sábado, 25 de junho de 2016

Entrevista: Zé Celso Martinez Corrêa

“Não há coisa mais deliciosa do que a vida de artista, mas custa muito caro. Precisa de muito instinto e felicidade guerreira.”

Entrevista: Zé Celso Martinez Corrêa

Nesta semana o Círculo Artístico Teodora posta uma entrevista com um dos mais importantes nomes do Teatro Brasileiro. Seja pela inovação e irreverência de seus trabalhos, seja pelo posicionamento político e social. Um gênio para uns, o “velho que gosta de mostrar a bunda” para outros, mas sempre polêmico e marcante.
Boa leitura!

Foto do site
http://revistatrip.uol.com.br/trip/ze-celso


Entrevista com José Celso Martinez
Por *Elisa Duarte/Revista Contigo!
Postado em: BLOG DE TEATRO da Cia Paulicéia Desvairada, em 2010



“Ator é o que age, atua em si mesmo, no outro, na matéria do mundo.”


O diretor começou a ser visto como referência teatral após o espetáculo O Rei da Vela (1967), de Oswald de Andrade, considerada uma das montagens mais inovadoras do diretor pelos acessórios, cenário e músicas.


Quais as bases para uma pessoa permanecer na carreira de teatro e perseverar na profissão de ator? Há um caminho a seguir?

Não há caminho certo. Ao contrário, é preciso inventar caminhos, impulsionado pelos teus desejos mais secretos, mais proibidos, considerados ''errados'', tabus pela maioria do rebanho. Mas o teatro você faz com outros, não é uma arte solitária. Você precisa comungar, comer e ser comido por pessoas que, por coincidência milagrosa no tempo, você encontra, que queiram partir contigo, na busca de dar pelo teatro mais vida às suas vidas e à vida de todo mundo: o público do seu tempo. É como encontrar muitos amantes, encontrar os parceiros de jogo desta orgia que é o teatro. Para permanecer nesta "roça", é preciso ser antes de tudo "um forte", pois você vai ter que dia a dia, noite a noite, conquistar tua permanência sambando na corda bamba da fatalidade, que são as transformações permanentes da vida e da morte. Estar plugado sempre em todo mundo, mas ir mais além no risco, na beleza, com ginga na arte de teatro, que é a mesma que a de amar e a de viver.


Qual o princípio básico de um ator? O que ele deve desejar em primeiro lugar?

Ator é o que age, atua em si mesmo, no outro, na matéria do mundo. O ator não ''deve'' nada, ele tem é de assumir seu poder humano, o poder do seu corpo, que é quem sabe o que ele, corpo, quer desejar. Atuar é desejar outros corpos do mundo, além das máscaras profissionais, da idade, de classe, dos armários, enfim, além do bem e do mal. Teu próprio desejo vai descobrir - no espelho do desejo dos outros você vai escolher como companhia através da poesia do teatro de hoje e do mais antigo.


Como prepara seus atores?

Preparando-me para merecer encontrar atores. Atuando sobre a coragem do meu instinto para entrar em sintonia com os que mexem comigo, isto é, que atuam comigo. É como o namoro. É difícil explicar por que você ama umas pessoas e não outras. Os atores e atrizes revelam-se como enamorados. A arte do teatro não é diferente da arte da paixão, de produzir e adorar a beleza, da arte de viver intensamente, enfim. Não há coisa mais deliciosa do que a vida de artista, mas custa muito caro. Precisa de muito instinto e felicidade guerreira.


O que pensa grande número de pessoas que buscam a carreira de ator apenas para ficarem famosas?


A arte do ator é a da interpretação da vida a partir do seu corpo, em contato com tudo e todos pelos seus sentidos. O ator que se vende para tornar-se celebridade, ter fama, ficar rico, ter prestígio social, sacrifica muitas vezes sua arte, que é a de interpretar-se e passa a ser interpretado pelos marqueteiros do ibope. Claro que o ator quer e merece ser reconhecido, é justíssimo, mas os que têm o que dizer ao mundo são mais ambiciosos, querem mais que ser celebridade, querem ser eternos, imortais na sua total mortalidade. Estes deixam vestígio de sua passagem no mundo, tatuam o coração da condição humana.

