Então, estão curtindo o Texto do Professor Bernardi? Hoje postaremos mais dois atos para continuar a leitura - o segundo e terceiro. Porém, antes, achamos apropriado fazer mais alguns esclarecimentos sobre o autor a o contexto cultural.
Lembramos que Claudio Bernardi é especialista em ritos e mitos e a Itália é um país com uma cultura católica extremamente forte, a ponto de influenciar a política do país. Portanto o texto é um questionamento a essa influência católica sobre a vida dos cidadãos, ao mesmo tempo que é quase um ritual religioso com diversos elementos familiares a pessoas que tiveram uma formação católica.
Outra observação importante para a compreensão do texto é o ritual alimentar italiano e o valor que os italianos dão a esse ritual. Lembrando que o movimento "Slow food" nasceu na Itália e é de lá, também, a famosa dieta mediterrânea.
O ritual alimentar na Itália é um pouco diferente do nosso: Começa a refeição típica com o antepasto, pequenos petiscos como brusquetas, queijos, salames ou vegetais. Logo em seguida são colocados os pratos (fundos) e é servido o "primo", o primeiro prato, que consiste em sopa, massas ou arroz. Após terminar de comer o primeiro, trocam-se os pratos (agora são rasos) e serve-se o "secondo", carnes ou queijos. Nova troca de pratos para servir o "contorno", que são os pratos com vegetais cozidos ou crus. Embora a salada seja considerada contorno, ela é sempre presente na refeição italiana, sempre o último prato salgado, independente de ter ou não outro prato de vegetais. O cestinho de pão está presente em toda boa mesa italiana durante toda a refeição. Após a salada vem o doce, o café, o licor.
A estrutura do espetáculo sugere esse ritual alimentar que pode ser adaptado a reallidade do país onde é apresentado.
(Imagem do artista Giuseppe Arcimboldo, sugerida pelo autor como modelo para as máscaras dos estilos alimentares)
A Primeira Ceia
(Continuação do texto de Claudio Bernardi, com tradução de Claudia Venturi)
(Continuação do texto de Claudio Bernardi, com tradução de Claudia Venturi)
SEGUNDO PR-ATTO
AVA – Leo, chegaram
os 12 representantes dos estilos alimentares.
LEO – Ok, baby,
faça-os entrar um de cada vez e os acomodaremos criativamente a mesa.
AVA – Que entre
o primeiro! E se apresente.
ONÍVORO – (entra com um chapéu ou máscara pintados ao
estilo Arcimboldo com tudo: carne, peixe, fruta, verdura, doces etc.) Boa
ceia a todos.
LEO – O Senhor
quem é?
ONÍVORO – O
homem!
SIMONAL – Ok,
isso nós vemos. Mas o que você come?
ONÍVORO – O
homem é onívoro. Come de tudo.
ADÃO – Até a me…,
a meleca?
ONÍVORO – Querendo…
ADÃO – E não querendo!
Basta ver que vida de me…
EVA – (dando um tapa atrás da cebeça de Adão)
Ei! Eles estão comendo! Pare com isso!
LEO – Coloque-se
aqui ao fundo, a esquerda. Isso, assim. Que venha o segundo.
CARNÍVORO – (máscara só carne, presunto etc.) Eu sou
um carnívoro. Odeio o verde! Adoro a carne de qualquer tipo. Ao sangue!
ADÃO – Mas quem
é esse? O Drácula?
LEO – Lá, lá, vai
lá junto com o onívoro, em pé.
CARNÍVORO - (enquanto se coloca a mesa sussurra os pratos
que sonha): “Churrasco, bisteca, alcatra, picanha, filé, costela, assado,
acebolado, hamburger, linguiça, sobrecoxa, salsicha, coraçãozinho etc.”
