ENTRE O TEATRO E A VIDA
AUGUSTO BOAL
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Hoje trazemos ao nosso blog um texto da palestra de Augusto Boal, publicada por Sergio de Carvalho no livro o teatro e a cidade e postado no site oficial o Instituto Augusto Boal, em 24/06/2016.
Hoje trazemos ao nosso blog um texto da palestra de Augusto Boal, publicada por Sergio de Carvalho no livro o teatro e a cidade e postado no site oficial o Instituto Augusto Boal, em 24/06/2016.
Boa leitura!
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Sem rituais e sem performances
a vida seria impossível.
Imagem o site a Funarte |
Eu vou falar do Teatro do
Oprimido como um teatro limite, como um trabalho que está dos dois lados da
fronteira, entre a ficção e a realidade. E vou fazer isso de uma forma aberta,
inconclusa, misturando a leitura de alguns trechos de um artigo que está em
esboço com o relato de algumas experiências que podem alimentar o nosso debate[i].
Vocês olhem para mim como se eu fosse um pintor rabiscando um quadro futuro.
Nas linhas gerais vocês imaginem a pintura possível.
Eu vivi muito tempo na
França, e talvez corresponda a uma certa herança cultural francesa o meu gosto
pelo jogo de palavras: “O teatro como vida e a vida como teatro” é a questão
que quero discutir aqui.
Semanas atrás, Richard
Schechner – que é o diretor da revista The
Drama Review e amigo meu há 40 anos – me pediu que escrevesse alguma coisa
sobre o livro novo que ele vai lançar a respeito da performance. Ele compreende nesse termo aquelas formas teatrais (ou
ações humanas com formato teatral) que surgem no cotidiano em situações nas
quais a realidade se teatraliza, como uma inauguração de um banco, um discurso
presidencial, uma partida de futebol, uma luta de boxe, uma sessão da Câmara
dos Deputados. E o conceito inclui também o desfile de uma escola de samba, a
sessão de macumba e até mesmo os espetáculos de teatro. Tudo é performance.
Performances seriam todas as atividades humanas organizadas de modo
espetacular e realizadas por “atores” que estão conscientes da organização,
ainda que possam ignorar seus significados e razões. É uma noção muito aberta
que nos faz ver, por exemplo, que mesmo num espetáculo teatral de palco existe
a presença de acontecimentos únicos, irreprodutíveis e singulares – tal como
aqueles que costumam aparecer na vida. E que também nos permite observar como a
vida poucas vezes é original, como ela está sujeita a gestos estabelecidos, a
formalismos verbais, a movimentos pré-determinados, muito semelhantes aos que
fazem os atores no palco.
É a vida reduzida a
“teatro” que nos conduz a certos crimes como o de lesa-amor, que ocorre quando
repetimos com pessoas diferentes as mesmas palavras, os mesmos gestos, o mesmo
carinho mecanizado.
Por outro lado, é nessa
terra de ninguém onde o teatro é vida e a vida é teatro que surge a
possibilidade de uma intervenção revitalizadora, umas das coisas a que se
propõe o Teatro do Oprimido.
Infelizmente, a
mecanização do comportamento humano vai muito além das situações de performance. Suas raízes são mais fundas
e se expressam em muitas ações inconscientes e banais, feitas segundo uma
rotina ritualisticamente pré-estabelecida. E isso não causa maior embaraço até
que cheguem os tempos de crise. Em épocas críticas (como essa que estamos
vivendo agora) nossas vidas se assemelham a rios depois de uma tempestade.
Vemos flutuar sobre as águas turbulentas inúmeros destroços que nos lembram de
um sentido anterior, da solidez perdida, das casas e existências desagregadas.
É a vida despedaçada que passa boiando nervosamente, sem a serventia de antes.
Dias atrás na televisão,
o presidente Bush foi à Televisão, sentou-se ao lado de uma bandeira de seu
país, como manda o ritual desse tipo de performance,
e visivelmente nervoso – diante da ameaça do uso terrorista do antraz – pediu calma aos norte-americanos.
