Lo
stupro – Franca Rame
Falar
sobre o estupro de Franca Rame, não é apenas falar sobre um espetáculo teatral,
um monólogo escrito e interpretado por uma grande atriz italiana. É falar de
uma mulher de coragem que, nos anos 1970, sofreu uma grande violência e, embora
vários anos depois, não apenas teve a coragem de denunciar o violento ato
sofrido, mas de torná-lo público e transformar a sua dor em obra de arte.
Pesquisa
e tradução de Claudia Venturi
__________________
Franca Rame - imagem de matéria no site repubblica.it |
Era 9 de março de 1973
quando, em Milão, Franca Rame foi sequestrada por cinco homens. Fizeram-na
subir em um furgão e a estupraram por horas. Quebraram os seus óculos, cortaram-na
com uma lâmina, queimaram-na com cigarros. Um plano elaborado em ambiente de extrema direita para atingir “a companheira de
Dario Fo”, que colaborava com o Soccorso
Rosso[i]
nas prisões, que foi exposta ao público durante o caso Pinelli[ii].
“Se
mexe puta! Me faça gozar” O sangue me escorre das bochechas até às orelhas. É a
vez do terceiro. É horrível sentí-los gozar dentro de mim, animais nojentos.
Franca mesmo explica que
para ela aquele evento foi tão angustiante que ela não conseguiu falar no
assunto por dois anos, nem com as pessoas mais queridas e próximas (entre elas
o seu companheiro Dario Fo), nem para as forças policiais ou para o tribunal
(que deveriam protegê-la). Ela o sentia como um fato sujo que não queria
revelar a ninguém. Um fato que a humilhava e o qual ela viria a revelar somente
em1987. Portanto, por quatorze anos a agressão permaneceu, para todos, como tendo
sido feita apenas de pancadas, mas não de estupro!
Evidentemente, explica
Franca Rame, tentavam convencê-la de não fazer mais da profissão deles – o
teatro – um cenário para falar de política. Tentaram amedrontar e encontraram
na mulher o elo mais fraco da família, composta justamente por Dario Fo e o
filho.
Família Fo: Dario Fo, Franca Rame e Jacopo Fo - foto do jornal corriere della sera |
Naquela noite, com a notícia
do estupro, uma pessoa festejou: era o General Palumbo. “A notícia do estupro
de Franca foi recebida no quartel com euforia, o comandante festejava como se
tivesse feito um grande serviço. Até mais do que isso...” testemunhou Nicolò
Bozzo, que naquela época trabalhava no mesmo quartel.
Em 1987/88, dois fascistas,
Angelo Izzo e Biagio Pitaresi, revelam ao juiz Salvini que os responsáveis pelo
estupro foram os membros de uma gangue neofascista e, sobretudo, que a ordem de
“punir” Franca Rame com aquele estupro partiu de dentro da Polícia Militar.
Mas, segundo Bozzo, o general Palumbo não seria o mandante do crime, apenas o
executor de “uma vontade muito superior”.
Pelo estupro – nunca houve
uma condenação.
Mas Franca Rame nunca deixou
de defender as mulheres violentadas, de denunciar o asco de quem te rouba algo
que não se pode ver: a dignidade. Em 1975 apela a uma “análise teatral”: não
sobre o divã do psiquiatra, mas sobre o palco, pra contar em um monólogo – Stupro – aquelas horas terríveis. É o
único modo para exorcizar aquilo que a aconteceu, mesmo que, a princípio,
afirmasse ter se inspirado em um caso que apareceu no jornal e não em sua
própria experiência. O texto faz parte do espetáculo “Tutta casa, letto e
chiesa[iii]”
e as palavras são duras, precisas, cirúrgicas: quem as escuta não pode deixar
de se envergonhar. No auditório, algumas garotas desmaiaram.
Não existe apenas a
violência na rua, o estupro próprio e dito, mas uma segunda violência barra a
mulher antes de fazer a denúncia contra os seus agressores. É a violência dos
tribunais e do processo, no qual a mulher é colocada nua, no qual ela passa
para o lado do culpado porque é com o comportamento da mulher, com a sua vida e
as suas experiências que se justificam os estupradores. No final das contas, a
culpa é sempre da mulher!
____________________
Franca Rame - foto do site de repubblica.it |
“É o trágico testemunho de uma mulher
violentada, que narra, minuto a minuto,aquilo que está sofrendo. Violência de
grupo. Um trecho estarrecedor, uma visão de muitas palavras que deve ser
escutada, sobretudo pelos jovens.”