(analogamente todos os estilos vão recitando o próprio menu enquanto são acomodados a mesa, como se quisessem fazer publicidade
dos próprios prazeres ou delicias alimentares)
CRUDÍVORO – (máscara de alimentos crus vegetais e animais)
Eu sou um crudívoro. Como só coisas cruas, de origem animal ou vegetal. Quando
se cozinha o alimento destrói completamente os princípios nutritivos além de
ser cance…
LEO – Dispense
as explicações, Mister Cru. Não nos interessam…
SIMONAL – De
gustibus non est disputandum!
ADÃO – Ui! Mas eu
cuspo nele!
EVA – O que
você faz?
ADÃO – Cuspo no
canibal!
EVA – (dando um tapa atrás da cebeça de Adão) Idiota
racista! Talvez ele coma só saladinha…ou sushi.
LEO – Mister
Cru, vai ali junto ao carnívoro que se parece com você!
CRUDÍVORO – MAS
aquele ali come tudo cozido, na chapa, na grelha, na brasa…
EVA – Mas também
come o presunto cru! Vai, vai (empurra-o
para a mesa). Desculpe, miss Ava Renta, mas são todos homens? Não têm
mulheres?
VEGETARIANA (entrando com máscara de verdura, ovo, leite, laticínios)
– Eu, eu sou uma mulher! Vegetariana. Não como nem carne e nem peixe.
VEGANA (entrando com máscara só de vegetais) –
Mas, querida, você come ovos, leite e laticínios, produtos de origem animal e você
sabe que fazem mal. Nós veganos não comemos.
FRUGÍVORA (entrando com máscara só de frutas) – Mas
vocês não são perfeitos! Cultivam os campos e mordiscam as ervas como cabras. Vocês
cortam, trituram, rasgam, matam os vegetais! Nós frugívoros somos sensíveis às
folhas. Não fazemos mal a nenhum ser vivente. Nós comemos apenas as frutas que
caem das árvores…
ADÃO – Que
lindo! Basta abrir a boca e cai um figo…seco.
AVA – Senhoras!
Senhores! Por favor! Não vamos ficar aqui discutindo quem é melhor e quem é pior.
SIMONAL – Nós
estamos em um país livre. Cada um come aquilo que quiser.
EVA – E se fizer
mal o problema é de vocês.
LEO – Anda,
anda, queridas vegetais, coloquem-se todas as três próximas, mas ali a direita,
quase no centro. Assim (ajeita)
MARTA – E agora,
de quem é a vez?
AVA – dos estilos
alimentares das diversas religiões.
EVA – Ai, ai,
vamos ter uma guerra…
LEO – Mas por
quê, senhorita?
ADÃO –Eva tem
razão! Vamos pegar, sei lá, o toucinho mineiro (mostra sua barriga para Eva) Então, você gosta do meu toucinho? (recebe de Eva um tapa atrás da cabeça) Ai!
ABRAÃO – (entrando com máscara de cordeiro e vinho e alimento
kosher) De origem judaica eu sou, e a minha religião me poibibe de comer tudo
aquilo que não seja santo: seres impuros, misto de céu, terra e mar…
MARTA – Por
exemplo?...
ABRAÃO – Porcos,
camarões, crustaceos e cães. Não aos porcos, viva os porcinos! – Os cogumelos!
ISMAEL – (entrando com máscara de kebab e litrão de
Coca Cola na mão) E até nós, islamicos, fazemos o mesmo. Todos os animais nós
degolamos e o sangue deles nós derramamos e não o comemos.
ABRAÃO – Desde
que o alimento seja puro, não contaminado pela vida. Kosher – assim o chamamos.
ADÃO – Mas que lindo!
Israelitas e palestinos concordando!
EVA – (dando um tapa atrás da cebeça de Adão)
Ignorante! São duas religiões: judeus e islamicos.
ISAMEL – A
única diferença entre nós e eles é que o álcool e o vinho nós absolutamente proibimos.
EVA – E assim economizam
no bafômetro e com a cirrose hepática.
ADÃO – E fazem
a fortuna da Coca Cola…Açúcar a vontade…
LEO – Nada de
propaganda, por favor (Ava retira a Coca
Cola das mãos de Ismael e o conduz a mesa). Vamos logo, vocês dois, coloquem-se
ali…
ESFOMEADO – (entrando com uma bacia vazia, é uma mulher,
mas não se compreende o gênero, é unissex) Um momento! Falta eu!