Intranquilo, pediu tranquilidade. Ele estava fora da sua habitual rotina de
presidente, mas obedecia rigorosamente à rotina das manifestações excepcionais
da presidência. Pediu que os seus concidadãos voltassem à vida de todos os dias
à qual ele próprio não poderia voltar.
Porque o teatro é a transubstanciação cênica de um momento da
vida social, contendo todas as suas contradições e conflitos.
Esses rituais profanos e
performáticos, esses diluidores das crises profundas devem muito de sua
existência ao fato de serem estratificações da correlação de forças entre
pessoas e grupos. Formalizam desejos, vontades e objetivos sociais e sua
utilidade prática advém de não podermos ser originais o tempo todo. Nem eu, ao
fazer essa conferência. Sem rituais e sem performances
a vida seria impossível. Se estivéssemos obrigados a ser originais sempre,
estaríamos condenados ao caos. Não saberíamos jamais o valor de cada um dos
nossos atos, nem as suas consequências.
Na medida, porém, em que
internalizamos os hábitos necessários a nossa vida social (o que nos permite o
convívio e o diálogo) vamos cristalizando valores para cada um dos nossos atos.
Surgem hierarquizações e seleções para cada situação que se nos apresenta,
regras de conduta e frutos proibidos. A vida social começa a impor suas regras
que canalizam a violência, organizações decorrentes de correlações de força:
quando essas regras se estratificam podem se tornar exatamente o contrário
daquilo para o qual foram criadas.
Assim, quando uma
realidade é apresentada no teatro – sendo o fenômeno teatral uma realidade em
si mesma – a violência que existe na realidade é transposta, transfigurada e
inevitavelmente algo dela permanece na sua representação teatral. Se a vida
social consiste numa estrutura de violências, o teatro não está isento dessa
estratificação e correlação pré-determinada. Porque o teatro é a
transubstanciação cênica de um momento da vida social, contendo todas as suas
contradições e conflitos.
O grande desafio de um
teatro mobilizador é, portanto, lutar contra as violências estabelecidas
socialmente ou materializadas no próprio ato teatral – o que acontece, por
exemplo, sempre que os espectadores se tornam receptores totalmente passivos
das imagens que lhe são apresentadas, aceitando uma aparência de vida que flui
independentemente deles.
O sucesso do Teatro do
Oprimido em todo o mundo – e essa ideia eu devo a meu filho Julián Boal – se
deve justamente ao fato dele apresentar imagens da realidade que podem ser
transformadas, remodeladas, recriadas em outras imagens desejadas.
O Teatro do Oprimido
retira das representações a violência estratificada que elas contém. Ele congela
aquele rio portador de destroços. Permite aos espectadores, de forma serena, o
exercício da inteligência e a criatividade. Todos são chamados a inventar
realidades possíveis, libertados da condição de meras testemunhas de rituais
dados. Os espectadores tornam-se protagonistas, tornam-se inventores.
O que precisa ser
analisado num trabalho do Teatro do Oprimido é justamente a correlação de
forças estabelecida na sociedade, do ponto de vista da liberdade oferecida aos
espectadores. Ao público – e não aos artistas em seu lugar – é oferecida a
oportunidade de estudar os rituais aos quais todos estão submetidos em suas
vidas. E de, criativamente, substituir esses ritos por outros mais adequados a
lhe proporcionar felicidade.
Assim sendo, o Teatro do
Oprimido transita constantemente entre a vida e a ficção, entre a realidade que
vivemos e aquela que podemos inventar. Entre o passado e o presente para
invadir, sobretudo, o futuro.
Entretanto, para que uma
cena de Teatro do Oprimido possa ser transformada pela criatividade de seus
espectadores – e desfeita a estratificação convencional da realidade – é
preciso que se compreenda a escala de valores morais que orienta a
representação.