Foto do site: Entretenimento UOL

sábado, 18 de junho de 2016

O teatro é de todos e para todos


A Importância do Teatro, o povo, o governo e a desvalorização - Por Ramon Vitor, disponível no site:
http://oficinadeteatro.com/conteudotextos-pecas-etc/artigos-e-noticias/432-o-teatro-e-de-todos-e-para-todos

Foto dda matéria original

Apesar de não receber o seu devido valor sempre, indiscutivelmente o teatro é fundamental na formação cultural e pessoal de qualquer pessoa. Ele nos faz conhecer mais sobre a nossa própria cultura que, a cada vez mais, as pessoas não dão o devido valor, apesar de esta ser uma identidade carregada por todos nós. Entretanto, em 2009, foi feita uma pesquisa pelo Instituto da Cidadania com jovens de 15 a 24 anos, abordando temas gerais da vida, como lazer, trabalho, escolaridade e sexualidade. E o que mais chama atenção é a abstinência cultural do jovem brasileiro:
23% nunca leram um livro
39% nunca foram ao cinema
62% nunca foram ao teatro
59% nunca foram a um show musical
52% nunca estiveram numa biblioteca fora da escola
O que mais chama a atenção, é que mesmo um espetáculo teatral sendo considerado muito mais rico do que um filme no cinema, os números apontam que os brasileiros vão muito mais a cinemas que a teatros. Percebe-se que o acesso ao cinema é muito maior que ao teatro. Por que não o oposto? O teatro dentro de sua composição tem muito mais cultura a apresentar para nós do que um filme que às vezes até trazem obras vazias.
Nas crianças, o teatro ajuda na formação e no desenvolvimento, que assim irá despertar o desejo por conhecimento. Com toda certeza, ele deveria ser acrescentado na educação básica de todo jovem brasileiro, pois ele traz entretenimento, informação e cultura uma forma prazerosa e bem divertida. Se acrescentado nas grades curriculares, o aluno teria mais vontade e desejo pelo estudo, já que poderia ser uma aula descontraída e divertida, mas, claro, ao mesmo tempo trouxesse muita coisa de ensino ao aluno.
Há espetáculos que são especificamente para o público jovem, tratando de assuntos que lhes lembram e lhes aproximam mais diretamente. Mas também há muitos outros espetáculos a que os jovens também podem assistir. Formidáveis peças de teatro são universais, que atingem tanto o adulto quanto o jovem e a criança.
O Povo
Outra pesquisa, um pouco mais recente, realizada pelo Ipea no final de 2010, mostra que:
"Metade dos brasileiros nunca foi a cinema, teatro ou museu"
Quase 60% da população brasileira nunca foi a um teatro ou a um show de dança e aproximadamente 70% jamais foi a museus ou centros culturais.
Segundo o Ipea, o desenvolvimento cultural depende do contexto urbano em que a população é inserida e a dificuldade de acesso a equipamentos culturais é apontada como um dos fatores para criar barreiras.
“A classe média brasileira diz que cultura é importante, mas se questionada sobre a frequência dela nestes espaços, é possível observar que ela prefere consumir. É o velho modelo importado dos americanos. No tempo livre, a população escolhe comer em um restaurante, por exemplo, do que gastar o dinheiro com livros ou música”, afirma o artista plástico Carlos Dalastella. (Trecho retirado deste texto do site gazetadopovo)
Não é questão de tempo, poder aquisitivo, consumismo. É questão de ter um pouco de esforço e pensamento próprio. Não há como negar, o brasileiro é acomodado em relação ao conhecimento. Algumas dificuldades podem até serem explicadas, mas não são desculpas para estagnar o seu desenvolvimento como pessoa, cidadão. Não são desculpas para você esquecer a literatura, a música boa, o seu conhecimento.
Hoje, o teatro não mais ocupa o centro da vida das pessoas e tornou-se uma arte "das minorias". Não venho a dizer que uma arte insignificante, nem uma arte a desaparecer, mas, sua capacidade de persuasão na vida de cada um não pode competir com a da televisão e nem do cinema. Entretanto, enquanto a televisão está cada vez mais a dispor da Mesmice e da busca pela a maior audiência, o teatro mudou, ou melhor dizendo, aumentou a liberdade que lhe permite explorar territórios novos... Tanto na escrita, como na encenação.
Vocês que estão lendo, já fizeram visitas ao teatro? Já foram a outras instituições culturais? A museus? Qual é a sua familiaridade com o teatro?
Você sabia que a plateia é o membro mais respeitado no teatro? E é para você que todos os esforços dos atores e da equipe técnica se somam, preparando o melhor espetáculo. Este que poderá ser uma grande experiência, com a qual poderá aprender muito e levar diversas lições com apenas uma peça.
A face, a identidade de uma origem cênica é infinitamente mais que a mera exibição da notação de um estilo marcante. Ela é o ponto a partir do qual uma cena devolve a total liberdade diante da obra, e que não obriga a pessoa a mudar o seu ponto de vista, ou a sua maneira de pensar, mas aplicar e redefinir aquilo à sua situação.
O Governo