SIMONAL – De
que religião você é?
ESFOMEADO – Uma,
nenhuma, cem mil.
EVA – Você é o
Aleijadinho?
AFFAMATO – Não,
um pobrezinho.
MARTA – De Assis?
ESFOMEADO – Não,
do mundo. Sou o esfomeado, aquele que não tem nada para comer. Somos 850 milhões.
Pintor, no quadro geral eu também devo estar!
ADÃO – Ao menos
alguma coisa você vai poder comer. O mais gorducho aqui presente (tabefe de Eva).
GULOSA – (entra rechonchuda, prazeirosa, bem disposta,
hliária com máscara de tortas, creme de leite, peru ao forno, trufas etc. pratos
de alta gastronomia) Mas Leo, não pode sentar na mesa uma esfomeada! Eu
tenho de estar lá! A gourmet, a bon vivant, a slow food, a alta culinária, a trattoria, tudo aquilo
que estimula a minha gordurinha…
EVA – Aqui existe
uma distribuição desigual de gordurinha. Se a Senhora, miss Gorda desse um pouquinho
ao esqueleto em dieta…
MARTA – Resolveríamos
o problema da fome no mundo
SIMONAL – mas também
da hipernutrição e da obesidade.
ADÃO – Que mundo!
Que mundo! Uma parte morre de fome e a outra de colesterol!
LEO – Mas o
mundo é assim, senhores. Até estes são estilos
alimentares.
EVA – Sim, mas
um é muito apreciado e o outro não é de jeito nenhum desejado!
CELÍACA – (entrando com máscara escrita Glutem free e
Mio Bio ecc.) Com licença senhores, mas não estão ignorando um outro grave
problema?
MARTA – Mas a
Senhora é quem?
CELÍACA – Represento
todas as intolerâncias e alergias alimentares. Tem quem não tolera o leite, quem
o glutem, quem as solanaceas, quem o pimentão…
LEO – Stop! Chega!
Se “stopem”! Já entendemos! Se a senhora nos diz o elenco completo não voltamos
para casa hoje.
SIMONAL – Todos
somos alérgicos ou intolerantes a alguma coisa.
ADÃO – Mas eu não
sou alérgico a você, não é mesmo Eva? (tabefe
de Eva). Talvez um pouquinho…
DOUTOR – (entra com o jaleco branco e o estetoscópio)
Por último, mas não o último, venho eu que, ao contrário, sou o primeiro de todos.
EVA – E quem é o
senhor? O mais belo do reino?
DOUTOR – Não, o
mais sábio.
ADÃO – Ou o
mais sabichão? (tabefe de Eva)
DOUTOR – Eu sou
a ciência da vida. Eu sou a Saúde. Eu sei qual é o verdadeiro alimento, bom, saudável
e nutritivo.
LEO – Bem, vai se
posicione com os outros. Vou colocar o esfomeado unissex junto aos dois representantes
das religiões do centro para a esquerda, Enquanto todo o grupo da saúde, Miss Gorda
e a Celíaca e o senhor Doutor, se posicionem juntos do lado direito.
DOUTOR – Não, não,
eu deveria estar no centro, porque entre todo o alimento e de todas as bebidas,
eu sou o caminho, a verdade e a vida!
AVA – Certo,
certo, doutor, mas por enquanto, por favor, coloque-se lá onde disse Leonardo.
ADÃO – Eu, ao
doutor, daria uma bolsinha cheia de dinheiro.
EVA – Como a Judas.
E por quê?
ADÃO – Porque só
de pão vive a ciência.
EVA – Mas que
pão?
ADÃO – Dinheiro,
dinheiro, fundos!
EVA – Certo. E então?
O que tem a ver o cientista com Judas?
ADÃO – Porque
trai o povo, sustentando aquilo que quer quem o paga!