Existe hoje no mundo e no
Brasil uma deliberada confusão moral que serve para justificar e mascarar
certos comportamentos nocivos. Isso que nos parece espantoso e digno de horror
é considerado normal pelo presidente Fernando Henrique que aprendeu a operar
numa zona cinzenta da amoralidade preconizada por um de seus amigos filósofos,
o Senhor Gianotti de nefasta figura.
É também por acreditar
que essa zona cinza deva existir que os Estados Unidos – sem terem apresentado
nenhuma prova verdadeira sobre a autoria dos atentados de Nova Iorque – inicia
agora uma campanha bélica no Oriente que promete ser das mais destrutivas da
nossa era.
Uma sessão de Teatro do
Oprimido serve para esclarecer que não são universais essas zonas cinzentas que
regulam tantas performances: na hora
do “pega para capar” e dos ajustes de contas, tudo se torna branco e preto. Na
hora de se cobrar um milhão e meio de dólares de juros de uma questionável
dívida externa, os centavos contam e não existem campos difusos nos olhos das
exigências bancárias.
“Então, eu que sou muda, eu que sou invisível, de repente,
fui ajudada a me tornar visível, a ser ouvida, para que minhas ideias fossem
compreendidas.”
Da última vez que estive
em São Paulo contei uma história que tenho relatado repetidas vezes desde que
aconteceu em 1999. Gostaria de contá-la de novo como exemplo da importância de
se mobilizar as pessoas ao fazer com que o teatro lhes devolva a confiança na
transformação da vida.
Ligado ao trabalho do
Teatro do Oprimido no Rio de Janeiro existe um grupo de empregadas domésticas
que certo dia nos procurou com o desejo de “fazer teatro dentro de um teatro”.
O diálogo que se passou foi mais ou menos o seguinte:
- “Você vive nos dizendo
que isso que estamos fazendo é teatro, mas só apresentamos na rua, em
sindicatos, nas igrejas. Queremos um palco de verdade, fazer teatro dentro de
um teatro”.
- “Mas para quê?” – eu
perguntei.
- “Nós queremos que a
pessoa vá até à bilheteria, pegue o seu bilhetezinho; e queremos que o porteiro
no saguão rasgue o bilhete e devolva metade para ele; e que depois ele se sente
na poltrona e veja o pano subir. Quando acontecer isso vamos acreditar que
fazemos teatro.”
- “Olha, vocês esqueceram
que as pessoas que virão assisti-las talvez não tenham dinheiro para comprar um
ingresso”.
- “Não tem importância,
entra de graça. Mas vai até a bilheteria para pegar o bilhete”.
- “Então, está certo: vamos fazer!” – foi a
nossa decisão.
“...será que cada um de nós, quando se olha no espelho,
consegue se enxergar verdadeiramente ou só vê aquilo que dizem que somos?”
Alugamos o Teatro Glória,
que é bem central e organizamos um festival. Eram seis grupos, divididos em
três dias. As empregadas domésticas se apresentaram no terceiro dia. O festival
inteiro teve um enorme sucesso, com espectadores vindos dos bairros, o teatro
sempre lotado, uma enorme e substancial alegria! Ao fim da apresentação delas
vieram me avisar que uma moça estava chorando no camarim. Ficamos preocupados,
imaginando que ela lamentava alguma coisa errada, mas quando perguntamos o
motivo ela disse:
- “Desde a tarde, quando
cheguei aqui, eu já estava emocionada. Nós somos empregadas domésticas – e as
empregadas são ensinadas a serem invisíveis. Nós fazemos a comida e parece que
ela vai sozinha para mesa; os pratos ficam sujos e parece que se lavam
sozinhos; de manhã a criança acorda, veste-se e parece que ninguém fez nada por
ela. A empregada doméstica é um ser invisível. Somos também ensinadas a ser
mudas, não podemos falar. Se, de repente em volta da mesa as pessoas discutem
política, a empregada não tem o direito de dizer o que pensa. Alguém logo
orienta: ´Ei, você não sabe nada! Tem é que votar nesse outro candidato aqui!`
Mas hoje à tarde, quando eu pisei no teatro, um homem no alto da escada me
pediu um favor: ´Chega um pouquinho para cá que eu quero colocar o refletor em
cima de você!` Ele estava me iluminando para que todo mundo visse o meu corpo.
