“Não
há coisa mais deliciosa do que a vida de artista, mas custa muito caro. Precisa
de muito instinto e felicidade guerreira.”
Entrevista: Zé Celso Martinez Corrêa
Nesta
semana o Círculo Artístico Teodora posta uma entrevista com um dos mais
importantes nomes do Teatro Brasileiro. Seja pela inovação e irreverência de
seus trabalhos, seja pelo posicionamento político e social. Um gênio para uns,
o “velho que gosta de mostrar a bunda” para outros, mas sempre polêmico e
marcante.
Boa
leitura!
Foto do site http://revistatrip.uol.com.br/trip/ze-celso
Entrevista com José Celso Martinez
Por *Elisa Duarte/Revista Contigo!
Postado em: BLOG DE TEATROda Cia
Paulicéia Desvairada, em 2010
“Ator
é o que age, atua em si mesmo, no outro, na matéria do mundo.”
O
diretor começou a ser visto como referência teatral após o espetáculo O Rei da
Vela (1967), de Oswald de Andrade, considerada uma das montagens mais
inovadoras do diretor pelos acessórios, cenário e músicas.
Quais as bases para uma pessoa permanecer na carreira de teatro e
perseverar na profissão de ator? Há um caminho a seguir?
Não
há caminho certo. Ao contrário, é preciso inventar caminhos, impulsionado pelos
teus desejos mais secretos, mais proibidos, considerados ''errados'', tabus
pela maioria do rebanho. Mas o teatro você faz com outros, não é uma arte
solitária. Você precisa comungar, comer e ser comido por pessoas que, por
coincidência milagrosa no tempo, você encontra, que queiram partir contigo, na
busca de dar pelo teatro mais vida às suas vidas e à vida de todo mundo: o
público do seu tempo. É como encontrar muitos amantes, encontrar os parceiros
de jogo desta orgia que é o teatro. Para permanecer nesta "roça", é
preciso ser antes de tudo "um forte", pois você vai ter que dia a
dia, noite a noite, conquistar tua permanência sambando na corda bamba da
fatalidade, que são as transformações permanentes da vida e da morte. Estar
plugado sempre em todo mundo, mas ir mais além no risco, na beleza, com ginga
na arte de teatro, que é a mesma que a de amar e a de viver.
Qual o princípio básico de um ator? O que ele deve desejar em primeiro
lugar?
Ator
é o que age, atua em si mesmo, no outro, na matéria do mundo. O ator não
''deve'' nada, ele tem é de assumir seu poder humano, o poder do seu corpo, que
é quem sabe o que ele, corpo, quer desejar. Atuar é desejar outros corpos do
mundo, além das máscaras profissionais, da idade, de classe, dos armários,
enfim, além do bem e do mal. Teu próprio desejo vai descobrir - no espelho do
desejo dos outros você vai escolher como companhia através da poesia do teatro
de hoje e do mais antigo.
Como prepara seus atores?
Preparando-me
para merecer encontrar atores. Atuando sobre a coragem do meu instinto para
entrar em sintonia com os que mexem comigo, isto é, que atuam comigo. É como o
namoro. É difícil explicar por que você ama umas pessoas e não outras. Os
atores e atrizes revelam-se como enamorados. A arte do teatro não é diferente
da arte da paixão, de produzir e adorar a beleza, da arte de viver intensamente,
enfim. Não há coisa mais deliciosa do que a vida de artista, mas custa muito
caro. Precisa de muito instinto e felicidade guerreira.
O que pensa grande número de pessoas que buscam a carreira de ator
apenas para ficarem famosas?
A
arte do ator é a da interpretação da vida a partir do seu corpo, em contato com
tudo e todos pelos seus sentidos. O ator que se vende para tornar-se
celebridade, ter fama, ficar rico, ter prestígio social, sacrifica muitas vezes
sua arte, que é a de interpretar-se e passa a ser interpretado pelos
marqueteiros do ibope. Claro que o ator quer e merece ser reconhecido, é
justíssimo, mas os que têm o que dizer ao mundo são mais ambiciosos, querem
mais que ser celebridade, querem ser eternos, imortais na sua total
mortalidade. Estes deixam vestígio de sua passagem no mundo, tatuam o coração
da condição humana.