DOUTOR – O
senhor é um mal-educado! Mas quem te deu o direito? Dizer estas coisas para mim?
Doutor, professor e quase prêmio Nobel!
LEO – Deixa
quieto, doutor, é um empregado, não entende nada. Não tem nada a ver com esta obra
de arte imortal que eu devo criar. Dou razão ao senhor. Insisto ao Senhor, se
posicione exatamente no centro, no lugar do esfomeado que se desloca para o fundo a direita, um pouco subjugado. Isso, assim!
AVA – Senhores,
estão prontos? Parados todos! Cheese (bate
a foto). Feito!
SIMONAL – Mas,
Leo, não tem ninguém no centro!
LEO – My God,
Saimon, tem razão! Miss Ava aonde está Gea? Não deveria estar aqui também? Eh,
sim, ao centro, simbolizando a terra, a Mãe Terra.
AVA – Posso
chamá-la?
LEO – Claro que
sim! Aquela distraída, aquela volúvel, parece uma pomba metida, eu quando a encontrar
a esgano…
ADÃO – E faremos
um belo assado de pomba.
EVA – Melhor recheda.
MARTA – E podem
comer até os judeus e os mussulmanos, sabiam?
SIMONAL – seria
um alimento universal!
VEGANA, FRUGÍVORA,
VEGETARIANA – Assassinos! Até as pombas têm alma! Nós não comemos cadáveres!
LEO – Parem com
isso! Esta è una representação, não uma manifestação! Miss Ava Renta, chame
Gea!
TODOS OS ESTILOS
– E enquanto isso o que nós fazemos?
DOUTOR – (um pouco furioso) E vamos fazer pose por
uma hora?
LEO – Ok, ok! Pausa, stop! Chega de golpe! Quem deve ir ao banheiro, que vá, por
enquanto você, Saimon, serve os comensais. Assim que chegar Gea recomeçamos a
Primeira Ceia.
ADÃO – Me dá
uma ajudinha para servir!
DOUTOR – Não!
Um momento! Me dê uma faca.
TODOS – O que
você quer fazer?
DOUTOR- O garçom... matar (se atira contra Adão que escapa correndo)
ADÃO – Socorro!
SIMONAL – (parando o doutor) Doutor! Acalme-se!
EVA – Ele
estava brincando, não falava sério.
MARTA – Venha,
doutor, vou preparar um suco para o Senhor…Pobre ciência, como é batida…
(sai Marta com o doutor, enquanto todos os outros
servem os primeiros pratos - as massas)
TERCEIRO PR-ATO
AVA – (re-chama todos os estilos alimentares para a
cena) Senhoras e senhores, aos seus postos, agora. Chegou Gea.
GEA – (toda apressada e nervosinha) Desculpem
pelo atraso.
LEO – Mas por
onde você andava?
GEA – Problema
meu!
LEO – Como
assim? A minha obra de arte foi pelos ares! Só faltava você.
GEA – Ai Leo não
me enche o saco. Se não eu vou embora!
AVA – (Atenciosamente leva ramos de trigo um globo
terrestre) Miss Gea, segure isto e se posicione ali.
GEA – Trigo e globo…por
quê?
LEO – Você representa
a terra que da as loiras colheitas…
ADÃO – Esta
terra é igual a Leo. Uma bola inflada.
EVA – Mamma que
kitch esse globo!
LEO – (ofendido) Até o Chaplin o usou em O Grande Ditador.
SIMONAL – Mas
era um filme cômico…
LEO – É, sim, tem
razão… É realmente uma breguice (pega o
globo e o joga fora) Miss Ava, Eu tinha dito para encontrar uma imagem,
grande, do nosso belo planeta azul, não um globo…
GEA – Então? Basta
o maço de trigo?
LEO – Sim, sim,
darling, assim você está perfeitamente perfeita.
GEA – OK. Então
eu vou no centro e faço o discurso (rapidamente
se coloca no centro do Cenáculo).
LEO – mas que discurso?
GEA – Como aquele
que fez o cara da Última Ceia: “Este é o pão, este é o vinho, tomai e comei
todos vós”.
