PEDRAS D’ÁGUA – BLOCO DE NOTAS DE UMA
ATRIZ DO ODIN TEATRET
Julia Varley – tradução de Juliana Zancanaro e Luciana
Martuchelli
"Começo a escrever movida pela necessidade de dialogar com o passado, de forjar palavras de orientação e de ver também nomes de mulheres nos livros de história do teatro: uma história que dança com uma força vulnerável e subjetiva."
Introdução
Uma história que dança
Em 1992, na
Cidade do México, ao final da minha demonstração sobre o trabalho de atriz O irmão morto, um espectador fez uma
pergunta recorrente: “Em que você pensa quando improvisa? O que acontece com
suas imagens originais quando o material fixado da improvisação sofre
elaborações e transformações para ser inserido em um espetáculo? Como trabalha
a sua ‘subpartitura’ sobre seus pontos de apoio internos?”.
Procurei
responder: Quando improviso, não penso por meio de imagens ou fotogramas, como
em um filme. Os sentidos, a memória do corpo, a mente e meu sistema nervoso
pensam, agem e reagem como um todo. Sem me referir conscientemente aos pontos
de partida, a informação de origem é memorizada pelas minhas ações e delas
ainda faz parte mesmo que se transforme e adquira outros significados para o
espectador. Não é uma lógica linear. Coexistem na ação motivações
contraditórias, que aparecem e desaparecem. Tudo acontece ao mesmo tempo.
O Castelo de Holstebro - foto de Juan Rüsz |
"Então concluí: Não posso explicar, por isso sou atriz!"
Percebi que
não poderia explicar o modo de pensar de uma atriz, técnica que incorporei ao
longo de anos de prática. Estava apenas fazendo um resumo confuso de um saber
que é difícil de exprimir em palavras. Então
concluí: Não posso explicar, por isso sou atriz! Minhas ações são,
interagem com os espectadores e, se são vivas, não sinto necessidade, nem se me
pedem, de comentá-las posteriormente. O agir em cena me permite contar,
simultaneamente, situações e acontecimentos diferentes, forjar as condições de
uma experiência. Querida enfatizar que as escolha de ser atriz pressupõe
propensão à ação, em lugar de propensão à palavra. Mais uma vez, insistir em
analisar meu modo de “pensar com o corpo” como atriz.
Meu ofício me
dá a oportunidade de ser percebida no presente. Se, porém, quero unir meu
percurso com o passado e deixar passos para o futuro, transmitir aquilo que
considero útil, devo encontrar um jeito de explicar isso com palavras. A
prática da profissão encontra o próprio canal de transmissão, mas a história do teatro é também uma
coleção de testemunhos que convertem a experiência prática em conceitos que transcendem
o presente e as motivações pessoais.
Poucas
mulheres têm papel relevante na história do teatro geralmente estudada em
academias ou universidades. Foram atrizes e artistas importantes, mas não
elaboraram teorias, e suas experiências chegam até nós, em grande parte,
através de biografias, cartas ou informações de noticiários. No século dos
grandes reformadores do teatro e da direção, as mulheres ficaram à margem.
Fazem parte de uma multidão de pessoas cujas realizações permanecem encobertas
e sem reconhecimento.
Em 2004,
dediquei o quarto Festival Transit, que teve como tema Teatro – Mulheres –
Raízes, a Maria Alekseevna Valentej, a neta de Vsevolod Meyerhold. Maria
consagrou a sua vida a resgatar a memória e a herança de seu avô, enfrentando,
inclusive, o governo soviético. Perguntei-me por que dedicava um festival de
teatro de mulheres a quem dedicou sua vida a resgatar a obra de um homem. O impulso
veio quando soube de sua morte, depois de tê-la conhecido em Moscou. Todos sabem
quem é Meyerhold, mas quem se lembrará de Maria ou Masha, como a chamavam?
"...frequentemente, as mulheres ativas no teatro encontram mais satisfação em participar de um projeto comum do que em ver o próprio nome estampado em um livro. "
Ser atriz me
ensinou a ter confiança na força da vulnerabilidade e a valorizar minha diferença
como mulher, evitando pretensões igualitárias ou dominantes. Na história do
teatro, prefiro me espelhar em uma presença visível particular, que talvez
ainda tenha de ser inventada. Quero realizar um sonho paradoxal: uma história
na qual pessoas anônimas têm rosto e voz. Em vez de me preocupar somente em
impor um reconhecimento histórico e teórico igualitário das mulheres ativas no
teatro, quero jogar para o alto os critérios habituais e acentuar a importância
de assistir, criar, organizar, traduzir, inspirar, sentir, assumir uma família
ou uma companhia, estar em cena e me deixar guiar pela intuição. Vem-me à mente
a palavra “relação”, tão importante no teatro, quando constato que, frequentemente, as mulheres ativas no teatro
encontram mais satisfação em participar de um projeto comum do que em ver o
próprio nome estampado em um livro. Eu gostaria de descobrir autoridade
teórica em seus escritos, biografias e autobiografias e reconhecer suas vozes
em primeira pessoa, sem que devam renunciar à generosidade.