Apesar de não receber o seu devido
valor sempre, indiscutivelmente o teatro é fundamental na formação cultural e
pessoal de qualquer pessoa. Ele nos faz conhecer mais sobre a nossa própria
cultura que, a cada vez mais, as pessoas não dão o devido valor, apesar de esta
ser uma identidade carregada por todos nós. Entretanto, em 2009, foi feita uma
pesquisa pelo Instituto da Cidadania com jovens de 15 a 24 anos, abordando
temas gerais da vida, como lazer, trabalho, escolaridade e sexualidade. E o que
mais chama atenção é a abstinência cultural do jovem brasileiro:
23% nunca leram um livro
39% nunca foram ao cinema
62% nunca foram ao teatro
59% nunca foram a um show musical
52% nunca estiveram numa biblioteca
fora da escola
O que mais
chama a atenção, é que mesmo um espetáculo teatral sendo considerado muito mais
rico do que um filme no cinema, os números apontam que os brasileiros vão muito
mais a cinemas que a teatros. Percebe-se que o acesso ao cinema é muito maior
que ao teatro. Por que não o oposto? O teatro dentro de sua composição tem
muito mais cultura a apresentar para nós do que um filme que às vezes até
trazem obras vazias.
Nas crianças,
o teatro ajuda na formação e no desenvolvimento, que assim irá despertar o
desejo por conhecimento. Com toda certeza, ele deveria ser acrescentado na
educação básica de todo jovem brasileiro, pois ele traz entretenimento,
informação e cultura uma forma prazerosa e bem divertida. Se acrescentado nas
grades curriculares, o aluno teria mais vontade e desejo pelo estudo, já que poderia
ser uma aula descontraída e divertida, mas, claro, ao mesmo tempo trouxesse
muita coisa de ensino ao aluno.
Há espetáculos que são
especificamente para o público jovem, tratando de assuntos que lhes lembram e
lhes aproximam mais diretamente. Mas também há muitos outros espetáculos a que
os jovens também podem assistir. Formidáveis peças de teatro são universais,
que atingem tanto o adulto quanto o jovem e a criança.
O Povo
Outra
pesquisa, um pouco mais recente, realizada pelo Ipea no final de 2010, mostra
que:
"Metade dos brasileiros nunca
foi a cinema, teatro ou museu"
Quase 60% da população brasileira
nunca foi a um teatro ou a um show de dança e aproximadamente 70% jamais foi a
museus ou centros culturais.
Segundo o
Ipea, o desenvolvimento cultural depende do contexto urbano em que a população
é inserida e a dificuldade de acesso a equipamentos culturais é apontada como
um dos fatores para criar barreiras.
“A classe
média brasileira diz que cultura é importante, mas se questionada sobre a
frequência dela nestes espaços, é possível observar que ela prefere consumir. É
o velho modelo importado dos americanos. No tempo livre, a população escolhe
comer em um restaurante, por exemplo, do que gastar o dinheiro com livros ou
música”, afirma o artista plástico Carlos Dalastella. (Trecho retirado deste
texto do site gazetadopovo)
Não é questão
de tempo, poder aquisitivo, consumismo. É questão de ter um pouco de esforço e
pensamento próprio. Não há como negar, o brasileiro é acomodado em relação ao
conhecimento. Algumas dificuldades podem até serem explicadas, mas não são
desculpas para estagnar o seu desenvolvimento como pessoa, cidadão. Não são
desculpas para você esquecer a literatura, a música boa, o seu conhecimento.
Hoje, o
teatro não mais ocupa o centro da vida das pessoas e tornou-se uma arte
"das minorias". Não venho a dizer que uma arte insignificante, nem
uma arte a desaparecer, mas, sua capacidade de persuasão na vida de cada um não
pode competir com a da televisão e nem do cinema. Entretanto, enquanto a
televisão está cada vez mais a dispor da Mesmice e da busca pela a maior
audiência, o teatro mudou, ou melhor dizendo, aumentou a liberdade que lhe
permite explorar territórios novos... Tanto na escrita, como na encenação.
Vocês que estão lendo, já fizeram
visitas ao teatro? Já foram a outras instituições culturais? A museus? Qual é a
sua familiaridade com o teatro?
Você sabia
que a plateia é o membro mais respeitado no teatro? E é para você que todos os
esforços dos atores e da equipe técnica se somam, preparando o melhor
espetáculo. Este que poderá ser uma grande experiência, com a qual poderá
aprender muito e levar diversas lições com apenas uma peça.
A face, a
identidade de uma origem cênica é infinitamente mais que a mera exibição da
notação de um estilo marcante. Ela é o ponto a partir do qual uma cena devolve
a total liberdade diante da obra, e que não obriga a pessoa a mudar o seu ponto
de vista, ou a sua maneira de pensar, mas aplicar e redefinir aquilo à sua
situação.
