Embora a matéria abaixo tenha sido veiculada também em português e
divulgada até nas redes sociais, possui uma temática que vale ser relembrada e
retransmitida aos nossos leitores, até mesmo pela contemporaneidade e similaridade com a nossa situação social e política no Brasil.
Este artigo foi publicado em 7 de janeiro de 2014, na parte
de cultura do periódico virtual El País, por Juan Peces e fala sobre o ensaio
do Professor Italiano Nuccio Ordine, que em português se chamaria "A
utilidade do inútil".
Nuccio Ordine é filósofo e professor de literatura italiana da Universidade da Calábria.
Lecionou na Universidade Yale, na Universidade de Nova York, na Sorbonne (Paris) e no Instituto Warburg (Londres).
Desde 2012, é cavaleiro da Legião de Honra francesa.
A Utilidade do Inútil é o seu mais recente ensaio.
Em seu novo ensaio, o italiano Nuccio Ordine critica a “ditadura do proveito”, o utilitarismo da educação e o pouco interesse da política pelos bens do espírito
Boa
leitura e boa reflexão!
A cultura é inútil, felizmente
O
noticiário policial de 26 de dezembro de 2013 em Paris relata que um escritor
desesperado, farto de instituições indiferentes à sua paixão pela cultura,
arremessou seu carro contra os portões gradeados do Palácio do Eliseu. O
motorista, Attilio Maggiulli, não pôde suportar o que considerava um desprezo
oficial ao projeto da sua vida, o Théâtre de la Comédie Italiénne –
que perdeu quase 50% de financiamento público em três anos –, e não encontrou
melhor maneira de apresentar suas queixas do que carimbar sua indignação contra
a residência oficial da presidência da República Francesa.
A barbárie do útil corrompeu nossas relações e afetos íntimos
Até aqui tem-se
o resumo da história de Maggiulli. A notícia remete, no entanto, à história de
outro escritor indignado, o professor italiano Nuccio Ordine (nascido em
Diamante, região da Calábria, daí o nome Diamante Ordine em sua certidão de
batismo). Com personagens iguais ou parecidos – uma cultura apunhalada, uma
educação asfixiada e um povo adormecido –, Ordine, de 55 anos, preferiu usar a
palavra para atacar a ignorância das instituições e alertar sobre seus efeitos
para a cidadania. Se deixarmos que nos roubem o legado de nossos antepassados e
que se mutile o conhecimento, alerta, não apenas deixaremos de ser pessoas
cultas, como também todas as gerações futuras deixarão de ser pessoas em
sentido estrito.
O veículo usado por Ordine para seu
grito profético é o manifesto chamado L'utilità dell'inutile (“A
utilidade do inútil”, sem tradução no Brasil). Na Espanha, o ensaio foi
publicado por Jaume Vallcorba, fundador das editoras Acantilado e Quaderns
Crema, e traduzido pelo professor de Filosofia Jordi Bayod Brau.
Ordine,
professor de prestigiosas universidades, especialista em Renascimento e diretor
de várias coleções de clássicos da editora Belles Lettres, de Paris, se diz
“emocionado” pela recepção de seu livro em Barcelona, onde foi apresentado
recentemente, e em Madri (onde foi apadrinhado por Fernando Savater). “As
pessoas me abraçavam e me agradeciam. Um estudante me disse: ‘Decidi estudar
Filosofia e Paleografia contra a vontade de meu pai, que me perguntava para que
isso servia. Seu livro confirmou minha decisão”, relembra.
"Há 24 anos venho tentando convencer meus alunos de que não se frequenta a universidade para obter um diploma, mas para tentarmos ser melhores, isto é, para aprendermos a raciocinar de forma independente."
A tese central do livro pode ser
resumida na ideia de que a literatura, a filosofia e outros conhecimentos
humanísticos e científicos, longe de serem inúteis – como se poderia deduzir
por seu progressivo isolamento nos planos educacionais e nos orçamentos ministeriais
–, são imprescindíveis. “O fato de [tais conhecimentos] serem imunes a qualquer
expectativa de benefício” representa, segundo o autor, “uma forma de
resistência aos egoísmos do presente, um antídoto contra a barbárie do útil,
que chegou a corromper inclusive nossas relações sociais e nossos afetos
íntimos”.
Como em um
coro grego, Nuccio Ordine monta uma defesa do conhecimento apoiando-se nos
autores que o precederam em sua empreitada. Dante, Petrarca, Moro, Campanella,
Bruno, Bataille, Keynes, Steiner, García Márquez, Cervantes, Shakespeare,
Platão, Sócrates, Sêneca, Heidegger, Cioran, García Lorca, Tocqueville, Hugo,
Montaigne... Eles são recrutados e contextualizados para mostrar “o peso
ilusório da posse e seus efeitos devastadores sobre a dignitas hominis, o
amor e a verdade”.
O filósofo italiano Nuccio Ordine. |
Por que este livro? “Há 24 anos venho tentando
convencer meus alunos de que não se frequenta a universidade para obter um
diploma, mas para tentarmos ser melhores, isto é, para aprendermos a raciocinar
de forma independente.” Para Ordine, a transmissão do amor pelo conhecimento é
um esporte de combate. E isso implica desmontar algumas ideias materialistas
difundidas pelo sistema capitalista. “As pessoas pensam que a felicidade é um
produto do dinheiro. Estão enganadas!”, afirma.
Tal pretensão já se estendeu para
todos os âmbitos. “O utilitarismo invadiu espaços aonde nunca deveria ter
entrado, como as instituições educativas”, denuncia o professor. E alerta:
“Quando se reduz o orçamento para as universidades, escolas, teatros, pesquisas
arqueológicas e bibliotecas, a excelência de um país está sendo diminuída,
eliminando qualquer possibilidade de formar toda uma geração”.
Em épocas de crise é preciso dobrar o orçamento para a cultura
O autor
também se apoia em um discurso de Victor Hugo – em 1848! – diante da própria
Assembleia Constituinte da França, onde o escritor pronunciou estas palavras:
“As reduções propostas no orçamento especial das ciências, das letras e das
artes são duplamente perversas. São insignificantes do ponto de vista
financeiro, e nocivas de todos os outros pontos de vista”. Ordine diz que, ao
ler esse discurso, deu um pulo até o teto e se apropriou das teses de Hugo ao
afirmar (exclamar, na verdade) que “nas épocas de crise é que se deve dobrar o
orçamento para a cultura!”.
O manifesto inclui também um texto
premonitório de Abraham Flexner, publicado em 1939, que prega a importância da
ciência. “Queria que ficasse claro que a defesa do inútil [o que não
é ligado ao objetivo de lucro] não diz respeito somente a escritores e
humanistas, mas é uma luta que também preocupa os cientistas”, explica Ordine.
“O Estado não pode renunciar à ciência básica [por causa dos benefícios
advindos]; por isso escrevi um capítulo dedicado às universidades entendidas
como empresas.”
A Utilidade do Inútil não é apenas uma série de argumentos contra a tendência ao utilitarismo ou o "comércio satânico" (Baudelaire): é também um manual para superar o que o autor do livro chama de "o inverno da consciência" e para lembrar, com Montaigne, que “é o desfrutar, não o possuir, que nos faz felizes”.
Juan Peces é periodista espanhos e escreve para El País e British Journal of Photography
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