A HERANÇA DA CIGARRA
Claudia Venturi, 1999, em cena do espetáculo "Aos poucos ouvidos moucos que virão falaremos um pouco da nossa escuridão", de Jül Leardini / Curitiba Pr |
Claudia Venturi, além de nossa presidente, é atriz
com grande experiência em teatro e movimentos sociais. Possui especialização em
Educação Fundamentada na Arte e Mestrado em Educação com período de estudos no
curso de Teatro Social na Università Cattolica di Milano. Suas pesquisas a
conduziram a um estudo mais aprofundado sobre teatros didáticos, como o de
Bertolt Brecht e Augusto Boal e a participação em espetáculos de crítica e
reflexão social, como “Aos poucos ouvidos Moucos que virão falaremos um pouco
da nossa escuridão”, com o grupo Êxedra de Curitiba (Direção Jülmar Leardini) e
“La Divina Commedia dello Shopping”, na Itália, com o grupo americano Bread
& Puppet (direção Peter Schumann). Com o teatro e cultura também teve a
oportunidade de desenvolver trabalhos junto a movimentos de trabalhadores,
educadores, de valorização da cultura africana, de gênero, com jovens de comunidades
“de risco”, entre outros. Atualmente realiza pesquisa sobre Dario Fo, o qual
utiliza uma técnica inspirada nos antigos cômicos e bufões italianos, para apresentar
e discutir a sociedade em que vive.
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Há anos me incomodo
ao ouvir a Fábula da Cigarra e da formiga e, mais ainda, ao ouvir algum colega
artista a utilizando como metáfora para qualquer coisa. Tenho certeza de que
vários colegas compartilham desse sentimento, revelado, recentemente, por Vítor
Ramil, ao falar exatamente sobre o valor do trabalho artístico e do peso
carregado por optar por uma profissão não convencional.
Esopo foi um
escritor grego nascido no século VII a. C. Supostamente teria sido o criador da
fábula, um gênero literário em que os animais têm características humanas. Eles
falam e agem como pessoas. No final, tem sempre uma moral da história. A ele
foram atribuídas diversas histórias, inclusive A Cigarra e a formiga, que mais tarde foi recontada por Jean de La
Fontaine (escritor francês que viveu no séc. XVII) assim:
Tendo a cigarra cantado durante o verão,
Apavorou-se com o frio do inverno
Sem mosca ou verme para se alimentar,
Com fome, foi ver a formiga, sua vizinha,
pedindo-lhe alguns grãos para aguentar
Até vir uma época mais quentinha!
- "Eu lhe pagarei", disse ela,
- "Antes do verão, palavra de animal,
Os juros e também o capital."
A formiga não gosta de emprestar,
É esse um de seus defeitos.
"O que você fazia no calor de outrora?"
Perguntou-lhe ela com certa esperteza.
- "Noite e dia, eu cantava no meu posto,
Sem querer dar-lhe desgosto."
- "Você cantava? Que beleza!
Pois, então, dance agora!"
Apavorou-se com o frio do inverno
Sem mosca ou verme para se alimentar,
Com fome, foi ver a formiga, sua vizinha,
pedindo-lhe alguns grãos para aguentar
Até vir uma época mais quentinha!
- "Eu lhe pagarei", disse ela,
- "Antes do verão, palavra de animal,
Os juros e também o capital."
A formiga não gosta de emprestar,
É esse um de seus defeitos.
"O que você fazia no calor de outrora?"
Perguntou-lhe ela com certa esperteza.
- "Noite e dia, eu cantava no meu posto,
Sem querer dar-lhe desgosto."
- "Você cantava? Que beleza!
Pois, então, dance agora!"
Imagem do site Revista guia infantil |
A moral dessa
história é que todas as ações geram consequências. Enquanto a cigarra se
divertia, a formiguinha só trabalhava. Mas, no fim, o esforço da formiga é
compensado pela fartura e a cigarra, que não se preparou, ficou sem ter o que
comer. O problema reside exatamente na moral: a cigarra que só se divertia, que
não se preparou, se deu mal, por não trabalhar, não pensar no futuro.
Observemos o quanto
é velho esse pensamento de que artista é vagabundo, vem desde antes de Cristo! Estudando
mais aprofundadamente a História da Arte, vemos várias passagens nas quais
podemos observar os artistas sendo rotulados, discriminados e desprezados por
não realizarem um trabalho convencional ou por se exporem publicamente, embora
a arte sempre tenha sido consumida por todo o tipo de pessoas, dos mais nobres
aos mais pobres. Na antiga Grécia, os festivais teatrais eram verdadeiros
eventos organizados pelo governo, oferecidos a toda a população e com duração
de horas, dias. Mesmo assim, os artistas não eram considerados profissionais,
apenas os autores recebiam pelo trabalho.