Queria que
alguma coisa mudasse no modo de registrar, pesquisar, documentar e escrever a
história do teatro; desejo dar mais espaço às mulheres, a seu modo de
experimentar e pensar e incluir suas contribuições nas teorias e práticas do
futuro. Gostaria que as atrizes –
inclusive eu – mudassem a sua consciência em relação ao próprio ofício. Isso
nos estimularia a ir além do que conhecemos, a superar o receio e a insegurança,
que nos mantém longe das abstrações teóricas e das exposições de nossa vivência.
Para garantir presença visível, as mulheres de teatro devem assumir a
responsabilidade de escrever a própria história com palavras, formas e
perspectivas que, penso, ainda devem ser descobertas ou reformuladas.
Posso
contribuir para criar um modo diferente de escrever a história do teatro?E qual
pode ser esse modo? Posso ajudar a delinear uma teoria arco-íris e reencontrar
palavras que me permitam intuir os processos implícitos, não evidentes, da
prática teatral? De que modo posso, como mulher, incluir a diversidade de meus
critérios pessoais na percepção de circunstâncias e eventos passados e
presentes? Se as ações devem ser traduzidas em linguagens de conceitos, como
traduzir minhas experiências e as de outras atrizes, de forma que sejam pontos
de referência e instrumentos práticos e teóricos úteis? Como pode ser comunicada,
com palavras, a realidade das ações, a essência das motivações que as geraram e
o efeito provocado em cada espectador? Como posso contribuir para que seja dado
um lugar justo, na história do teatro, não só às “ideias” e aos homens que as
forjaram, escreveram, realizaram mas também às “ações”, às mulheres e aos
homens que as executaram, perceberam e interpretaram?
Essas
perguntas são resultado de uma inquietude. Desde que trabalho com o Odin
Teatret e escuto as palestras de seu diretor, Eugênio Barba, ouço falar de
Meyerhold, Stanislavski, Brecht, Artaud, Appia, Craig, Copeau, Grotowski e, toda
vez, pergunto-me por que não há nomes de mulheres entre esses mestres.
Raramente ouço mencionarem Duncan, Duse, Littlewood, Mnouchkine... Em 1989, fiz
a mesma pergunta a alguns historiadores do teatro, para publicar suas respostas
na Newsletter do Magdalena Project,
uma rede de mulheres do teatro contemporâneo.
Uma das historiadoras
comentou que, para ela, era difícil generalizar aquilo que reconhecia ser
concreto no campo pessoal. Descrever uma atriz trabalhando representava, em sua
opinião, um processo criativo com resultados ainda ignorados. Para encontrar outras
respostas, pedi ajuda à física moderna e à mecânica quântica, que me fascinavam
naquele tempo.
"Parece-me que nossa responsabilidade como atrizes é maior: estamos em contato diário com o pensamento do corpo e com os segredos a ação. Temos o dever de compartilhar nossa experiência também por meio de palavras."
O que a
matéria é realmente não pode ser comunicado com palavras. A matemática e o
português são linguagens, instrumentos úteis para transmitir informações, mas,
se os utilizarmos para comunicar experiências, não funcionam. Tudo que uma
linguagem pode fazer é falar da experiência. As palavras são representações
apenas, descrições simbólicas. Os símbolos e as experiências não seguem as
mesmas regras. Nosso processo de pensamento simbólico nos impõe categorias
excludentes. A diferença entre experiência e símbolo é a diferença entre mythos e lógos. O lógos imita a
experiência, não tenta substituí-la. (Citação livre dos livros O Tao da Física, de Fritjof Capra, e The Dancing Wu Li Masters, de Gary Zukav.)
Mas o que
acontece quando falo de teatro, que é, ao mesmo tempo, experiência e
representação? Como atriz, sento, falo, corro, transpiro e, simultaneamente,
represento alguém que senta, fala, corre e transpira. Como atriz, sou eu mesma
e o s personagens que interpreto. Existo no concreto da representação e também
deveria ser capaz de estar viva na mente e nos sentidos do espectador. Como
posso falar dessa dupla realidade?