É de se notar que principalmente no nosso país, assim como muitos outros programas culturais, o tetro tem falta de patrocínio e incentivo, o governo não incentiva o consumo da cultura nos momentos de lazer. O que será que facilita a ida do público ao teatro? O que facilita a ida do teatro até o público? Promover e baratear os ingressos, ter maior divulgação pelos meios de comunicação. A internet está ai, e cada vez crescendo mais, por que não explorar esse meio? A adequação de transportes e a construção de centros culturais principalmente na periferia das cidades podem dar maior acesso ao teatro. A publicidade atrai a grande massa como público, publique isso, exponha essas mudanças. A formação de um público de teatro tem como objetivo a ampliação dos frequentadores podendo, e criando SIM o hábito de ir ao teatro, na parcela atingida da população. Concluindo, se tiver a oportunidade de ir apreciar as peças teatrais, não pense duas vezes, vá e conseguirá perceber o quanto esta cultura pouco considerada vale muito a pena. A desconsideração do teatro é uma triste realidade, mas ela existe. Seria legal que isso mudasse, mesmo que aos poucos. As novas gerações vêm mudando ultimamente, alguns estão tendo mais contato com a arte de um modo mais geral. Seja por seus sonhos, estes desenham, compõem músicas e poemas, e isso já é um início... Agora é torcer por uma mudança de hábitos.

sábado, 11 de junho de 2016

A HERANÇA DA CIGARRA

A HERANÇA DA CIGARRA

Claudia Venturi, 1999,  em cena do espetáculo
"Aos poucos ouvidos moucos que virão falaremos um pouco da nossa escuridão",
de Jül Leardini / Curitiba Pr


Claudia Venturi, além de nossa presidente, é atriz com grande experiência em teatro e movimentos sociais. Possui especialização em Educação Fundamentada na Arte e Mestrado em Educação com período de estudos no curso de Teatro Social na Università Cattolica di Milano. Suas pesquisas a conduziram a um estudo mais aprofundado sobre teatros didáticos, como o de Bertolt Brecht e Augusto Boal e a participação em espetáculos de crítica e reflexão social, como “Aos poucos ouvidos Moucos que virão falaremos um pouco da nossa escuridão”, com o grupo Êxedra de Curitiba (Direção Jülmar Leardini) e “La Divina Commedia dello Shopping”, na Itália, com o grupo americano Bread & Puppet (direção Peter Schumann). Com o teatro e cultura também teve a oportunidade de desenvolver trabalhos junto a movimentos de trabalhadores, educadores, de valorização da cultura africana, de gênero, com jovens de comunidades “de risco”, entre outros. Atualmente realiza pesquisa sobre Dario Fo, o qual utiliza uma técnica inspirada nos antigos cômicos e bufões italianos, para apresentar e discutir a sociedade em que vive.
 ____________________________________

Há anos me incomodo ao ouvir a Fábula da Cigarra e da formiga e, mais ainda, ao ouvir algum colega artista a utilizando como metáfora para qualquer coisa. Tenho certeza de que vários colegas compartilham desse sentimento, revelado, recentemente, por Vítor Ramil, ao falar exatamente sobre o valor do trabalho artístico e do peso carregado por optar por uma profissão não convencional.
Esopo foi um escritor grego nascido no século VII a. C. Supostamente teria sido o criador da fábula, um gênero literário em que os animais têm características humanas. Eles falam e agem como pessoas. No final, tem sempre uma moral da história. A ele foram atribuídas diversas histórias, inclusive A Cigarra e a formiga, que mais tarde foi recontada por Jean de La Fontaine (escritor francês que viveu no séc. XVII) assim:
Tendo a cigarra cantado durante o verão,
Apavorou-se com o frio do inverno
Sem mosca ou verme para se alimentar,
Com fome, foi ver a formiga, sua vizinha,
pedindo-lhe alguns grãos para aguentar
Até vir uma época mais quentinha!
- "Eu lhe pagarei", disse ela,
- "Antes do verão, palavra de animal,
Os juros e também o capital."
A formiga não gosta de emprestar,
É esse um de seus defeitos.
"O que você fazia no calor de outrora?"
Perguntou-lhe ela com certa esperteza.
- "Noite e dia, eu cantava no meu posto,
Sem querer dar-lhe desgosto."
- "Você cantava? Que beleza!
Pois, então, dance agora!"