Somente no século
XVI começaram a surgir artistas profissionais, os “commici dell’arte”, onde o
termo cômico se refere a todos os atores e arte, naquele tempo, significava
ofício, então a expressão designava os atores profissionais. Também, pela
primeira vez, as mulheres começavam a subir no palco para realizar os papeis
femininos, até então representados apenas por homens. Como as mulheres faziam
parte do âmbito privado, não lhes era consentido exporem-se publicamente, logo
as atrizes foram associadas a prostitutas, as únicas mulheres consideradas
“públicas”. Vagabundos e prostitutas. Definições que, por incrível que pareça,
ainda são utilizadas para se referir aos artistas da cena e a alguns outros
também.
Voltamos à fábula
da Cigarra e da Formiga: as formigas trabalhavam enquanto a “vagabunda” da
cigarra se divertia... O que nunca foi questionado na fábula foi o fato de que
o trabalho das formigas teria se tornado extremamente monótono e mais longo,
não fosse o alento proporcionado pelo canto da cigarra, que amenizava a tensão
do trabalho repetitivo e que alegrava os momentos de pausa. O que Esopo nunca
parou para pensar é que tocar bem um instrumento, normalmente, não é uma
habilidade que nasce com as pessoas, essa habilidade requer trabalho e estudo. Da
mesma forma, todas as manifestações artísticas exigem um esforço constante,
prática, trabalho corporal, estudo, tempo de preparo, além de materiais para
possibilitar a realização da obra.
É curioso pensar
que algumas pessoas acham que um artista não mereça receber pelo seu trabalho,
“convidam” aquele amigo ator para “contar uma piada” na festa que eles darão, o
amigo músico para “dar uma canja pra galera” e outros absurdos do gênero. Pode
não parecer, mas isso é tão ofensivo quanto chamar o seu amigo advogado para
dar uma consultoria gratuita no meio da festa de aniversário de seu filho.
Sim, os artistas
trabalham com diversão e devem se divertir com o trabalho. Mas acredito que
todo mundo deva se divertir ou, ao menos, satisfazer-se com o ofício que
realiza, seja ele músico, médico, professor ou mecânico. O fato de optar por
uma atividade que é realizada nos momentos de ócio, na verdade, não é só
gratificante, como muitos pensam. Lembre que o ator está trabalhando enquanto a
sua família está passeando ou descansando e ele vai ter seu momento de repouso
nas horas de trabalho do resto dos não artistas. O seu contato com a família,
amigos, namorados fica comprometido para poder proporcionar a diversão das
demais pessoas. Ele trabalha enquanto você se diverte. Ele trabalha para que
você se divirta. Como já cantava Chico Buarque, em Ela é dançarina:
O nosso amor é tão bom
O horário é que nunca combina
Eu sou funcionário
Ela é dançarina
Quando pego o ponto
Ela termina
Essa situação não é
fácil e é um fator responsável por muitos rompimentos amorosos, afastamentos de
amigos e conflitos familiares. Quando você chega a uma festa, normalmente o
artista já está, ou esteve, no local, preparando os seus materiais, aquecendo
corpo e voz enfim, trabalhando para que a sua diversão seja garantida e de
qualidade. E quando você se cansa da festa pode simplesmente ir embora,
enquanto que o artista precisa permanecer até o fim e, muitas vezes, ainda
providenciar a organização ou limpeza do espaço, apesar de todo o desgaste
físico e emocional que o trabalho produz.
Já há algum tempo
venho me deparando com diversas falas sobre o valor da cultura, atualmente ainda
mais questionada devido às ações resultantes de nossa tumultuada situação
política, e sobre quem deve pagar pela cultura. Curioso é que nenhum desses
questionamentos lembram de falar sobre o que seria a cultura e sobre as suas
diversas funções na sociedade, como proporcionar o sentimento de pertença, a
unidade, fortalecer grupos, incentivar a reflexão e os questionamentos sobre
situações que não precisam mais se perpetuar – agressões, machismo, racismo,
exploração trabalhista etc. Observem a nossa postagem anterior, sobre o
espetáculo “Lo Stupro”, de Franca Rame, um monólogo criado para que o público
pudesse se aproximar do que seria uma pessoa que sofreu abuso sexual, do quanto
isso é doloroso para os envolvidos e para que esse público se sensibilize com a
situação, lembrando que qualquer pessoa pode ser atingida por ela, independente
de idade, classe, conhecimento, para não permitir que essas situações se
repitam.
No contexto do
valor financeiro da cultura e de quem deve pagar por ela, entramos em alguns
questionamentos sobre o valor educativo e formativo da gratuidade, que na
verdade não existe, porque sempre alguém paga pelo serviço que será realizado.
Se a cultura é oferecida pelo governo, os contribuintes é que estão pagando por
ela. Se é um trabalho voluntário, o profissional que o está oferecendo é quem
está pagando, pois o que ele deixou de receber, é o valor que ele está pagando
para que vocês usufruam de tais obras. Essa pessoa está se doando para que você
se divirta! Portanto a cultura que você não paga, diretamente, para consumir,
também possui um valor monetário, além do intelectual, e é importante que seja
vista, analisada, prestigiada e, inclusive, criticada, caso algo não esteja de
acordo com o que se esperava. Essa cultura pseudo gratuita merece todo o
respeito do público.