O Governo
É de se notar que principalmente no
nosso país, assim como muitos outros programas culturais, o tetro tem falta de
patrocínio e incentivo, o governo não incentiva o consumo da cultura nos
momentos de lazer. O que será que facilita a ida do público ao teatro? O que
facilita a ida do teatro até o público? Promover e baratear os ingressos, ter
maior divulgação pelos meios de comunicação. A internet está ai, e cada vez
crescendo mais, por que não explorar esse meio? A adequação de transportes e a
construção de centros culturais principalmente na periferia das cidades podem
dar maior acesso ao teatro. A publicidade atrai a grande massa como público,
publique isso, exponha essas mudanças. A formação de um público de teatro tem
como objetivo a ampliação dos frequentadores podendo, e criando SIM o hábito de
ir ao teatro, na parcela atingida da população. Concluindo, se tiver a
oportunidade de ir apreciar as peças teatrais, não pense duas vezes, vá e
conseguirá perceber o quanto esta cultura pouco considerada vale muito a pena.
A desconsideração do teatro é uma triste realidade, mas ela existe. Seria legal
que isso mudasse, mesmo que aos poucos. As novas gerações vêm mudando
ultimamente, alguns estão tendo mais contato com a arte de um modo mais geral.
Seja por seus sonhos, estes desenham, compõem músicas e poemas, e isso já é um
início... Agora é torcer por uma mudança de hábitos.
Claudia Venturi, 1999, em cena do espetáculo "Aos poucos ouvidos moucos que virão falaremos um pouco da nossa escuridão", de Jül Leardini / Curitiba Pr
Claudia Venturi, além de nossa presidente, é atriz
com grande experiência em teatro e movimentos sociais. Possui especialização em
Educação Fundamentada na Arte e Mestrado em Educação com período de estudos no
curso de Teatro Social na Università Cattolica di Milano. Suas pesquisas a
conduziram a um estudo mais aprofundado sobre teatros didáticos, como o de
Bertolt Brecht e Augusto Boal e a participação em espetáculos de crítica e
reflexão social, como “Aos poucos ouvidos Moucos que virão falaremos um pouco
da nossa escuridão”, com o grupo Êxedra de Curitiba (Direção Jülmar Leardini) e
“La Divina Commedia dello Shopping”, na Itália, com o grupo americano Bread
& Puppet (direção Peter Schumann). Com o teatro e cultura também teve a
oportunidade de desenvolver trabalhos junto a movimentos de trabalhadores,
educadores, de valorização da cultura africana, de gênero, com jovens de comunidades
“de risco”, entre outros. Atualmente realiza pesquisa sobre Dario Fo, o qual
utiliza uma técnica inspirada nos antigos cômicos e bufões italianos, para apresentar
e discutir a sociedade em que vive.
____________________________________
Há anos me incomodo
ao ouvir a Fábula da Cigarra e da formiga e, mais ainda, ao ouvir algum colega
artista a utilizando como metáfora para qualquer coisa. Tenho certeza de que
vários colegas compartilham desse sentimento, revelado, recentemente, por Vítor
Ramil, ao falar exatamente sobre o valor do trabalho artístico e do peso
carregado por optar por uma profissão não convencional.
Esopo foi um
escritor grego nascido no século VII a. C. Supostamente teria sido o criador da
fábula, um gênero literário em que os animais têm características humanas. Eles
falam e agem como pessoas. No final, tem sempre uma moral da história. A ele
foram atribuídas diversas histórias, inclusive A Cigarra e a formiga, que mais tarde foi recontada por Jean de La
Fontaine (escritor francês que viveu no séc. XVII) assim:
Tendo a cigarra cantado durante o verão, Apavorou-se com o frio do
inverno Sem mosca ou verme para se
alimentar, Com fome, foi ver a formiga,
sua vizinha, pedindo-lhe alguns grãos
para aguentar Até vir uma época mais
quentinha! - "Eu lhe
pagarei", disse ela, - "Antes do verão,
palavra de animal, Os juros e também o
capital." A formiga não gosta de
emprestar, É esse um de seus defeitos. "O que você fazia no
calor de outrora?" Perguntou-lhe ela com certa
esperteza. - "Noite e dia, eu
cantava no meu posto, Sem querer dar-lhe
desgosto." - "Você cantava? Que
beleza! Pois, então, dance
agora!"
Imagem do site Revista guia infantil
A moral dessa
história é que todas as ações geram consequências. Enquanto a cigarra se
divertia, a formiguinha só trabalhava. Mas, no fim, o esforço da formiga é
compensado pela fartura e a cigarra, que não se preparou, ficou sem ter o que
comer. O problema reside exatamente na moral: a cigarra que só se divertia, que
não se preparou, se deu mal, por não trabalhar, não pensar no futuro.