E logo veio um outro que pôs um microfone na minha lapela e me disse: ´Mesmo
com o microfone fala mais alto porque a sua voz tem que ser ouvida lá na última
fila`. Então, eu que sou muda, eu que sou invisível, de repente, fui ajudada a
me tornar visível, a ser ouvida, para que minhas ideias fossem compreendidas”.
E ela continuou: “E o
mais engraçado era ver que na plateia, no escuro, estava sentada a família para
a qual eu trabalho há dez anos. Estava calada e ouviam tudo o que eu dizia”.
Aí então eu perguntei:
“Mas por que você chorou? Não era para estar feliz ao mostrar que você existia,
pensava e se emocionava?”
- “Eu chorei depois,
quando entrei no camarim e me olhei no espelho. Fiquei assustada.” – ela disse
agora sobriamente.
- Por que assustada?
- Eu olhei no espelho e vi uma mulher. Foi a
primeira vez, em muitos anos que isso acontece. Antes, quando eu meu olhava no
espelho, eu via uma empregada doméstica. Desta vez, não. Eu sou uma mulher.”
Ela era aquele corpo,
aquele pensamento, aquelas emoções. O teatro deu a ela o poder extraordinário
de entrar em cena, também na vida, não para se exibir, mas para dizer o que
pensava e gostar do corpo que tem.
E eu sempre me pergunto:
será que cada um de nós, quando se olha no espelho, consegue se enxergar
verdadeiramente ou só vê aquilo que dizem que somos?
É contra essa
uniformização cinzenta que impede o que nós verdadeiramente somos, é contra os
papéis distribuídos pelos dominadores (que nos dizem também como
desempenhá-los), é contra as formas morais e estéticas que nos impedem de
entrar em cena criativamente que o grande teatro pode nos oferecer sua técnica
a serviço da vida.
Quando sonha um outro
real possível o espectador transforma as imagens estratificadas da vida social
em um dinamismo de amor e desejos que evocam uma sociedade de convívio mais
igualitário e menos mecanizado.
É no limiar entre o
teatro e a vida, entre o ideal e o real que se operam os atos transformadores,
a partir de uma superação que só depende da invenção e produção criativa dos
homens.
“Como artista, eu não sou um personagem, eu sou vários.”
FRAGMENTOS DE UM DEBATE COM AUGUSTO
BOAL
PÚBLICO – Como você avalia a situação
do teatro brasileiro atual?
BOAL – Eu não posso falar do teatro
brasileiro e tenho dúvidas se alguém pode. Vocês que moram em São Paulo talvez
possam falar do teatro paulista. Eu, quem sabe, possa falar um pouco daquilo
que vejo no teatro do Rio de Janeiro. Mas não se pode dizer o que é o teatro
brasileiro em geral. Poucos sabemos do que se passa no Norte ou Sul do país.
Não gostaria, além do mais, que o meu entusiasmo com o Teatro do Oprimido desse
a impressão que sou contra outras formas de teatro. Eu mesmo escrevo e dirijo
peças testemunhais, ligadas à minha história. Como artista, eu não sou um
personagem, eu sou vários. E não gostaria que o espectador dissesse “pára!” e
entrasse em cena para me substituir e mostrar o que eu tenho que fazer. Isso
quer dizer: eu não sou contra o teatro de palco. Acredito que todas as formas
de espetáculo são válidas. Mas se falasse sobre o teatro brasileiro cometeria
injustiças. Eu já vi, por exemplo, alguns espetáculos da Companhia do Latão,
grupo pelo qual tenho uma profunda admiração – mas não são as minhas escolhas
que constituem o teatro brasileiro. Muitas experiências diferentes fazem parte
disso, várias que eu amo, outras que eu não gosto. E minha opinião não vale
mais que a de ninguém.
PÚBLICO – Eu sou estudante de direito
e quero ouvir um pouco mais sobre o Teatro Legislativo que você desenvolveu no
seu período de vereador.