Imagem do site Revista guia infantil

A moral dessa história é que todas as ações geram consequências. Enquanto a cigarra se divertia, a formiguinha só trabalhava. Mas, no fim, o esforço da formiga é compensado pela fartura e a cigarra, que não se preparou, ficou sem ter o que comer. O problema reside exatamente na moral: a cigarra que só se divertia, que não se preparou, se deu mal, por não trabalhar, não pensar no futuro.
Observemos o quanto é velho esse pensamento de que artista é vagabundo, vem desde antes de Cristo! Estudando mais aprofundadamente a História da Arte, vemos várias passagens nas quais podemos observar os artistas sendo rotulados, discriminados e desprezados por não realizarem um trabalho convencional ou por se exporem publicamente, embora a arte sempre tenha sido consumida por todo o tipo de pessoas, dos mais nobres aos mais pobres. Na antiga Grécia, os festivais teatrais eram verdadeiros eventos organizados pelo governo, oferecidos a toda a população e com duração de horas, dias. Mesmo assim, os artistas não eram considerados profissionais, apenas os autores recebiam pelo trabalho.
Somente no século XVI começaram a surgir artistas profissionais, os “commici dell’arte”, onde o termo cômico se refere a todos os atores e arte, naquele tempo, significava ofício, então a expressão designava os atores profissionais. Também, pela primeira vez, as mulheres começavam a subir no palco para realizar os papeis femininos, até então representados apenas por homens. Como as mulheres faziam parte do âmbito privado, não lhes era consentido exporem-se publicamente, logo as atrizes foram associadas a prostitutas, as únicas mulheres consideradas “públicas”. Vagabundos e prostitutas. Definições que, por incrível que pareça, ainda são utilizadas para se referir aos artistas da cena e a alguns outros também.
Voltamos à fábula da Cigarra e da Formiga: as formigas trabalhavam enquanto a “vagabunda” da cigarra se divertia... O que nunca foi questionado na fábula foi o fato de que o trabalho das formigas teria se tornado extremamente monótono e mais longo, não fosse o alento proporcionado pelo canto da cigarra, que amenizava a tensão do trabalho repetitivo e que alegrava os momentos de pausa. O que Esopo nunca parou para pensar é que tocar bem um instrumento, normalmente, não é uma habilidade que nasce com as pessoas, essa habilidade requer trabalho e estudo. Da mesma forma, todas as manifestações artísticas exigem um esforço constante, prática, trabalho corporal, estudo, tempo de preparo, além de materiais para possibilitar a realização da obra.
É curioso pensar que algumas pessoas acham que um artista não mereça receber pelo seu trabalho, “convidam” aquele amigo ator para “contar uma piada” na festa que eles darão, o amigo músico para “dar uma canja pra galera” e outros absurdos do gênero. Pode não parecer, mas isso é tão ofensivo quanto chamar o seu amigo advogado para dar uma consultoria gratuita no meio da festa de aniversário de seu filho.
Sim, os artistas trabalham com diversão e devem se divertir com o trabalho. Mas acredito que todo mundo deva se divertir ou, ao menos, satisfazer-se com o ofício que realiza, seja ele músico, médico, professor ou mecânico. O fato de optar por uma atividade que é realizada nos momentos de ócio, na verdade, não é só gratificante, como muitos pensam. Lembre que o ator está trabalhando enquanto a sua família está passeando ou descansando e ele vai ter seu momento de repouso nas horas de trabalho do resto dos não artistas. O seu contato com a família, amigos, namorados fica comprometido para poder proporcionar a diversão das demais pessoas. Ele trabalha enquanto você se diverte. Ele trabalha para que você se divirta. Como já cantava Chico Buarque, em Ela é dançarina:
O nosso amor é tão bom
O horário é que nunca combina
Eu sou funcionário
Ela é dançarina
Quando pego o ponto
Ela termina