Observemos o quanto
é velho esse pensamento de que artista é vagabundo, vem desde antes de Cristo! Estudando
mais aprofundadamente a História da Arte, vemos várias passagens nas quais
podemos observar os artistas sendo rotulados, discriminados e desprezados por
não realizarem um trabalho convencional ou por se exporem publicamente, embora
a arte sempre tenha sido consumida por todo o tipo de pessoas, dos mais nobres
aos mais pobres. Na antiga Grécia, os festivais teatrais eram verdadeiros
eventos organizados pelo governo, oferecidos a toda a população e com duração
de horas, dias. Mesmo assim, os artistas não eram considerados profissionais,
apenas os autores recebiam pelo trabalho.
Somente no século
XVI começaram a surgir artistas profissionais, os “commici dell’arte”, onde o
termo cômico se refere a todos os atores e arte, naquele tempo, significava
ofício, então a expressão designava os atores profissionais. Também, pela
primeira vez, as mulheres começavam a subir no palco para realizar os papeis
femininos, até então representados apenas por homens. Como as mulheres faziam
parte do âmbito privado, não lhes era consentido exporem-se publicamente, logo
as atrizes foram associadas a prostitutas, as únicas mulheres consideradas
“públicas”. Vagabundos e prostitutas. Definições que, por incrível que pareça,
ainda são utilizadas para se referir aos artistas da cena e a alguns outros
também.
Voltamos à fábula
da Cigarra e da Formiga: as formigas trabalhavam enquanto a “vagabunda” da
cigarra se divertia... O que nunca foi questionado na fábula foi o fato de que
o trabalho das formigas teria se tornado extremamente monótono e mais longo,
não fosse o alento proporcionado pelo canto da cigarra, que amenizava a tensão
do trabalho repetitivo e que alegrava os momentos de pausa. O que Esopo nunca
parou para pensar é que tocar bem um instrumento, normalmente, não é uma
habilidade que nasce com as pessoas, essa habilidade requer trabalho e estudo. Da
mesma forma, todas as manifestações artísticas exigem um esforço constante,
prática, trabalho corporal, estudo, tempo de preparo, além de materiais para
possibilitar a realização da obra.
É curioso pensar
que algumas pessoas acham que um artista não mereça receber pelo seu trabalho,
“convidam” aquele amigo ator para “contar uma piada” na festa que eles darão, o
amigo músico para “dar uma canja pra galera” e outros absurdos do gênero. Pode
não parecer, mas isso é tão ofensivo quanto chamar o seu amigo advogado para
dar uma consultoria gratuita no meio da festa de aniversário de seu filho.
Sim, os artistas
trabalham com diversão e devem se divertir com o trabalho. Mas acredito que
todo mundo deva se divertir ou, ao menos, satisfazer-se com o ofício que
realiza, seja ele músico, médico, professor ou mecânico. O fato de optar por
uma atividade que é realizada nos momentos de ócio, na verdade, não é só
gratificante, como muitos pensam. Lembre que o ator está trabalhando enquanto a
sua família está passeando ou descansando e ele vai ter seu momento de repouso
nas horas de trabalho do resto dos não artistas. O seu contato com a família,
amigos, namorados fica comprometido para poder proporcionar a diversão das
demais pessoas. Ele trabalha enquanto você se diverte. Ele trabalha para que
você se divirta. Como já cantava Chico Buarque, em Ela é dançarina:
O nosso amor é tão bom
O horário é que nunca combina
Eu sou funcionário
Ela é dançarina
Quando pego o ponto
Ela termina
Essa situação não é
fácil e é um fator responsável por muitos rompimentos amorosos, afastamentos de
amigos e conflitos familiares. Quando você chega a uma festa, normalmente o
artista já está, ou esteve, no local, preparando os seus materiais, aquecendo
corpo e voz enfim, trabalhando para que a sua diversão seja garantida e de
qualidade. E quando você se cansa da festa pode simplesmente ir embora,
enquanto que o artista precisa permanecer até o fim e, muitas vezes, ainda
providenciar a organização ou limpeza do espaço, apesar de todo o desgaste
físico e emocional que o trabalho produz.
Já há algum tempo
venho me deparando com diversas falas sobre o valor da cultura, atualmente ainda
mais questionada devido às ações resultantes de nossa tumultuada situação
política, e sobre quem deve pagar pela cultura. Curioso é que nenhum desses
questionamentos lembram de falar sobre o que seria a cultura e sobre as suas
diversas funções na sociedade, como proporcionar o sentimento de pertença, a
unidade, fortalecer grupos, incentivar a reflexão e os questionamentos sobre
situações que não precisam mais se perpetuar – agressões, machismo, racismo,
exploração trabalhista etc. Observem a nossa postagem anterior, sobre o
espetáculo “Lo Stupro”, de Franca Rame, um monólogo criado para que o público
pudesse se aproximar do que seria uma pessoa que sofreu abuso sexual, do quanto
isso é doloroso para os envolvidos e para que esse público se sensibilize com a
situação, lembrando que qualquer pessoa pode ser atingida por ela, independente
de idade, classe, conhecimento, para não permitir que essas situações se
repitam.