Dessa forma inicia o relato
de Franca, o seu monólogo...
O Estupro (Texto de Franca
Rame)
Há uma rádio que toca... mas
só depois de um tempo que eu a ouço. Só depois de um tempo me dou conta de que
tem alguém que canta. Sim, é uma rádio. Música suave: céu, estrelas, coração,
amor... amor...
Tem um joelho, um só,
plantado nas minhas costas... como se quem estivesse atrás de mim apoiasse o
outro no chão...
Com as mãos segura as
minhas, forte, girando-as ao contrário. A esquerda, em particular. Não sei por
que, me vejo a pensar que talvez ele fosse canhoto.
Não estou entendendo nada do
que está me acontecendo. Tenho sobre mim o pavor de quem está prestes a perder
o cérebro, a voz... a palavra.
Tomo consciência da situação,
com incrível lentidão... Deus, que confusão!
Como eu entrei neste furgão?
Eu mesma levantei as pernas, uma após a outra com o empurrão deles ou me
carregaram, erguendo-me? Eu não sei.
É o coração que me bate
assim forte contra as costelas, me impedindo de raciocinar... é a dor na mão
esquerda que começa a ficar insuportável. Por que eles a torcem tanto? Eu não
tento nenhum movimento. Estou como que congelada.
Agora aquele que está atrás
de mim não está mais com o seu joelho contra as minhas costas... sentou-se confortavelmente...
e me mantém entre as suas pernas... fortemente... daquele de trás... como se
faziam anos atrás, quando se tiravam as amígdalas das crianças. A imagem que me
vem à mente é aquela. Por que me apertam tanto? Eu não me movo, não grito,
estou sem voz.
Não entendo o que está me
acontecendo. A rádio canta, nem tão alta. Por que a música? Por que a abaixam?
Talvez seja porque eu não grito. Além daquele que me segura, tem outros três.
Eu os olho: não tem muita luz... nem muito espaço... talvez seja por isso que
eles me mantém meio deitada.
Eu os sinto calmos.
Seguríssimos. O que fazem? Estão acendendo um cigarro.
Mas o quê? Fumam? Agora? Por
que me seguram assim? Alguma coisa está para acontecer, eu sinto... Respiro
fundo... duas, três vezes. Não, não esclarece nada... Só tenho medo. Tenho o
coração que me escapa.
Agora um deles se move, se
aproxima de mim, um outro se senta do lado esquerdo, o terceiro se agacha a
minha direita. Vejo o vermelho dos cigarros. Estão inspirando profundamente.
Estão muito próximos. Sim, algo está para acontecer... eu sinto.
O primeiro que havia se
mexido, se coloca entre as minhas pernas... de joelhos... abrindo-as. É um
movimento preciso, que parece combinado com aquele que me segura por trás,
porque súbito os seus pés se colocam sobre as minhas pernas abertas para
mantê-las paradas.
Minhas calças estão
erguidas. Por que abrem as minhas pernas com as calças erguidas? Eu me sinto
tão constrangida... pior do que se estivesse nua. Desta sensação, algo que não
consigo individuar imediatamente me distrai... é um calor, primeiro tênue e
depois mais forte, sempre mais forte, no seio esquerdo. Uma queimação. Os
cigarros... sobre o pulôver até atingir a pele.
Eu não sei o que uma pessoa
deveria fazer nestas condições. Eu não consigo fazer nada, nem gritar, nem
chorar... Me sinto como se estivesse projetada para fora, de frente a uma
janela e constrangida a olhar algo horrível.
Um cigarro após o outro, um
cigarro após o outro... o fedor da lã queimada deve incomodá-los, com uma
pequena lâmina cortam o meu pulôver, na frente, de cima a baixo... cortam
também o meu sutiã... cortam também a superfície da minha pele. Durante a
perícia médica mediram vinte e um centímetros.
Aquele entre as minha
pernas, ajoelhado, agora segura os meus seios com as mãos cheias, eu as sinto
geladas sobre as queimaduras.
Aquele que me segura por
trás está se excitando, eu sinto que se esfrega contra as minhas costas.
Agora todos se ocupam em me
despir. Um só sapato, só uma perna.
Agora um entra dentro de
mim. Sinto vontade de vomitar.