BOAL – Quando entrei na Câmara do Rio
de Janeiro acontecia uma coisa que sempre me pareceu absurda: cada vereador
tinha direito a 25 assistentes, além dos quais ele podia chamar mais 10 do
serviço público. Então, eu tinha 35 pessoas à disposição. Fiz, então, com que a
maior parte dos meus colaboradores fosse gente de teatro. Isso causou um grande
escândalo dentro da Câmara: às vezes os outros vereadores passavam e nos ouviam
cantando e tocando música no gabinete. Eles abriam a porta e perguntavam: “o
que estão fazendo?!”. “Não está vendo?”, eu dizia, “estamos trabalhando”.
Quando sabíamos que algum projeto errado seria vitorioso, que alguma lei
estúpida seria aprovada, nosso grupo se recusava a participara da votação e
como protesto nos dirigíamos para a frente da Câmara onde encenávamos uma
sessão simultânea. Do lado de fora a lei iníqua era simbolicamente reprovada
através de um evento teatral em que a população participava. No geral, o que
mais fazíamos era a realização de atos políticos junto a comunidades, que
desencadeavam discussões dos problemas. Após um espetáculo, no debate, alguém
anotava as ideias que surgiam. Depois disso fazíamos diálogos
intercomunitários, entre grupos diversos, para que pessoas com situações de
opressão diferentes pudessem criar uma rede de solidariedade. Com base nessas
avaliações iniciávamos ações de outro tipo, algumas diretas e urgentes como
levar o caso a secretários ou ao prefeito. Ajudávamos também na abertura de
processos jurídicos, o que se facilitava pelo fato de eu ser presidente da
Comissão de Direitos Humanos e dispor de uma equipe de advogados. E, num
terceiro caso, surgiram os projetos de lei. O Teatro Legislativo produz
intervenções políticas, legislativas, jurídicas a partir de uma consciência
despertada pelas várias formas do Teatro do Oprimido.
PÚBLICO – Na sua opinião o teatro é
um lugar privilegiado para a conscientização política?
Dentro de cada um de nós existe o ator que atua e o
espectador que observa: nós somos teatro.
BOAL – O que eu procurei fazer nos
últimos anos, em vários lugares do mundo, foi sempre incentivar as pessoas na
sua luta necessária pela transformação da sociedade. Talvez seja isso que você
chama de conscientização e eu prefiro chamar de luta necessária. Algo que
ninguém vai fazer por nós. E eu insisto em dizer: a liberdade que é outorgada
pode ser retirada, mas aquela que se conquista é mais difícil de se retirar. É
essa a que interessa. E nessa luta o teatro é muito útil porque é a soma de
todas as linguagens artísticas. O absurdo é que não seja usado! Dentro de cada
um de nós existe o ator que atua e o espectador que observa: nós somos teatro.
Essa capacidade reflexiva, essa coexistência de ser humano com o ser humano,
ator e espectador, é o primeiro elemento do que eu chamo Teatro Essencial. O
segundo está na linguagem. Na vida de todos os dias, amamos, odiamos, sofremos
emoções variadas. Em relação a elas, o ator em cena não faz outra coisa senão
exercitar suas paixões. Na vida de todos os dias, pensamos, mobilizamos ideias.