No contexto do
valor financeiro da cultura e de quem deve pagar por ela, entramos em alguns
questionamentos sobre o valor educativo e formativo da gratuidade, que na
verdade não existe, porque sempre alguém paga pelo serviço que será realizado.
Se a cultura é oferecida pelo governo, os contribuintes é que estão pagando por
ela. Se é um trabalho voluntário, o profissional que o está oferecendo é quem
está pagando, pois o que ele deixou de receber, é o valor que ele está pagando
para que vocês usufruam de tais obras. Essa pessoa está se doando para que você
se divirta! Portanto a cultura que você não paga, diretamente, para consumir,
também possui um valor monetário, além do intelectual, e é importante que seja
vista, analisada, prestigiada e, inclusive, criticada, caso algo não esteja de
acordo com o que se esperava. Essa cultura pseudo gratuita merece todo o
respeito do público.
Por que tanta gente
está disposta a pagar valores absurdos para assistir a um espetáculo com algum
artista de televisão, nacional ou internacional que, muitas vezes, sequer
consegue compreender, mas não pensa em pagar um valor quase simbólico para prestigiar
a cultura local, de um conhecido? Por que tanta gente não tem vontade de
arriscar gastar um valor que mal paga a primeira cerveja em uma noite de festa
(imagine pagar as despesas da produção...), para conhecer um trabalho local?
Por que sempre pensamos que o nosso é pior?
Outro
questionamento recorrente é sobre as meia entradas, reguladas por lei. Quem
paga a diferença desse valor que foi descontado do seu ingresso? Embora a lei
exista, essa é a única participação do governo nas meia entradas: definir quem
tem direito a elas. Sobrando para os grupos, normalmente já tão sobrecarregados
financeiramente, a conta dessa diferença no valor dos ingressos. Acreditamos
que o governo deveria ter uma participação maior e, no mínimo, dividir com os
grupos essa conta. Mas se o incentivo servir pra que algumas pessoas a mais
saiam de casa e decidam começar a frequentar atividades culturais, está valendo!
Eu, pessoalmente, não sou contra essa lei, nesse aspecto o meu grupo ainda ampliou
o benefício, oferecendo o desconto também para a classe artística. Preferimos
um auditório lotado de “meia entradas” do que com metade da lotação (sendo
otimista) de pagantes inteiros. Alguns grupos costumam argumentar que não
oferecem o desconto para os colegas, porque eles, melhor do que ninguém,
deveriam valorizar o trabalho realizado, por saber o quanto é difícil e oneroso
montar um espetáculo. Concordo! Mas também, às vezes, encontro-me do outro lado
e sei o quanto é difícil se manter sendo artista e, muitas vezes, deixo de
assistir a um espetáculo por estar com pouco dinheiro. Portanto, prefiro que os
colegas que se encontram nessa situação prestigiem duas vezes o meu trabalho,
ao invés de apenas uma. E os deixo livres para ter consciência e pagarem a
entrada inteira, quando a sua situação estiver melhor.
O meu objetivo
neste texto não é dar respostas, mas lançar questionamentos e instigar os
leitores a pensar no valor que a cultura, a arte, possui em suas vidas, em sua
sociedade, no mundo. Em que momentos você a consome, você a recebe? De que
forma ela influência a sua vida, os seus sonhos e conquistas, as suas decisões?
Como seria a sua vida sem música, sem obras de arte, sem cinema? Sem folclore
ou rituais diários? Que valor monetário e intelectual você dá para isso?
Lembre: artistas não nascem conhecidos e famosos, se não tiverem oportunidade
para estudar, para se aperfeiçoar e se desenvolver, dificilmente teremos grandes
eventos artísticos. Mais do que isso, os artistas também comem, pagam aluguel,
têm necessidades pessoais para a manutenção da saúde etc. um artista
dificilmente tem vínculos empregatícios em nossa sociedade, se ele ficar doente
no meio de um processo, perde o trabalho sem nenhum benefício. O grupo não pode
arcar com isso, pois o valor da produção não inclui seguro para os
participantes. É um mundo com regras e rotinas completamente diferentes das que
regem os demais trabalhadores.