Calma, devo ficar calma. Me
desligo dos barulhos da cidade, me concentro nas palavras das canções.
“Se mexe, puta. Me faz
gozar.”
Não quero compreender nada.
Não sei mais nenhuma palavra, não conheço nenhuma língua. Estou como se fosse uma
pedra.
Um cigarro após o outro. “Se
mexe, puta, deve me fazer gozar”. É a vez do segundo. A lâmina que serviu para
cortar o meu pulôver agora passa várias vezes sobre o meu rosto. Não sinto se
me corta ou não. “Se mexe, puta, me faça gozar.”
O sangue me escorre das
bochechas até as orelhas. Agora é a vez do terceiro. É horrível sentir animais
horrendos gozarem dentro de você.
“Estou morrendo, - consegui
dizer, - sofro do coração. Me deixem descer.”
Eles acreditam, não
acreditam... “Vamos deixar ela descer. Não... sim...” Ouço uma bofetada entre
eles. Espremem um cigarro contra o meu colo, aqui, apenas para apagá-lo.
Então, eu... eu..., ali,
creio que finalmente desmaiei.
Sinto que estão me vestindo
de novo. Agora tenho pouca serventia. Aquele que me segurava pelas costas me
veste com movimentos precisos. Como se fosse uma criança. Reclama porque foi o
único que não fez... Não sabe como colocar o meu pulôver cortado, enfia as duas
tiras nas calças, fecha o zíper, me coloca o casaco... quebra os meus óculos.
O furgão para exatamente o
tempo para me fazerem descer... e se vai.
Seguro o casaco fechado
sobre os seios descobertos. Está quase escuro. Aonde estou? Plantas, verde,
grama. Estou no parque. Me sinto mal... no sentido em que sinto que vou
desmaiar... não apenas pela dor física, mas pelo nojo... pela raiva... pela
humilhação... pelas mil cuspidas que levei no cérebro... pelo esperma que sinto
sair de dentro de mim. Apoio a cabeça em uma árvore... até mesmo o cabelo
dói... Claro, eles o puxavam para manter a minha cabeça parada. Passo a mão
sobre o meu rosto... está sujo de sangue. Levanto a gola do casaco e caminho.
Não sei aonde bater, não sei para onde ir. Caminho, nãos sei por quanto tempo.
Depois, sem que me desse conta, encontro-me diante da delegacia. Estou apoiada
na parede do prédio da frente... Olho para aqueles portões, vejo pessoas que
vão e que vem... Penso naquilo que eu deveria enfrentar se entrasse. Penso nas
perguntas deles. Penso nas suas caras... nos seus sorrisos...
Penso e repenso...
Então me decido...
Volto para casa.
Denunciarei amanhã.
_________________
Fontes dos textos sobre o estupro de Franca Rame:
http://www.vanityfair.it/news/italia/13/05/29/morta-franca-rame-stupro
http://www.carmillaonline.com/2013/05/31/lo-stupro-di-franca-rame-i-fascisti-i-carabinieri-della-pastrengo-e-una-volonta-molto-superiore/
https://donneinazione.wordpress.com/2007/12/23/monologo-di-franca-rame/
Monólogo original: http://www.archivio.francarame.it/scheda.aspx?IDScheda=1194&IDOpera=170
[i]
Socorro vermelho – foi uma organização italiana criada nos “anos de chumbo*”,
criada principalmente para dar assistência legal e monitorar as condições
carcerárias dos militantes de esquerda, extraparlamentares, nas prisões
italianas. / * “Anos de chumbo”, na Itália, compreende um período histórico
aproximadamente entre os anos 1970 e início dos anos 1980, nos quais se
verificou um extremismo da dialética política, traduzida em violência nas ruas,
na atuação de luta armada e atos de terrorismo.
[ii]
Giuseppe Pinelli, anarquista envolvido no massacre de Piazza Fontana, quando,
no final dos anos 60 explodiram bombas na praça, ferindo muitas pessoas.
Suspeita-se que Pinelli tenha sido envolvido sem conhecimento da abrangência do
ato e, para evitar que ele falasse, tenha sido morto no local do seu
depoimento, forjando um suicídio.
[iii]
Em tradução literal seria “toda casa, cama e igreja”, atualizando a frase
poderíamos colocá-la como “bela, recatada e do lar”
oBrigado pela publicação dessa tradução. Estava angustiado, nao acho nada de Franca Rame aqui no Brasil. Trágico.
ResponderExcluir