Essa situação não é fácil e é um fator responsável por muitos rompimentos amorosos, afastamentos de amigos e conflitos familiares. Quando você chega a uma festa, normalmente o artista já está, ou esteve, no local, preparando os seus materiais, aquecendo corpo e voz enfim, trabalhando para que a sua diversão seja garantida e de qualidade. E quando você se cansa da festa pode simplesmente ir embora, enquanto que o artista precisa permanecer até o fim e, muitas vezes, ainda providenciar a organização ou limpeza do espaço, apesar de todo o desgaste físico e emocional que o trabalho produz.
Já há algum tempo venho me deparando com diversas falas sobre o valor da cultura, atualmente ainda mais questionada devido às ações resultantes de nossa tumultuada situação política, e sobre quem deve pagar pela cultura. Curioso é que nenhum desses questionamentos lembram de falar sobre o que seria a cultura e sobre as suas diversas funções na sociedade, como proporcionar o sentimento de pertença, a unidade, fortalecer grupos, incentivar a reflexão e os questionamentos sobre situações que não precisam mais se perpetuar – agressões, machismo, racismo, exploração trabalhista etc. Observem a nossa postagem anterior, sobre o espetáculo “Lo Stupro”, de Franca Rame, um monólogo criado para que o público pudesse se aproximar do que seria uma pessoa que sofreu abuso sexual, do quanto isso é doloroso para os envolvidos e para que esse público se sensibilize com a situação, lembrando que qualquer pessoa pode ser atingida por ela, independente de idade, classe, conhecimento, para não permitir que essas situações se repitam.
No contexto do valor financeiro da cultura e de quem deve pagar por ela, entramos em alguns questionamentos sobre o valor educativo e formativo da gratuidade, que na verdade não existe, porque sempre alguém paga pelo serviço que será realizado. Se a cultura é oferecida pelo governo, os contribuintes é que estão pagando por ela. Se é um trabalho voluntário, o profissional que o está oferecendo é quem está pagando, pois o que ele deixou de receber, é o valor que ele está pagando para que vocês usufruam de tais obras. Essa pessoa está se doando para que você se divirta! Portanto a cultura que você não paga, diretamente, para consumir, também possui um valor monetário, além do intelectual, e é importante que seja vista, analisada, prestigiada e, inclusive, criticada, caso algo não esteja de acordo com o que se esperava. Essa cultura pseudo gratuita merece todo o respeito do público.
Por que tanta gente está disposta a pagar valores absurdos para assistir a um espetáculo com algum artista de televisão, nacional ou internacional que, muitas vezes, sequer consegue compreender, mas não pensa em pagar um valor quase simbólico para prestigiar a cultura local, de um conhecido? Por que tanta gente não tem vontade de arriscar gastar um valor que mal paga a primeira cerveja em uma noite de festa (imagine pagar as despesas da produção...), para conhecer um trabalho local? Por que sempre pensamos que o nosso é pior?
Outro questionamento recorrente é sobre as meia entradas, reguladas por lei. Quem paga a diferença desse valor que foi descontado do seu ingresso? Embora a lei exista, essa é a única participação do governo nas meia entradas: definir quem tem direito a elas. Sobrando para os grupos, normalmente já tão sobrecarregados financeiramente, a conta dessa diferença no valor dos ingressos. Acreditamos que o governo deveria ter uma participação maior e, no mínimo, dividir com os grupos essa conta. Mas se o incentivo servir pra que algumas pessoas a mais saiam de casa e decidam começar a frequentar atividades culturais, está valendo! Eu, pessoalmente, não sou contra essa lei, nesse aspecto o meu grupo ainda ampliou o benefício, oferecendo o desconto também para a classe artística. Preferimos um auditório lotado de “meia entradas” do que com metade da lotação (sendo otimista) de pagantes inteiros. Alguns grupos costumam argumentar que não oferecem o desconto para os colegas, porque eles, melhor do que ninguém, deveriam valorizar o trabalho realizado, por saber o quanto é difícil e oneroso montar um espetáculo. Concordo! Mas também, às vezes, encontro-me do outro lado e sei o quanto é difícil se manter sendo artista e, muitas vezes, deixo de assistir a um espetáculo por estar com pouco dinheiro. Portanto, prefiro que os colegas que se encontram nessa situação prestigiem duas vezes o meu trabalho, ao invés de apenas uma. E os deixo livres para ter consciência e pagarem a entrada inteira, quando a sua situação estiver melhor.
O meu objetivo neste texto não é dar respostas, mas lançar questionamentos e instigar os leitores a pensar no valor que a cultura, a arte, possui em suas vidas, em sua sociedade, no mundo. Em que momentos você a consome, você a recebe? De que forma ela influência a sua vida, os seus sonhos e conquistas, as suas decisões? Como seria a sua vida sem música, sem obras de arte, sem cinema? Sem folclore ou rituais diários? Que valor monetário e intelectual você dá para isso? Lembre: artistas não nascem conhecidos e famosos, se não tiverem oportunidade para estudar, para se aperfeiçoar e se desenvolver, dificilmente teremos grandes eventos artísticos. Mais do que isso, os artistas também comem, pagam aluguel, têm necessidades pessoais para a manutenção da saúde etc. um artista dificilmente tem vínculos empregatícios em nossa sociedade, se ele ficar doente no meio de um processo, perde o trabalho sem nenhum benefício. O grupo não pode arcar com isso, pois o valor da produção não inclui seguro para os participantes. É um mundo com regras e rotinas completamente diferentes das que regem os demais trabalhadores.
“Faz mal... o teatro têm vozes, os lugares, os corpos, os sexos. O Teatro, se é teatro de verdade, quando está no papel morre. Isto é, você deve imaginá-lo em voz alta e assim é o diálogo sobre os dois máximos sistemas de Galileu – Teatro puro. Não belo como aquele de Shakespeare, não. Convenhamos, nesse aspecto Shakespeare é melhor. Ele faz teatro com doze, com dezesseis personagens, se quiser. Galileu não! Conhece os seus limites, o faz com três. E qual teatro se pode fazer somente com três personagens? Mas por Deus, este! O teatro à antiga Italiana. A minha profissão, a comédia. A minha profissão é antiga como aquela dos mecânicos, então... então não é a profissão mais antiga do mundo. A minha é datável: 3 de fevereiro de 1545. Naquele dia, sete jovens vão em frente ao tabelião, na cidade de Pádua, para assinar o ato constitutivo da primeira companhia de cômicos viajantes profissionais dos quais se têm traços. Sabe quantas coisas devem escrever os atores daquele momento em diante, para explicar às pessoas porque elas devem pagar pelo trabalho que eles fazem? Mas sobretudo para explicar às pessoas que as atrizes, pelo simples fato de se colocarem aqui no palco, na frente das pessoas, nem por isso elas automaticamente serão meretrizes? E de vez em quando esta diferença, na Itália, alguém precisa re-explicar.”
Com este texto o italiano Marco Paolini inicia o seu espetáculo ITIS Galileu (vídeo abaixo) e eu me despeço deste artigo.