Por que tanta gente
está disposta a pagar valores absurdos para assistir a um espetáculo com algum
artista de televisão, nacional ou internacional que, muitas vezes, sequer
consegue compreender, mas não pensa em pagar um valor quase simbólico para prestigiar
a cultura local, de um conhecido? Por que tanta gente não tem vontade de
arriscar gastar um valor que mal paga a primeira cerveja em uma noite de festa
(imagine pagar as despesas da produção...), para conhecer um trabalho local?
Por que sempre pensamos que o nosso é pior?
Outro
questionamento recorrente é sobre as meia entradas, reguladas por lei. Quem
paga a diferença desse valor que foi descontado do seu ingresso? Embora a lei
exista, essa é a única participação do governo nas meia entradas: definir quem
tem direito a elas. Sobrando para os grupos, normalmente já tão sobrecarregados
financeiramente, a conta dessa diferença no valor dos ingressos. Acreditamos
que o governo deveria ter uma participação maior e, no mínimo, dividir com os
grupos essa conta. Mas se o incentivo servir pra que algumas pessoas a mais
saiam de casa e decidam começar a frequentar atividades culturais, está valendo!
Eu, pessoalmente, não sou contra essa lei, nesse aspecto o meu grupo ainda ampliou
o benefício, oferecendo o desconto também para a classe artística. Preferimos
um auditório lotado de “meia entradas” do que com metade da lotação (sendo
otimista) de pagantes inteiros. Alguns grupos costumam argumentar que não
oferecem o desconto para os colegas, porque eles, melhor do que ninguém,
deveriam valorizar o trabalho realizado, por saber o quanto é difícil e oneroso
montar um espetáculo. Concordo! Mas também, às vezes, encontro-me do outro lado
e sei o quanto é difícil se manter sendo artista e, muitas vezes, deixo de
assistir a um espetáculo por estar com pouco dinheiro. Portanto, prefiro que os
colegas que se encontram nessa situação prestigiem duas vezes o meu trabalho,
ao invés de apenas uma. E os deixo livres para ter consciência e pagarem a
entrada inteira, quando a sua situação estiver melhor.
O meu objetivo
neste texto não é dar respostas, mas lançar questionamentos e instigar os
leitores a pensar no valor que a cultura, a arte, possui em suas vidas, em sua
sociedade, no mundo. Em que momentos você a consome, você a recebe? De que
forma ela influência a sua vida, os seus sonhos e conquistas, as suas decisões?
Como seria a sua vida sem música, sem obras de arte, sem cinema? Sem folclore
ou rituais diários? Que valor monetário e intelectual você dá para isso?
Lembre: artistas não nascem conhecidos e famosos, se não tiverem oportunidade
para estudar, para se aperfeiçoar e se desenvolver, dificilmente teremos grandes
eventos artísticos. Mais do que isso, os artistas também comem, pagam aluguel,
têm necessidades pessoais para a manutenção da saúde etc. um artista
dificilmente tem vínculos empregatícios em nossa sociedade, se ele ficar doente
no meio de um processo, perde o trabalho sem nenhum benefício. O grupo não pode
arcar com isso, pois o valor da produção não inclui seguro para os
participantes. É um mundo com regras e rotinas completamente diferentes das que
regem os demais trabalhadores.
“Faz mal... o
teatro têm vozes, os lugares, os corpos, os sexos. O Teatro, se é teatro de
verdade, quando está no papel morre. Isto é, você deve imaginá-lo em voz alta e
assim é o diálogo sobre os dois máximos sistemas de Galileu – Teatro puro. Não
belo como aquele de Shakespeare, não. Convenhamos, nesse aspecto Shakespeare é
melhor. Ele faz teatro com doze, com dezesseis personagens, se quiser. Galileu
não! Conhece os seus limites, o faz com três. E qual teatro se pode fazer
somente com três personagens? Mas por Deus, este! O teatro à antiga Italiana. A
minha profissão, a comédia. A minha profissão é antiga como aquela dos
mecânicos, então... então não é a profissão mais antiga do mundo. A minha é
datável: 3 de fevereiro de 1545. Naquele dia, sete jovens vão em frente ao
tabelião, na cidade de Pádua, para assinar o ato constitutivo da primeira
companhia de cômicos viajantes profissionais dos quais se têm traços. Sabe
quantas coisas devem escrever os atores daquele momento em diante, para
explicar às pessoas porque elas devem pagar pelo trabalho que eles fazem? Mas
sobretudo para explicar às pessoas que as atrizes, pelo simples fato de se
colocarem aqui no palco, na frente das pessoas, nem por isso elas
automaticamente serão meretrizes? E de vez em quando esta diferença, na Itália,
alguém precisa re-explicar.”
Com este texto o
italiano Marco Paolini inicia o seu espetáculo ITIS Galileu (vídeo abaixo) e eu
me despeço deste artigo.
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Fontes:
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