LEO – Mas esta
não é uma missa. Não tem nada a ver com o cara, que, aliás, é o Cristo. Esta é
a Primeira Ceia! Entendeu? Primeira-Ceia-Laica! Que fique claro!
GEA – Eh, entendi!
Mas se eu aqui represento a Terra, sou a Terra, finalmente eu posso externar a
todos os homens a minha raiva e a minha dor pelo mal que me fazem.
AVA – Mas que
mal? Aqui ninguém está te fazendo nada de mal, querida…
GEA – Aqui não,
mas la fora sim!
VEGANA – Tem razão!
Pensa na poluição industrial!
FRUGÍVORA - O aquecimento
global!
VEGETARIANA – O
desastre territorial!
VEGA-FRUG-VEGE
– Vocês estão matando a Mãe Natureza!
GEA – Mãe
Terra! Vocês homens estão me enchendo de venenos. Estão me destruindo e se destruindo!
CARNIVORO–ONÍVORO-CRUDÍVORO
– Justo! Ótimo! Bravo! Viva a Terra!
VEGA-FRUG-VEGE
– Ei, não, queridos! São vocês - que comem carne, sangue, cadáveres - que a fazem
morrer! Assassinos!
CARN-ONÍ-CRUD –
Biológicos!
GEA – (abrindo as mãos em cruz) “Bio mio! Bio
mio!” Pai, por que me abandonaste? (Carn/Oní/Crud se voltam contra Vega/Vege/Frug para as atacar, mas são parados pelos gritos de
Leo)
LEO – Stop!
Alt! Parem todos! Senhores, vos rogo, o que vocês estão fazendo?
AVA – Este é um
evento, não é um comício!
LEO – Estamo aqui
para uma representação, não uma revolução!
AVA – Não
estamos fazendo política aqui!
EVA – Justo! Aqui
fazemos saúde!
VEG-FRUG-VEGE –
Exato! Vocês não se dão conta de que todas as doenças que vocês têm se devem a alimentação
que não é mais natural, mas é química, ogm, artificial, industrial?
SIMONAL – Mas,
senhoritas, tem alguém que ainda não saiba?
DOUTOR – Eu! É
tudo lorota, opiniões, suposições, superstiões, sem nenhum fundamento científico.
Quem não sabe que se cale! Deixem que nós, cientistas, digamos aquilo que faz
bem ou mal.
EVA – Desculpe,
doutor, eu tenho uma pergunta para fazer aos saudáveis, veganos, vegetarianos et
caetera. Resumindo, vocês que só comem coisas saudáveis, vos pergunto: a) vocês
morrem? b) se sim, do que morrem?
ADÃO – Na minha
opinião, explodem de saúde.
SIMONAL – Não
brinca. Eles estão falando de coisas sérias. Precisamos de uma mudança, de uma
conversão geral…
TODOS OS ESTILOS
– (gritando juntos repetidamente cada
qual o próprio alimento saudável como se estivessem em um mercado na praça)
Às frutas! Ao kosher! Às lasanhas! Ao cru! Ao peixe! Estou com fome! Vegano! Todas
as dietas! Basta com os suínos! Viva a salada! (et caetera)
LEO – (desesperado e exasperado) Saimon, maldição!
Até tu? Eu digo e repito: Esta Primeira Ceia é só uma ficção, uma representação!
Um jogo, um sonho. Uma utopia!
GEA – Mas
exatamente porque a tua é uma imagem ideal não pode colocar junto vítimas e algozes,
anorexicos e canibais, barrigudos que estouram de gordura e esqueletos que morrem
de fome!
LEO – Olha,
Gea.
ESFOMEADO – Estou
com fomeeee!
ADÃO – Está com
fomeeee!
LEO – Ai, dêem
de comer ao pobre coitado! Escuta Gea, mas você acordou hoje do lado errado da
lua?
GEA – Eu não sou
a Lua. Sou a Terra. Sou a terra cheia…
EVA – Cheia de besteiras.