O ator em cena não faz outra coisa senão expressar pensamentos pelo diálogo e
movimento. Na vida de todos os dias, usamos a voz de acordo com a pessoa com
que estamos falando. A voz muda conforme afetos e desafetos, assim como as
inflexões que o ator imprime em cena. A única coisa que o ator tem a mais que
qualquer um de nós é a consciência do uso da linguagem. O terceiro elemento do
Teatro Essencial é esse que se realiza aqui nesse instante. Quando eu falo e
recebo uma atenção muito grande de vocês eu me sinto poderoso porque se cria
nesse espaço um outro espaço. Seja qual for a força de cada um de nós, no
instante em que subimos em cena ela é multiplicada. Quando vocês,
voluntariamente, ficam sentados e diminuem a necessidade de ação, fazem com que
sua energia psíquica se concentre no aumento da atenção. E ela se projeta na
atuação. Nós podíamos estar na praia. Se vocês todos estivessem olhando para
cá, eu teria essa força de teatralidade. Então, sinteticamente, vocês (e todos
nós) são teatro, falam teatro, produzem teatro. O Teatro do Oprimido é a
constatação desse fato: ser teatro é ser humano, ser humano é ser teatro. As
duas coisas são a mesma. Não existe uma sem a outra. Ensinar isso é uma tarefa
importante do artista. Fazer a sua arte, claro, porque dá um prazer enorme ser
diretor de teatro, escrever uma peça, entrar em cena. A esse prazer não devemos
renunciar nunca. Mas a ele acrescentar um outro prazer – igualmente enorme –
que é o prazer de ensinar a fazer. Como dizia Paulo Freire, sempre que se
ensina, alguma coisa se aprende. E só se ensina quando se aprende. A velha
lição transmitida a um novo destinatário implica um novo aprendizado. É o
aprendizado do ensinar a fazer, uma das grandes possibilidades da arte.
Como dizia Paulo Freire, sempre que se ensina, alguma coisa
se aprende. E só se ensina quando se aprende.
PÚBLICO – A televisão e a cultura de
massa são muito influentes na educação da sociedade. Até que ponto o teatro
consegue combater esse poder tão grande?
BOAL – Para essa questão eu costumo
sempre responder a mesma coisa: eu acho que o teatro é apenas um instrumento.
Como tal, ele não tem poder nenhum. Quem pode ter poder é quem o utiliza.
Nenhuma chave abre a porta. Quem abre a porta é a pessoa que empunha a chave. O
teatro é instrumento de possível conhecimento e transformação da realidade.
Extremamente poderoso na medida em que nós o tornemos assim. Cada ser humano é
capaz de fazer representações do real. E essas representações embutem visões
morais e políticas. Não existe representação que seja amoral e apolítica. É
preciso, portanto, muito trabalho para modificar as imagens prontas e criar
novas – que são as imagens do desejo sempre em movimento de se mudar o mundo
para melhor. É evidente que é um desejo poderoso, que pode tornar o teatro
poderoso. Mas é preciso que as pessoas possam.
Não existe representação que seja amoral e apolítica.
PÚBLICO – Pelo que me parece, o
Teatro do Oprimido se filia à trajetória da luta dos trabalhadores, oriundas de
um tempo em que as bandeiras e palavras de ordem eram mais claras porque a
chance de uma revolução era mais concreta. Mas esse processo revolucionário foi
abortado inclusive pelos erros de Stálin.
Então eu pergunto: qual é a filiação ideológica do Teatro do Oprimido? Não há o
risco dele ficar restrito à discussão de migalhas numa época toda
financeirizada, em que as gestões estão amarradas com a lei de responsabilidade
fiscal e com o compromisso de pagar dívidas?
BOAL – Mesmo sendo um movimento
teatral democrático, a atuação mais ampla do Teatro do Oprimido depende do
estabelecimento de parcerias, o que vale para qualquer teatro responsável
socialmente. Ao trabalhar, por exemplo, com o MST[ii]
não temos a ilusão que somos nós que vamos realizar a reforma agrária. O que
podemos fazer é apoiar o que deve ser feito: a ocupação das terras. Do mesmo
jeito, nós nunca iremos trabalhar para o inimigo. Nossos interlocutores são
grupos de favelas, grupos de luta contra a AIDS, movimentos sociais que têm uma
atuação muitas vezes ideológica e com a qual nós estamos de acordo. O que nos
cabe fazer é transmitir uma técnica. Nós não temos mais a pretensão da
bandeira, que sugere a imagem de alguém na frente e todos atrás. Já tivemos um
dia. Mas nossas ideias e desejos coincidem com os oprimidos, coincidem com os
negros, com as mulheres violentadas, coincidem com uma porção de despossuídos –
além dos clássicos camponeses e operários. Oferecemos uma consciência da
linguagem para aqueles com cuja luta nós estamos de acordo. Além disso, não
podemos generalizar a dificuldade de enfrentar a situação atual: existem governos
mais e menos entreguistas (eu não tenho o menor pejo de voltar a usar termos
que aparentemente foram banidos). Um governo como o de Fernando Henrique só
pode ser nomeado desse jeito: entreguismo. São eles que dizem “isso é coisa do
passado”, ou que “não existe mais esquerda e direita”, ou “a história acabou”.