_________________________
Fontes:

sexta-feira, 3 de junho de 2016

LO STUPRO de Franca Rame

Lo stupro – Franca Rame

Falar sobre o estupro de Franca Rame, não é apenas falar sobre um espetáculo teatral, um monólogo escrito e interpretado por uma grande atriz italiana. É falar de uma mulher de coragem que, nos anos 1970, sofreu uma grande violência e, embora vários anos depois, não apenas teve a coragem de denunciar o violento ato sofrido, mas de torná-lo público e transformar a sua dor em obra de arte.
Pesquisa e tradução de Claudia Venturi
__________________

Franca Rame - imagem de matéria no site
repubblica.it

Era 9 de março de 1973 quando, em Milão, Franca Rame foi sequestrada por cinco homens. Fizeram-na subir em um furgão e a estupraram por horas. Quebraram os seus óculos, cortaram-na com uma lâmina, queimaram-na com cigarros. Um plano elaborado em ambiente de extrema direita para atingir “a companheira de Dario Fo”, que colaborava com o Soccorso Rosso[i] nas prisões, que foi exposta ao público durante o caso Pinelli[ii].
“Se mexe puta! Me faça gozar” O sangue me escorre das bochechas até às orelhas. É a vez do terceiro. É horrível sentí-los gozar dentro de mim, animais nojentos.
Franca mesmo explica que para ela aquele evento foi tão angustiante que ela não conseguiu falar no assunto por dois anos, nem com as pessoas mais queridas e próximas (entre elas o seu companheiro Dario Fo), nem para as forças policiais ou para o tribunal (que deveriam protegê-la). Ela o sentia como um fato sujo que não queria revelar a ninguém. Um fato que a humilhava e o qual ela viria a revelar somente em1987. Portanto, por quatorze anos a agressão permaneceu, para todos, como tendo sido feita apenas de pancadas, mas não de estupro!
Evidentemente, explica Franca Rame, tentavam convencê-la de não fazer mais da profissão deles – o teatro – um cenário para falar de política. Tentaram amedrontar e encontraram na mulher o elo mais fraco da família, composta justamente por Dario Fo e o filho.

Família Fo: Dario Fo, Franca Rame e Jacopo Fo -
foto do jornal corriere della sera

Naquela noite, com a notícia do estupro, uma pessoa festejou: era o General Palumbo. “A notícia do estupro de Franca foi recebida no quartel com euforia, o comandante festejava como se tivesse feito um grande serviço. Até mais do que isso...” testemunhou Nicolò Bozzo, que naquela época trabalhava no mesmo quartel.
Em 1987/88, dois fascistas, Angelo Izzo e Biagio Pitaresi, revelam ao juiz Salvini que os responsáveis pelo estupro foram os membros de uma gangue neofascista e, sobretudo, que a ordem de “punir” Franca Rame com aquele estupro partiu de dentro da Polícia Militar. Mas, segundo Bozzo, o general Palumbo não seria o mandante do crime, apenas o executor de “uma vontade muito superior”.
Pelo estupro – nunca houve uma condenação.
Mas Franca Rame nunca deixou de defender as mulheres violentadas, de denunciar o asco de quem te rouba algo que não se pode ver: a dignidade. Em 1975 apela a uma “análise teatral”: não sobre o divã do psiquiatra, mas sobre o palco, pra contar em um monólogo – Stupro – aquelas horas terríveis. É o único modo para exorcizar aquilo que a aconteceu, mesmo que, a princípio, afirmasse ter se inspirado em um caso que apareceu no jornal e não em sua própria experiência. O texto faz parte do espetáculo “Tutta casa, letto e chiesa[iii]” e as palavras são duras, precisas, cirúrgicas: quem as escuta não pode deixar de se envergonhar. No auditório, algumas garotas desmaiaram.
Não existe apenas a violência na rua, o estupro próprio e dito, mas uma segunda violência barra a mulher antes de fazer a denúncia contra os seus agressores. É a violência dos tribunais e do processo, no qual a mulher é colocada nua, no qual ela passa para o lado do culpado porque é com o comportamento da mulher, com a sua vida e as suas experiências que se justificam os estupradores. No final das contas, a culpa é sempre da mulher!
____________________