Os físicos me
dizem: não se comunica a experiência, mas, contando-se como se produzem e se
medem os quanta, os pacotes de energia da matéria orgânica, é possível a outros
repetir a experiência. Deveria então falar de como crio, elaboro e repito as
ações?
Acho
importante a subjetividade do meu ponto de vista quando falo de teatro. Não
procuro justificativas objetivas. Talvez porque o teatro siga simultaneamente
dois sistemas de regras, a da experiência e a da representação, ele me ajuda a
perceber as possibilidades de mudanças profundas. Reconheço no teatro um campo
privilegiado de união para as mulheres que refletem sobre sua relação com a
história. Parece-me que nossa
responsabilidade como atrizes é maior: estamos em contato diário com o
pensamento do corpo e com os segredos a ação. Temos o dever de compartilhar
nossa experiência também por meio de palavras.
Como
mulheres, geralmente escolhemos dar prioridade à intensidade emotiva de nossa
vida, às relações afetivas e às ocupações atuais. Não estamos muito preocupadas
em deixar uma herança histórica, enquanto focamos a educação dos filhos ou o
comprometimento com pessoas próximas. Como atriz, o senso de inteireza, de
verdade subjetiva e a percepção intuitiva da realidade me permitem agir sem me
prender a passagens lógicas e lineares, necessárias ao processo do pensamento
analítico. A necessidade de integridade se torna impedimento para eu falar,
porque a descrição parece verdadeira e falsa ao mesmo tempo.
"Expor meu processo profissional é também considerado perigoso pedagogicamente, porque enganaria ao fazer crer que bastam alguns simples conceitos para se melhorar no ofício.
Julia Varley com nossa presidente Claudia Venturi Festival Vértice Brasil - 2010 |
Que
alternativa tenho, se não me adapto à maneira habitual de transformar um evento
em símbolo, com uma apresentação inevitavelmente mutilada da realidade,
traçando um mapa que desenha e recorda algo que não é o território? Sou capaz
de usar as palavras para dizer de modo diferente? A mecânica quântica usa a
expressão “probabilidade de conhecimento”, porque é conveniente. Posso fazer o
mesmo, se aceitar a distorção e os limites da narração para dizer aquilo que
pode se tornar subjetivamente útil?
Enquanto
trabalhava como diretora do espetáculo Sementes
de Memória, com a atriz argentina Ana Woolf, lembrava-me frequentemente das
mães da Praça de Maio, de Buenos Aires. Elas me ensinavam a desafiar a ausência
dos desaparecidos, recriando sua presença com lembranças detalhadas e
cotidianas de como eram quando vivos: sorridentes e cheios de esperança no
futuro. As mães advertiam que os discursos políticos não traziam de volta a
vida daqueles jovens, mas que a descrição de seus atos os mantinha vivos na
memória. Penso nisso quando preparo o discurso de abertura de um festival ou de
uma palestra. Os títulos oficiais não me
ajudam a falar, mas o exercício diário e aprender com os erros, sim. Minha
bússola é escutar os outros e me concentrar naquilo que, na situação,
estimula-me a eliminar antagonismos estéreis.
Às vezes,
quando descrevo o processo de criação, reprovo-me por perder o fascínio, por me
tornar técnica, como se renunciasse à paixão, à vida interior, àquilo que
deveria permanecer misterioso e velado aos espectadores, aos historiadores e a
mim também. A simplicidade, a lógica paradoxal e a aparente frieza do processo
de que me utilizo para criar provocam recusa no interlocutor. Expor meu processo profissional é também
considerado perigoso pedagogicamente, porque enganaria ao fazer crer que bastam
alguns simples conceitos para se melhorar no ofício.
Talvez fosse
preferível que as atrizes – como as mulheres na vida diária – permanecessem envoltas
na aura do segredo e do enigma, para que o ofício pudesse conservar um sentido oculto,
deixando aos outros a tarefa de relatá-los e analisá-los. Não quero renunciar
ao meu modo íntimo que nem mesmo eu sei decifrar, à minha inteligência
intuitiva, ao meu jeito de ser atriz e mulher e gostaria que as jovens que se
aproximam do teatro pudessem travar diálogo com uma mulher quando olham o
passado.
"...a palavra escrita se reveste de um véu de verdade objetiva, enquanto, na prática, é inevitável que me contradiga, conforme a situação e as pessoas. No trabalho concreto, aquilo que é válido em um dia não o é mais no dia seguinte."
