Neste mês em que completamos sete anos de morte de Augusto
Boal, publicamos esta homenagem ao grande artista de teatro, que conquistou o
mundo e cuja sabedoria encantava a todos que o ouviam.
O filho do padeiro e a revolução
Por Kil Abreu, jornalista, crítico e pesquisador do
teatro. É curador do Festival Recife do Teatro nacional e coordena o Núcleo de
Estudos do teatro contemporâneo da Escola Livre de Santo André. – em Carta Maior - 04/05/2009, homenagem póstuma a Augusto Boal em http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia/O-filho-do-padeiro-e-a-revolucao%0D%0A/12/15211
Augusto Boal em foto da página do Instituto Augusto Boal |
Filho de um padeiro português que chegou ao Rio de Janeiro
por se recusar a servir como soldado em uma guerra com a qual não concordava e
de uma certa senhora que abandonara o primeiro noivo praticamente no altar para
casar, por decisão e gosto, com um “aventureiro”, Augusto Boal aprendeu desde
logo que o mundo pode ser mudado, bastando para isso decisão e coragem. Toda a
sua invenção no teatro parece se basear nesta fé sobre o efeito da ação do
homem no mundo, que não é apenas um lance retórico, como no teatro burguês, e
deve ser encontrada nos motivos da vida ordinária.
Teatro de Arena - por Oswaldo Mendes, foto do blog "Por Tudo ou Nada" |
Foi assim que ele construiu uma carreira pontuada muitas
vezes por lances decisivos, não apenas pessoalmente, mas para a história do
teatro brasileiro. Convidado ao então promissor Teatro de Arena, em 1956,
empresta ao grupo os conhecimentos aprendidos, de encenação e dramaturgia, em
uma recente temporada nos Estados Unidos. Principal ideólogo nos caminhos de
uma cena preocupada em com as contradições da sociedade, é Boal quem intui que um
teatro novo, com assuntos ainda não levados ao palco, pede também uma cena
nova, com dramaturgia própria e um repertório técnico e artístico que dê conta
de suportar a representação da realidade em chave crítica. Introduz o método de
Stanislávski, que havia estudado no Actor's Studio, com vistas ao naturalismo que seria de grande valia para a primeira fase
de renovação da cena que o Arena promoveria. O andar de baixo finalmente vem à
luz e personagens como operários, cangaceiros e jogadores de times de várzea
ganham o palco. Era a hora da representação dos temas nacionais, quando
dirigiu, entre outros, Chapetuba Futebol Clube, de Oduvaldo Viana Filho (1959),
espetáculo que dá seguimento a Eles não usam Black-tie, peça de Guarnieri
(1958) dirigida por José Renato.
Oduvaldo Viana Filho - foto de internet |
Ainda em 1960, de mãos dadas com os ensinamentos vindos de
Brecht e o seu teatro épico, Boal escreve Revolução na América do Sul, uma
mistura de teatro de agitação, tradições populares e revista musical. O
espetáculo tem direção de José Renato e afirma com grande inventividade as
marcas que pautariam toda a sua produção posterior: de um lado, o espírito
criativo iconoclasta, experimental e, de outro, a certeza de que a experiência
estética não é mero formalismo, é meio para a discussão urgente de algum
aspecto da vida em sociedade.
O período que vai de 64 a 71, contabilizada a grande sede de
justiça social provocada pelo golpe, é o período da resistência que inclui
ações em várias frentes: alinhado ao CPC da UNE, já na ilegalidade, Boal
dirige, no Rio, o Show Opinião, com Zé Ketti, João do Vale e Nara Leão. Em São
Paulo cria, com Guarnieri e Edu Lobo, o musical Arena Conta Zumbi, cuja
estrutura modelar seria aproveitada em outras montagens (Arena conta Bahia,
Arena conta Tiradentes, Arena conta Bolívar). O propósito é evidente: fazer,
através de personagens históricos ligados às lutas populares, o cotejamento com
a realidade atual do país, apontando a necessidade de mobilização e de mudança.
Mas não é só. Para que o efeito crítico seja efetivo os espetáculos trazem,
entre outras inovações, o “sistema coringa”, uma técnica através da qual todos
os atores interpretam todos os personagens e a fábula é conduzida por um
narrador, que à maneira brechtiana faz a mediação crítica e chama a plateia a
acompanhar as cenas à luz da razão.
Gianfrancesco Guarnieri - foto de internet |
É ao fim deste duro período, quando finalmente será exilado
depois de passar por tortura e de ver suas montagens censuradas, que está o
nascedouro da experiência que consagraria Boal como um dos artistas brasileiros
mais importantes do mundo. É quando surgem os princípios que vão orientar as
técnicas que mais adiante serão aplicadas ao seu Teatro do Oprimido. É criado o
Núcleo Independente, oriundo do Arena, que teria ação importante na periferia
de São Paulo nos anos 70. O primeiro espetáculo chama-se Teatro Jornal 1a.
edição e inspira-se no trabalho de um grupo de agit-prop americano
dos anos 30, o Living Newspaper. O procedimento fundamental está próximo do que
mais tarde seria o Teatro Fórum: os atores leem as notícias do dia e criam
situações cênicas para debater pontos de vista e lançar novos olhares sobre o
noticiado.
Expulso do seu país, Boal prossegue com seu trabalho no
exterior, primeiro na Argentina, onde desenvolve a estrutura teórica dos
procedimentos do teatro do oprimido. É quando passa a sistematizar e a praticar
uma revolução verdadeira. Simples como o são as coisas necessárias e urgentes,
o Teatro do Oprimido tem como palco qualquer lugar onde um grupo de cidadãos
possa se reunir e tem como finalidade dar voz, através da representação
simbólica do mundo, aos que em geral permanecem calados. Com uma técnica
engenhosa, que leva aquele que seria o espectador do teatro burguês ao lugar de
atuante no curso dos acontecimentos, é uma forma teatral que desmistifica a coisa
estética para ver a beleza no exercício de autonomia do sujeito, quando este é
chamado a intervir no andamento da ação e a dar sentido político à sua própria
existência. Recentemente o Teatro Legislativo, gênero derivado do Teatro do Oprimido
e surgido durante o mandato de Boal como vereador no Rio de Janeiro, foi
responsável pela criação de treze Leis municipais, todas nascidas da discussão
comunitária, em encontros nos quais a população apresentou, através do teatro,
as suas demandas.
Nomeado pela Unesco Embaixador Mundial do Teatro em março
deste ano, Boal deixa seus livros traduzidos em vinte idiomas e centros de
teatro do oprimido espalhados por mais de setenta países.
Augusto Boal - Foto retirada da matéria original no site Carta Maior |
Nesta semana de homenagens póstumas não será demais lembrar
uma fala, na apresentação da sua autobiografia, em que ele dizia que a ideia de
se autobiografar é algo quase imoral, pois que o importante é a obra, não o
homem. Mas o fato é que seu gênio artístico fará falta, sim, e tende a parecer
cada vez mais uma anomalia, um idealismo ingênuo – como, aliás, está tratado já
subliminarmente, nas falas de despedida, pela grande mídia e por vários dos
seus companheiros de jornada, hoje rendidos ao mercado do entretenimento. Em
uma época na qual a arte se identifica e se organiza em tendências de temporada,
será cada vez mais raro encontrar um artista cuja tendência radical na direção
da justiça é obra de uma vida inteira.
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