GEA – Sou a
terra torta. Como disse Kant.
LEO – Não, Kant
disse que o homem è un ramo torto e certamente não vai ser você a endireitá-lo!
GEA – Ah, eis o
grande artista macho que não se importa, folgado! A terra morre e ele ri! A
terra, Eu, a terra, morro e você ri! Você não me ama! Você nunca me amou!
LEO – Mas o que
você está dizendo?
GEA – Que não me
ama.
ADÃO – Sim, sim,
se vê que você não a ama.
LEO – Quieto, serviçal.
Mas, Gea, você tem mesmo que fazer essa ceninha logo aqui? Agora? Na frente de
todos?
VEGE-VEGA-FRUG
– Herbívoros de todo o mundo, uni-vos!
VEGANA – Está escrito:
“Não matarás!” Eu sou o Senhor teu “Bio”.
FRUG – Não terás
nenhum outro “Bio” além de mim.
VEGANA – Vós
sanguinarios, onívoros e carnívoros não matareis e não comerei mais nenhum
animal!
CARNÍVORO – Este
mundo é livre! E cada um pode comer aquilo que bem entender! Viva a tripa!
ESFOMEADO –
Estou com fomeeee!
VEGETARIANA – Não!
Não! Que horror! A vossa liberdade termina
onde começa a nossa.
ABRAÃO – Irmãos,
irmãs, paz, shalom, comam kosher!
ISMAEL – Viva a
guerra santa pelo alimento puro!
FRUGÍVORA – Que
não é o Kebab!
ESFOMEADO –
Estou com fomeeee!
DOUTOR– A saúde,
senhores, a saúde antes de tudo!
CARN/ONÍ/GULOSA/CRUD
– (pegando garfos e facas) A morte aos
biológicos!
VEGE-VEGA-FRUG
– (fogem) Socorrooo! Vão nos matar!
LEO – (gritando) Alt! Stop! Parados todos!
SIMONAL – Paz!
Paz!
MARTA – Amigaas!
Amigos!
(mas de qualquer forma a batalha de todos
contra todos foi declarada, voam pedaços de salada, guardanapos, farinha branca
etc., alguns combatem entre si com panelas e tampas e colheres de pau; o Crudívoro
segue a Vegana gritando: “Vem que eu te como crua!” “Socorro” grita ela “um
canibal!”; Gea sobe na mesa e grita como uma possuída: “Não, a indústria
agro-alimentar! Nos faz mal! Nos faz mal! Abaixo a cidade! Viva os camponeses!”.
A Celiaca: “Viva a terra!”. O esfomeado repete jogando-se sobre os pedaços de comida
que caem pelo chão: “Estou com fome!” O doutor: “Façam Dieta! Façam dieta! Dieta
dos pontos, Dieta da Proteína, Dieta Dunkan, Dieta da Banana etc.”. Voam insultos
de todos os tipos. “Anoréxica! Pançuda! Gorducho! Batateira!” “Vendido”
“Porco, suíno!” etc.
Leo, Simonal, Marta, Adão e Eva tentam se colocar no
meio para acalmar os ânimos ou para fazer as pessoas permanecerem em seus
lugares, organizar o que conseguem, música apocaliptica em crescente, no máximo
do caos, dos gritos, da bagunça, Adão tem uma ideia e grita)
ADÃO – Parados
todos! Vamos fazer uma selfie!
(Todos param como por encanto. Quem consegue pega o
celular e todos, sozinhos ou em pequenos grupos tiram a foto, mas Eva empurra
uns e outros para posicioná-los ao fundo no refeitório e, quando todos estão organizados,
se olham no próprio celular como se fosse espelho. Adão faz a foto coletiva gritando
“Cheese”. Então cada qual com o seu ceular na mão está na santa paz, se olhando e respondendo ao próprio celular. Uma série de musiquinhas smart sancionam a
paz solitária.
Enquanto Leo e Ava organizam o campo de batalha,
Eva, Adão, Simone, Marta e todos os que puderem servem aos espectadores o primeiro
prato.)
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