Mas se a história acabou como explicar as torres derrubadas do World Trade
Center? Como explicar as manifestações contrárias ao imperialismo que os
Estados Unidos exercem no mundo? Tem muita gente interessada em que não se
produzam esclarecimentos históricos.
PÚBLICO – Eu gostaria de saber se as
técnicas do Teatro do Oprimido tem utilidade no teatro convencional?
Teatro é essencialmente a dicotomia que nós carregamos: é a
linguagem das nossas relações e o espaço estético que criamos. E isso pode
aparecer em qualquer forma.
BOAL – A experiência registrada num
livro como Jogos para atores e não
atores nasceu de anos de prática no Teatro de Arena. Se considerarmos o que
eu chamo de Teatro Essencial, não existe uma separação rígida entre Teatro do
Oprimido e o teatro de palco. É por isso que as mesmas técnicas podem servir na
montagem de espetáculos. Quando eu fiz a Fedra[iii]
com a Fernanda Montenegro, eu utilizava a técnica do Teatro Imagem: eu pedia
aos atores que criassem imagens de como cada personagem via sua família, ou o
amor – imagens físicas que influenciaram diretamente a encenação. Há dois anos
mais ou menos eu trabalhei com a Royal Shakespeare Company. Eu experimentei com
eles as técnicas introspectivas do Teatro do Oprimido, procedimentos muito
elaborados e sofisticados que permitem visualizar e teatralizar conflitos
subjetivos que estão na cabeça das pessoas. Esses conflitos não podem ser
contados, apenas teatralizados. De certo modo, escrevi o livro o Arco Íris do
Desejo – que trata dessas técncias – com os atores oficiais da Royal
Shakespeare Company num trabalho sobre as personagens do Hamlet. Eu me lembro
da cena em que a Ofélia devolve ao Hamlet os presentes que recebeu dele. O mais
comum nas montagens e filmes é que Ofélia seja representada como uma pessoa
dócil, obediente. Mas não é preciso ir muito longe para perceber que lá dentro
do coração nenhuma mulher é dócil e obediente. Toda mulher tem um vulcão
interno, e se ele não se manifesta é porque a coerção do lado de fora é grande
demais. A técnica do “Arco Íris do Desejo” que dá nome ao livro nos ajuda a ver
que a relação de Ofélia com Hamlet tem várias cores: o grande amor que ela
tinha por ele, a admiração, o medo de perdê-lo, o ódio tremendo que ela sentia
por alguém que dizia estar apaixonado e que renega subitamente tudo. A partir
desse espectro de desejos contraditórios, a cena ficou tão explosiva que quando
Hamlet diz: “Vai para convento!” é por estar apavorado com ela. Teatro é
essencialmente a dicotomia que nós carregamos: é a linguagem das nossas
relações e o espaço estético que criamos. E isso pode aparecer em qualquer
forma.
PÚBLICO – Se você fosse fazer uma
autocrítica sobre o Teatro do Oprimido, que aspectos ainda precisariam ser
desenvolvidos para uma maior força de atuação?