“Faz mal... o
teatro têm vozes, os lugares, os corpos, os sexos. O Teatro, se é teatro de
verdade, quando está no papel morre. Isto é, você deve imaginá-lo em voz alta e
assim é o diálogo sobre os dois máximos sistemas de Galileu – Teatro puro. Não
belo como aquele de Shakespeare, não. Convenhamos, nesse aspecto Shakespeare é
melhor. Ele faz teatro com doze, com dezesseis personagens, se quiser. Galileu
não! Conhece os seus limites, o faz com três. E qual teatro se pode fazer
somente com três personagens? Mas por Deus, este! O teatro à antiga Italiana. A
minha profissão, a comédia. A minha profissão é antiga como aquela dos
mecânicos, então... então não é a profissão mais antiga do mundo. A minha é
datável: 3 de fevereiro de 1545. Naquele dia, sete jovens vão em frente ao
tabelião, na cidade de Pádua, para assinar o ato constitutivo da primeira
companhia de cômicos viajantes profissionais dos quais se têm traços. Sabe
quantas coisas devem escrever os atores daquele momento em diante, para
explicar às pessoas porque elas devem pagar pelo trabalho que eles fazem? Mas
sobretudo para explicar às pessoas que as atrizes, pelo simples fato de se
colocarem aqui no palco, na frente das pessoas, nem por isso elas
automaticamente serão meretrizes? E de vez em quando esta diferença, na Itália,
alguém precisa re-explicar.”
Com este texto o
italiano Marco Paolini inicia o seu espetáculo ITIS Galileu (vídeo abaixo) e eu
me despeço deste artigo.
Falar
sobre o estupro de Franca Rame, não é apenas falar sobre um espetáculo teatral,
um monólogo escrito e interpretado por uma grande atriz italiana. É falar de
uma mulher de coragem que, nos anos 1970, sofreu uma grande violência e, embora
vários anos depois, não apenas teve a coragem de denunciar o violento ato
sofrido, mas de torná-lo público e transformar a sua dor em obra de arte.
Pesquisa
e tradução de Claudia Venturi
__________________
Franca Rame - imagem de matéria no site
repubblica.it
Era 9 de março de 1973
quando, em Milão, Franca Rame foi sequestrada por cinco homens. Fizeram-na
subir em um furgão e a estupraram por horas. Quebraram os seus óculos, cortaram-na
com uma lâmina, queimaram-na com cigarros. Um planoelaborado em ambiente de extrema direita para atingir “a companheira de
Dario Fo”, que colaborava com o Soccorso
Rosso[i]nas prisões, que foi exposta ao público durante o caso Pinelli[ii].
“Se
mexe puta! Me faça gozar” O sangue me escorre das bochechas até às orelhas. É a
vez do terceiro. É horrível sentí-los gozar dentro de mim, animais nojentos.
Franca mesmo explica que
para ela aquele evento foi tão angustiante que ela não conseguiu falar no
assunto por dois anos, nem com as pessoas mais queridas e próximas (entre elas
o seu companheiro Dario Fo), nem para as forças policiais ou para o tribunal
(que deveriam protegê-la). Ela o sentia como um fato sujo que não queria
revelar a ninguém. Um fato que a humilhava e o qual ela viria a revelar somente
em1987. Portanto, por quatorze anos a agressão permaneceu, para todos, como tendo
sido feita apenas de pancadas, mas não de estupro!
Evidentemente, explica
Franca Rame, tentavam convencê-la de não fazer mais da profissão deles – o
teatro – um cenário para falar de política. Tentaram amedrontar e encontraram
na mulher o elo mais fraco da família, composta justamente por Dario Fo e o
filho.
Família Fo: Dario Fo, Franca Rame e Jacopo Fo -
foto do jornal corriere della sera
Naquela noite, com a notícia
do estupro, uma pessoa festejou: era o General Palumbo. “A notícia do estupro
de Franca foi recebida no quartel com euforia, o comandante festejava como se
tivesse feito um grande serviço. Até mais do que isso...” testemunhou Nicolò
Bozzo, que naquela época trabalhava no mesmo quartel.
Em 1987/88, dois fascistas,
Angelo Izzo e Biagio Pitaresi, revelam ao juiz Salvini que os responsáveis pelo
estupro foram os membros de uma gangue neofascista e, sobretudo, que a ordem de
“punir” Franca Rame com aquele estupro partiu de dentro da Polícia Militar.
Mas, segundo Bozzo, o general Palumbo não seria o mandante do crime, apenas o
executor de “uma vontade muito superior”.
Pelo estupro – nunca houve
uma condenação.
