos
cronistas, operadores de vídeo e fotógrafos. Para colocar em cena precisa,
então, rever os materiais, selecioná-los, cortar, espremer[viii]. Escolher aquilo que se
pode dizer e aquilo que não se poderá contar. Daqui vem o texto que, podemos
dizer, será verdadeiramente escrito somente quando o ator o colocar em cena
para recriá-lo. Com a interpretação ganham vida não apenas os personagens e os
eventos narrados: Paolini, escreveu Marchiori, “começou a multiplicar o ponto
de vista e aprendeu a assumir [...] até aquele dos animais, das coisas inanimadas,
da paisagem desamparada. Enfim, conseguiu dar voz à paisagem”[ix]. Paolini é um ator
tecnicamente preparado e hábil. O corpo do ator é forte, mas não imponente,
móvel, mas não plena agilidade; sobretudo as mãos desenham lugares, coisas e
espaços, os posicionam, os indicam para trazê-los para a cena. Enfim, uma
interpretação que não é apenas descritiva, mas serve para transformar a
presença do ator de carne e osso em um corpo-paisagem.
Trecho de Album - espetáculo de Marco Paolini
Muito diferente é o caso de Ascanio
Celestini, ator bem menos técnico e que nasceu artisticamente quando o teatro
de narração já havia se tornado um gênero. Uma cena reduzida ao osso dos seus
espetáculos mais consumados (em geral uma cadeira e um abajur, outros poucos
elementos, nenhum objeto para manipular, sem comprometer o espaço do palco)[x] Celestini pratica uma
escrita composta na qual entram as técnicas interpretativas e os métodos da
etnologia e da história oral.
Sobre este assunto ele já falou várias
vezes: “No centro do meu trabalho não está a encenação do espetáculo, mas
aquilo que vem antes: uma pesquisa de campo. [...] A minha escrita e o meu modo
de agir devem muito, sobretudo, a antropologia de Ernesto De Martino, Gianni
Bosio e, hoje, Alessandro Portelli”[xi]. Há sobretudo uma
particular capacidade de dar oportunidade ao conto das pessoas (aprendida em
casa, diz) e de incluir a formação das memórias pessoais e coletivas[xii]. É sabido que os seus
espetáculos emblemáticos nasceram de pesquisas, experiências e oficinas de
caráter antropológico e teatral. Experiências um tanto complexas, às vezes, para
desvincular da preparação do espetáculo e ter uma vida própria. Um material um
tanto abundante e estratificado vem restituído com uma técnica de palco que, ao
invés de enfatizar a variedade, reconduz tudo a uma economia extrema de meios
cênicos e, sobretudo, interpretativos. Celestini é super concentrado: fica
muito sentado, se movimenta pouco, confia a interpretação a breves movimentos
das mãos e do rosto, se acena um gesto é porque aquele gesto serve para mostrar
aquilo que o narrador viu ou o seu espectador. Os personagens e os lugares não
são interpretados, mas vivem no texto.
Trecho de Fabbrica - espetáculo de Ascanio Celestini
O corpo-paisagem de Marco Paolini – que
delimita e contém a história – e a concentração de Ascanio Celestini, garantida
pela extrema economia de recursos interpretativos físicos: dois indícios do
vínculo estreito entre o corpo e a escrita no teatro de narração. Leiamos
também esta observação de Marco Baliani: “Então toca o sinal e o meu corpo vai
em frente, sabe o que deve fazer, aonde deve olhar, ele tem uma boa memória.
Tem razão o velho Beckett, ‘o meu corpo dará o melhor de si, mesmo sem mim’.”[xiii] Os textos
estratificados, contidos e dilatados do teatro de narração encontram a sua
definição só no corpo narrante[xiv].
No final dos processos de escrita e elaboração linguística, será a presença
física do ator a desenhar e delimitar o que será narrado: um material de
escrita muito especial para espetáculos que foram concebidos como livros, mas
escritos com o corpo.
[i]
Leia o artigo em http://circuloartisticoteodora.blogspot.com.br/2016/02/teatro-civile-tendencia-italiana.html
[ii]
Sobre o Teatro de Narração e sobre a sua definição podem ser encontrados
numerosas intervenções de Oliviero Ponte di Pino: “Il racconto. Conversazione con Marco Baliani, Il Patalogo 18, organizado por Franco Quadri, Ubulibri, Milão,
1999; Sei spettacoli na Raidue, Il Patalogo 19, IBID 2000”; Sobre a
narração e seus narradores, “Diario della
settimana” , 14 de abril de 1999. Intervenções atuais todas reunidas,
consolidadas, nas páginas da revista online “ateatro” (www.ateatro.it). Da
mesma revista veja-se o número monográfico dedicado a La narrazione e la voce (nº 56, agosto 2003). Igualmente importante
são alguns livros “doutrinários”, escritos por narradores ou dedicados a eles:
Oliviero Ponte Di Pino – Marco Paolini,
Quaderno Del Vajont, Einaudi, Torino 1999; Fernando Marchiori, Mapa mondo. O Teatro de Marco Paolini, Einaudi,
Torino 2003; Marco Baliani, Corpo di
Stato. Il delito Moro. Rizzoli, Milão 2003; Ascanio Celestini, Cecafumo. Storie da leggere as alta você, Donzelli,
Roma 2003. Uma perspectiva crítica mais imediata em Paolo Puppa, Il teatro dei testi. La drammaturgia
italiana nel Novecento, Utet libreria, Torino 2003 pp. 200-209.
[iii]
Fato narrado na entrevista organizada por Oliviero Ponte di Pino. Il racconto. Conversazione con Marco
Baliani, obra citada.
[iv]
A passagem de Paolini do teatro de representação para o de narração é contado
por Fernando Marchiori, Mappa mondo,
obra citada, pp 82-88.
[v]
Tendência a considerar o que é novo melhor.
[vi]
O teatro dos testos, obra citada, p.
200.
[vii]
Espetáculos de Marco Paolini.
[viii]
Para uma documentação destas atividades o filme Questo radichio non si toca. Diario di un’estate, de Giuseppe
Baresi e Marco Paolini, prod. Jolefilm – Stilo 2003 (distribuído em
videocassete anexa a Fernando Marchiori, Mappa
mondo, obra citada).
[ix]
Mappa mondo. Obra citada, p. 40.
[x]
Pensemos em Radio Clandestina (2000)
e Fabbrica (2002); observa-se que no
mais recente Le nozze di Antigone, a
escrita de Celestini se abriu para um tipo de narração com mais vozes.
[xi] Escutem! Chegou Ascanio Celestini, entrevista
de Nicola Zuccherini, “Zero na conduta”, 6 de dezembro de 2002. Consultar
também a entrevista dada a Tiziano Fratus, Lo
spazio aperto. Il teatro ad uso delle giovani generazioni, Editoria e
spettacolo, Roma 2002, p. 38 entre outras.
[xii]
Consultar ainda o que disse a Tiziano Fratus, ló spazio aperto, obra citada, p. 33.
[xiii]
Corpo di Stato, cit. p. 109
[xiv] que
narra.
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