Franca Rame - foto do site de repubblica.it

“É o trágico testemunho de uma mulher violentada, que narra, minuto a minuto,aquilo que está sofrendo. Violência de grupo. Um trecho estarrecedor, uma visão de muitas palavras que deve ser escutada, sobretudo pelos jovens.”
Dessa forma inicia o relato de Franca, o seu monólogo...
O Estupro (Texto de Franca Rame)
Há uma rádio que toca... mas só depois de um tempo que eu a ouço. Só depois de um tempo me dou conta de que tem alguém que canta. Sim, é uma rádio. Música suave: céu, estrelas, coração, amor... amor...
Tem um joelho, um só, plantado nas minhas costas... como se quem estivesse atrás de mim apoiasse o outro no chão...
Com as mãos segura as minhas, forte, girando-as ao contrário. A esquerda, em particular. Não sei por que, me vejo a pensar que talvez ele fosse canhoto.
Não estou entendendo nada do que está me acontecendo. Tenho sobre mim o pavor de quem está prestes a perder o cérebro, a voz... a palavra.
Tomo consciência da situação, com incrível lentidão... Deus, que confusão!
Como eu entrei neste furgão? Eu mesma levantei as pernas, uma após a outra com o empurrão deles ou me carregaram, erguendo-me? Eu não sei.
É o coração que me bate assim forte contra as costelas, me impedindo de raciocinar... é a dor na mão esquerda que começa a ficar insuportável. Por que eles a torcem tanto? Eu não tento nenhum movimento. Estou como que congelada.
Agora aquele que está atrás de mim não está mais com o seu joelho contra as minhas costas... sentou-se confortavelmente... e me mantém entre as suas pernas... fortemente... daquele de trás... como se faziam anos atrás, quando se tiravam as amígdalas das crianças. A imagem que me vem à mente é aquela. Por que me apertam tanto? Eu não me movo, não grito, estou sem voz.
Não entendo o que está me acontecendo. A rádio canta, nem tão alta. Por que a música? Por que a abaixam? Talvez seja porque eu não grito. Além daquele que me segura, tem outros três. Eu os olho: não tem muita luz... nem muito espaço... talvez seja por isso que eles me mantém meio deitada.
Eu os sinto calmos. Seguríssimos. O que fazem? Estão acendendo um cigarro.
Mas o quê? Fumam? Agora? Por que me seguram assim? Alguma coisa está para acontecer, eu sinto... Respiro fundo... duas, três vezes. Não, não esclarece nada... Só tenho medo. Tenho o coração que me escapa.
Agora um deles se move, se aproxima de mim, um outro se senta do lado esquerdo, o terceiro se agacha a minha direita. Vejo o vermelho dos cigarros. Estão inspirando profundamente. Estão muito próximos. Sim, algo está para acontecer... eu sinto.
O primeiro que havia se mexido, se coloca entre as minhas pernas... de joelhos... abrindo-as. É um movimento preciso, que parece combinado com aquele que me segura por trás, porque súbito os seus pés se colocam sobre as minhas pernas abertas para mantê-las paradas.
Minhas calças estão erguidas. Por que abrem as minhas pernas com as calças erguidas? Eu me sinto tão constrangida... pior do que se estivesse nua. Desta sensação, algo que não consigo individuar imediatamente me distrai... é um calor, primeiro tênue e depois mais forte, sempre mais forte, no seio esquerdo. Uma queimação. Os cigarros... sobre o pulôver até atingir a pele.
Eu não sei o que uma pessoa deveria fazer nestas condições. Eu não consigo fazer nada, nem gritar, nem chorar... Me sinto como se estivesse projetada para fora, de frente a uma janela e constrangida a olhar algo horrível.
Um cigarro após o outro, um cigarro após o outro... o fedor da lã queimada deve incomodá-los, com uma pequena lâmina cortam o meu pulôver, na frente, de cima a baixo... cortam também o meu sutiã... cortam também a superfície da minha pele. Durante a perícia médica mediram vinte e um centímetros.
Aquele entre as minha pernas, ajoelhado, agora segura os meus seios com as mãos cheias, eu as sinto geladas sobre as queimaduras.
Aquele que me segura por trás está se excitando, eu sinto que se esfrega contra as minhas costas.
Agora todos se ocupam em me despir. Um só sapato, só uma perna.
Agora um entra dentro de mim. Sinto vontade de vomitar.
Calma, devo ficar calma. Me desligo dos barulhos da cidade, me concentro nas palavras das canções.
“Se mexe, puta. Me faz gozar.”
Não quero compreender nada. Não sei mais nenhuma palavra, não conheço nenhuma língua. Estou como se fosse uma pedra.
Um cigarro após o outro. “Se mexe, puta, deve me fazer gozar”. É a vez do segundo. A lâmina que serviu para cortar o meu pulôver agora passa várias vezes sobre o meu rosto. Não sinto se me corta ou não. “Se mexe, puta, me faça gozar.”
O sangue me escorre das bochechas até as orelhas. Agora é a vez do terceiro. É horrível sentir animais horrendos gozarem dentro de você.
“Estou morrendo, - consegui dizer, - sofro do coração. Me deixem descer.”
Eles acreditam, não acreditam... “Vamos deixar ela descer. Não... sim...” Ouço uma bofetada entre eles. Espremem um cigarro contra o meu colo, aqui, apenas para apagá-lo.
Então, eu... eu..., ali, creio que finalmente desmaiei.
Sinto que estão me vestindo de novo. Agora tenho pouca serventia. Aquele que me segurava pelas costas me veste com movimentos precisos. Como se fosse uma criança. Reclama porque foi o único que não fez... Não sabe como colocar o meu pulôver cortado, enfia as duas tiras nas calças, fecha o zíper, me coloca o casaco... quebra os meus óculos.
O furgão para exatamente o tempo para me fazerem descer... e se vai.
Seguro o casaco fechado sobre os seios descobertos. Está quase escuro. Aonde estou? Plantas, verde, grama. Estou no parque. Me sinto mal... no sentido em que sinto que vou desmaiar... não apenas pela dor física, mas pelo nojo... pela raiva... pela humilhação... pelas mil cuspidas que levei no cérebro... pelo esperma que sinto sair de dentro de mim. Apoio a cabeça em uma árvore... até mesmo o cabelo dói... Claro, eles o puxavam para manter a minha cabeça parada. Passo a mão sobre o meu rosto... está sujo de sangue. Levanto a gola do casaco e caminho. Não sei aonde bater, não sei para onde ir. Caminho, nãos sei por quanto tempo. Depois, sem que me desse conta, encontro-me diante da delegacia. Estou apoiada na parede do prédio da frente... Olho para aqueles portões, vejo pessoas que vão e que vem... Penso naquilo que eu deveria enfrentar se entrasse. Penso nas perguntas deles. Penso nas suas caras... nos seus sorrisos...
Penso e repenso...
Então me decido...
Volto para casa.
Denunciarei amanhã.