Mas Franca Rame nunca deixou
de defender as mulheres violentadas, de denunciar o asco de quem te rouba algo
que não se pode ver: a dignidade. Em 1975 apela a uma “análise teatral”: não
sobre o divã do psiquiatra, mas sobre o palco, pra contar em um monólogo – Stupro – aquelas horas terríveis. É o
único modo para exorcizar aquilo que a aconteceu, mesmo que, a princípio,
afirmasse ter se inspirado em um caso que apareceu no jornal e não em sua
própria experiência. O texto faz parte do espetáculo “Tutta casa, letto e
chiesa[iii]”
e as palavras são duras, precisas, cirúrgicas: quem as escuta não pode deixar
de se envergonhar. No auditório, algumas garotas desmaiaram.
Não existe apenas a
violência na rua, o estupro próprio e dito, mas uma segunda violência barra a
mulher antes de fazer a denúncia contra os seus agressores. É a violência dos
tribunais e do processo, no qual a mulher é colocada nua, no qual ela passa
para o lado do culpado porque é com o comportamento da mulher, com a sua vida e
as suas experiências que se justificam os estupradores. No final das contas, a
culpa é sempre da mulher!
____________________
Franca Rame - foto do site de repubblica.it
“É o trágico testemunho de uma mulher
violentada, que narra, minuto a minuto,aquilo que está sofrendo. Violência de
grupo. Um trecho estarrecedor, uma visão de muitas palavras que deve ser
escutada, sobretudo pelos jovens.”
Dessa forma inicia o relato
de Franca, o seu monólogo...
O Estupro (Texto de Franca
Rame)
Há uma rádio que toca... mas
só depois de um tempo que eu a ouço. Só depois de um tempo me dou conta de que
tem alguém que canta. Sim, é uma rádio. Música suave: céu, estrelas, coração,
amor... amor...
Tem um joelho, um só,
plantado nas minhas costas... como se quem estivesse atrás de mim apoiasse o
outro no chão...
Com as mãos segura as
minhas, forte, girando-as ao contrário. A esquerda, em particular. Não sei por
que, me vejo a pensar que talvez ele fosse canhoto.
Não estou entendendo nada do
que está me acontecendo. Tenho sobre mim o pavor de quem está prestes a perder
o cérebro, a voz... a palavra.
Tomo consciência da situação,
com incrível lentidão... Deus, que confusão!
Como eu entrei neste furgão?
Eu mesma levantei as pernas, uma após a outra com o empurrão deles ou me
carregaram, erguendo-me? Eu não sei.
É o coração que me bate
assim forte contra as costelas, me impedindo de raciocinar... é a dor na mão
esquerda que começa a ficar insuportável. Por que eles a torcem tanto? Eu não
tento nenhum movimento. Estou como que congelada.
Agora aquele que está atrás
de mim não está mais com o seu joelho contra as minhas costas... sentou-se confortavelmente...
e me mantém entre as suas pernas... fortemente... daquele de trás... como se
faziam anos atrás, quando se tiravam as amígdalas das crianças. A imagem que me
vem à mente é aquela. Por que me apertam tanto? Eu não me movo, não grito,
estou sem voz.
Não entendo o que está me
acontecendo. A rádio canta, nem tão alta. Por que a música? Por que a abaixam?
Talvez seja porque eu não grito. Além daquele que me segura, tem outros três.
Eu os olho: não tem muita luz... nem muito espaço... talvez seja por isso que
eles me mantém meio deitada.
Eu os sinto calmos.
Seguríssimos. O que fazem? Estão acendendo um cigarro.
Mas o quê? Fumam? Agora? Por
que me seguram assim? Alguma coisa está para acontecer, eu sinto... Respiro
fundo... duas, três vezes. Não, não esclarece nada... Só tenho medo. Tenho o
coração que me escapa.
Agora um deles se move, se
aproxima de mim, um outro se senta do lado esquerdo, o terceiro se agacha a
minha direita. Vejo o vermelho dos cigarros. Estão inspirando profundamente.
Estão muito próximos. Sim, algo está para acontecer... eu sinto.
O primeiro que havia se
mexido, se coloca entre as minhas pernas... de joelhos... abrindo-as. É um
movimento preciso, que parece combinado com aquele que me segura por trás,
porque súbito os seus pés se colocam sobre as minhas pernas abertas para
mantê-las paradas.
Minhas calças estão
erguidas. Por que abrem as minhas pernas com as calças erguidas? Eu me sinto
tão constrangida... pior do que se estivesse nua. Desta sensação, algo que não
consigo individuar imediatamente me distrai... é um calor, primeiro tênue e
depois mais forte, sempre mais forte, no seio esquerdo. Uma queimação. Os
cigarros... sobre o pulôver até atingir a pele.