BOAL – Nós temos discutido muito a
necessidade de fazer avançar as nossas técnicas. Mesmo tendo ido muito longe,
percebemos que temos problemas em algumas áreas. O trabalho com o texto é uma
delas. Todo mundo sabe que a palavra é uma espécie de invenção que não existe:
ela é um risco traçado no papel ou um som feito com a boca e as cordas vocais
sem materialidade corpórea. Justamente por ser assim tão flexível ela é uma
espécie de caminhão: pode-se pôr a carga que quiser na palavra e ela muda de
valor. A conotação pode ser contrária ao sentido original conforme valores
atribuídos pela circunstância ou entonação. Você pode dizer para a mulher “eu
te amo” e ela sair correndo porque você falou “eu te amo” de um jeito que a
assustou. São caminhões que carregam uma emoção ou uma história. Essa é uma
área em que precisamos avançar, em que temos trabalhado às vezes de modo
genérico. Já faz algum tempo que estamos trabalhando com mais cuidado literário
junto a nossos grupos de colaboradores. Uma outra frente é a da imagem, física,
cênica. Ela é também uma linguagem. Sempre digo que podemos calar a boca, mas
não o corpo. Se a palavra nos exercícios precisa ser mais necessária e rica,
assim como as imagens, é porque o conjunto do trabalho se aproxima de uma
reflexão sobre a própria metáfora. Faz algum tempo que estamos tentando não
contar diretamente as coisas, buscando transposições menos literais, mais
simbólicas. Para falar das coisas de hoje às vezes é preciso essa volta
metafórica. São caminhos antigos que precisam ser reabertos.
PÚBLICO – Minha pergunta é sobre a
sua experiência com o teatro épico de Brecht. Gostaria que você explicasse um
pouco também sobre o distanciamento do ator para com a personagem.
BOAL – Quando eu vim para São Paulo
ainda trabalhava por aqui um maravilhoso palhaço de circo chamado Piolim. Era o
ator mais brechtiano que eu já vi: criava a personagem e a mostrava para o
público. O Efeito-V – que tem em alemão um nome ameaçador, Verfremdungseffekt – era praticado por Piolim quando fazia o
espectador ver que a personagem é um e ele outro, demonstrando a relação entre
um e outro. Quando alguém conta uma piada, seja de que nacionalidade for,
sempre ocorre um distanciamento do caso: o japonês que se chama Manuel é um
outro que não eu, é um objeto. Basicamente é isso. Mas a genial invenção é
pegar uma coisa extremamente simples e torná-la uma ferramenta de trabalho, é
nos fazer ver algo que passava despercebido na nossa frente e dar-lhe um sentido
novo. Em 1960, olha que o tempo já vai longe, eu escrevi a peça Revolução na
América do Sul. Era um momento em que Brecht ainda não era muito conhecido no
Brasil, mas estava começando a ser. E nós estudávamos muito sua obra no Arena,
e incorporávamos vários princípios como a interrupção da ação, a interferência
da música narrativa. Foram princípios que eu re-elaborei à minha maneira. É
claro que fui influenciado pelo Brecht nesse momento. Eu não gosto muito de
falar em influências porque isso pode dar a ideia que existe uma linha direta,
quando na verdade são muitas as influências a que estamos sujeitos. Na época do
Seminário de Dramaturgia do Arena estudávamos muitos autores, dos gregos aos
contemporâneos. Tínhamos aulas com professores convidados como Anatol
Rosenfeld, Décio de Almeida Prado, Sábato Malgadi. Junto com eles veio Brecht –
e veio com a força de um reconhecimento mundial. Mas na conta das minhas
influências, o importante é que elas foram boas.
Imagem do site do Instituto Augusto Boal |
[i]
Nessa palestra, Augusto Boal leu a primeira versão do artigo “O teatro como
vida e a vida como teatro” publicado no livro O Teatro como Arte Marcial, Rio
de Janeiro:Garamond, 2003 e contou a história de uma experiência teatral
desenvolvida com empregadas domésticas, relatada no mesmo volume com o título
“A mulher no espelho”. A síntese aqui apresentada, entretanto, guarda algumas
diferenças significativas das duas elaborações posteriores, o que justifica sua
publicação. (N.O.)
[ii]
O MST, Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, é o mais atuante movimento
de luta pela Reforma Agrária no Brasil. (N.O.)
[iii] Fedra,
de Racine, montagem de 198???
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