_________________
Fontes dos textos sobre o estupro de Franca Rame:
http://www.vanityfair.it/news/italia/13/05/29/morta-franca-rame-stupro
http://www.carmillaonline.com/2013/05/31/lo-stupro-di-franca-rame-i-fascisti-i-carabinieri-della-pastrengo-e-una-volonta-molto-superiore/
https://donneinazione.wordpress.com/2007/12/23/monologo-di-franca-rame/
Monólogo original: http://www.archivio.francarame.it/scheda.aspx?IDScheda=1194&IDOpera=170




[i] Socorro vermelho – foi uma organização italiana criada nos “anos de chumbo*”, criada principalmente para dar assistência legal e monitorar as condições carcerárias dos militantes de esquerda, extraparlamentares, nas prisões italianas. / * “Anos de chumbo”, na Itália, compreende um período histórico aproximadamente entre os anos 1970 e início dos anos 1980, nos quais se verificou um extremismo da dialética política, traduzida em violência nas ruas, na atuação de luta armada e atos de terrorismo.
[ii] Giuseppe Pinelli, anarquista envolvido no massacre de Piazza Fontana, quando, no final dos anos 60 explodiram bombas na praça, ferindo muitas pessoas. Suspeita-se que Pinelli tenha sido envolvido sem conhecimento da abrangência do ato e, para evitar que ele falasse, tenha sido morto no local do seu depoimento, forjando um suicídio.
[iii] Em tradução literal seria “toda casa, cama e igreja”, atualizando a frase poderíamos colocá-la como “bela, recatada e do lar”