Eu não sei o que uma pessoa
deveria fazer nestas condições. Eu não consigo fazer nada, nem gritar, nem
chorar... Me sinto como se estivesse projetada para fora, de frente a uma
janela e constrangida a olhar algo horrível.
Um cigarro após o outro, um
cigarro após o outro... o fedor da lã queimada deve incomodá-los, com uma
pequena lâmina cortam o meu pulôver, na frente, de cima a baixo... cortam
também o meu sutiã... cortam também a superfície da minha pele. Durante a
perícia médica mediram vinte e um centímetros.
Aquele entre as minha
pernas, ajoelhado, agora segura os meus seios com as mãos cheias, eu as sinto
geladas sobre as queimaduras.
Aquele que me segura por
trás está se excitando, eu sinto que se esfrega contra as minhas costas.
Agora todos se ocupam em me
despir. Um só sapato, só uma perna.
Agora um entra dentro de
mim. Sinto vontade de vomitar.
Calma, devo ficar calma. Me
desligo dos barulhos da cidade, me concentro nas palavras das canções.
“Se mexe, puta. Me faz
gozar.”
Não quero compreender nada.
Não sei mais nenhuma palavra, não conheço nenhuma língua. Estou como se fosse uma
pedra.
Um cigarro após o outro. “Se
mexe, puta, deve me fazer gozar”. É a vez do segundo. A lâmina que serviu para
cortar o meu pulôver agora passa várias vezes sobre o meu rosto. Não sinto se
me corta ou não. “Se mexe, puta, me faça gozar.”
O sangue me escorre das
bochechas até as orelhas. Agora é a vez do terceiro. É horrível sentir animais
horrendos gozarem dentro de você.
“Estou morrendo, - consegui
dizer, - sofro do coração. Me deixem descer.”
Eles acreditam, não
acreditam... “Vamos deixar ela descer. Não... sim...” Ouço uma bofetada entre
eles. Espremem um cigarro contra o meu colo, aqui, apenas para apagá-lo.
Então, eu... eu..., ali,
creio que finalmente desmaiei.
Sinto que estão me vestindo
de novo. Agora tenho pouca serventia. Aquele que me segurava pelas costas me
veste com movimentos precisos. Como se fosse uma criança. Reclama porque foi o
único que não fez... Não sabe como colocar o meu pulôver cortado, enfia as duas
tiras nas calças, fecha o zíper, me coloca o casaco... quebra os meus óculos.
O furgão para exatamente o
tempo para me fazerem descer... e se vai.
Seguro o casaco fechado
sobre os seios descobertos. Está quase escuro. Aonde estou? Plantas, verde,
grama. Estou no parque. Me sinto mal... no sentido em que sinto que vou
desmaiar... não apenas pela dor física, mas pelo nojo... pela raiva... pela
humilhação... pelas mil cuspidas que levei no cérebro... pelo esperma que sinto
sair de dentro de mim. Apoio a cabeça em uma árvore... até mesmo o cabelo
dói... Claro, eles o puxavam para manter a minha cabeça parada. Passo a mão
sobre o meu rosto... está sujo de sangue. Levanto a gola do casaco e caminho.
Não sei aonde bater, não sei para onde ir. Caminho, nãos sei por quanto tempo.
Depois, sem que me desse conta, encontro-me diante da delegacia. Estou apoiada
na parede do prédio da frente... Olho para aqueles portões, vejo pessoas que
vão e que vem... Penso naquilo que eu deveria enfrentar se entrasse. Penso nas
perguntas deles. Penso nas suas caras... nos seus sorrisos...
[i]
Socorro vermelho – foi uma organização italiana criada nos “anos de chumbo*”,
criada principalmente para dar assistência legal e monitorar as condições
carcerárias dos militantes de esquerda, extraparlamentares, nas prisões
italianas. / * “Anos de chumbo”, na Itália, compreende um período histórico
aproximadamente entre os anos 1970 e início dos anos 1980, nos quais se
verificou um extremismo da dialética política, traduzida em violência nas ruas,
na atuação de luta armada e atos de terrorismo.
[ii]
Giuseppe Pinelli, anarquista envolvido no massacre de Piazza Fontana, quando,
no final dos anos 60 explodiram bombas na praça, ferindo muitas pessoas.
Suspeita-se que Pinelli tenha sido envolvido sem conhecimento da abrangência do
ato e, para evitar que ele falasse, tenha sido morto no local do seu
depoimento, forjando um suicídio.
[iii]
Em tradução literal seria “toda casa, cama e igreja”, atualizando a frase
poderíamos colocá-la como “bela, recatada e do lar”