Vejo-me
diante de um paradoxo. Se continuo a defender a integridade e a particularidade
da experiência que não pode ser comunicada, nunca estarei apta a condensar um relato,
uma teoria e um saber diferente. Se paro, entretanto, de defender essa
experiência como tal, escreverei uma história que não é minha. Tenho
necessidade de transmitir, mas também de descobrir como fazê-lo.
O trabalho
coletivo na redação da The Open Page,
a revista anual que reúne artigos de mulheres que trabalham no teatro, e os
contatos com a rede do Magdalena Project me levam a enfrentar necessidades
contraditórias: ser tácita e conceitual; invisível e presente. Quando leio uma
edição da The Open Page, percebo que
pouco artigos têm força historiográfica ou literária autônoma, mas que, pela
relação dos textos individuais, cada autora participa da tentativa de tornar
audível uma voz clara e singular. A presença é construída através de esforço
coletivo compartilhado, que se amalgama na mente do leitor.
A maior parte do que eu sei está enraizado
em minha experiência de atriz. Gostaria de apoiar meu compromisso na presença
visível das mulheres na história do teatro, na experiência da minha presença
cênica. Sinto que devo estabelecer uma relação entre meu modo de ser atriz e
meu modo de escrever, organizar e dirigir.
Frequentemente
alunos e participantes de seminários me perguntam se já escrevi sobre o meu
processo de trabalho. Queriam encontrar impressos em papel os exercícios e os
conselhos que lhes dei, para deles recordar com exatidão. Sempre resisti a essa
proposta, porque a palavra escrita se
reveste de um véu de verdade objetiva, enquanto, na prática, é inevitável que
me contradiga, conforme a situação e as
pessoas. No trabalho concreto, aquilo que é válido em um dia não o é mais no
dia seguinte. Tenho medo de que, na escrita, perca-se o calor e o relato
absolutamente pessoal, fundamental na pedagogia. Faltaria aquela comunicação
que passa de corpo a corpo, de sentido a sentido, de célula a célula e que está
na base do meu saber de atriz. A pergunta, no entanto, é insistente e as
demonstrações de trabalho, ainda que registradas em vídeo, não a respondam
satisfatoriamente.
Sinto a obrigação de fixar alguns traços do
meu percurso, embora espere que minhas palavras não sejam pretensiosas, não
pareçam dar segurança ou pretendam ser verdades definitivas. Queria
satisfazer aqueles que me pediram para escrever, ainda que saiba que não sou
capaz de derrubar a barreira entre realidade e texto.
Geralmente
desejo um bom trabalho aos alunos quando termino um seminário. Sei que não se pode ensinar; só aprender.
Sei que a estrada é longa e que cada um deve interpretar e trair cada conselho
com a prática pessoal. Comprometo-me a escrever, relembrando aquilo que
repeti frequentemente nos seminários. Ficará sempre uma lacuna, alguma coisa
não dita. Aceito essa responsabilidade com a ilusão de que estas páginas possam
ser úteis a uma atriz em busca de sua voz. Começo
a escrever movida pela necessidade de dialogar com o passado, de forjar
palavras de orientação e de ver também nomes de mulheres nos livros de história
do teatro: uma história que dança com uma força vulnerável e subjetiva.
"Sei que não se pode ensinar; só aprender. Sei que a estrada é longa e que cada um deve interpretar e trair cada conselho com a prática pessoal."
1.Primeiros
passos
Tornar-se atriz
Atriz. Dei-me
conta de que era atriz quando escrevi a profissão no passaporte, alguns anos
depois de que fazia parte do Odin Teatret, o grupo de teatro dinamarquês
fundado em 1964. Quando adolescente, nunca havia pensado em me tornar atriz, um
trabalho que associava à falsidade. Era tímida, falar em público era um fardo e
nuna me imaginara sobre um palco.
...
Agora que você já leu a introdução e o início do primeiro
capítulo, corre para encontrar o livro e conferir todo o resto!
Extraído do livro PEDRAS D’ÁGUA:
BLOCO DE NOTAS DE UMA ATRIZ DO ODIN TEATRET, de Julia Varley, com tradução de Juliana
Zancanaro e Luciana Martuchelli. – Brasília: Teatro Caleidoscópio, 2010. 1ª Ed.
Gentilmente autorizado pela tradutora do livro.
Mais informações sobre o livro e
o trabalho de Julia Varley nos sites:
WWW.odinteatret.dk
WWW.themagdalenaproject.org
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