domingo, 31 de julho de 2016

MULHERES NO TEATRO DE GARCÍA LORCA

Mulheres que lutam. Do civil no teatro lorquiano.
Por Lorenzo Spurio
Publicado em 30 de março de 2016, em http://www.lamacchinasognante.com/ com o titulo: 

Donne che lottano. Del civile nel teatro lorchiano

Tradução de Claudia Venturi

Lorenzo Spurio - foto da matéria original

Lorenzo Spurio nasceu em Jesi (Ancona/Itália) em 1985. Publicou Antologias poéticas entre 2014 e 2016, coletâneas de narrativas entre 2012 e 2015, críticas literárias entre 2011 e 2015 e ensaios sobre poesia italiana contemporânea, em 2015. Em 2011 fundou a revista online de literatura «Euterpe». É Presidente do Prêmio Nacional de Poesia “L’arte in versi” / Jesi e Presidente do Júri nos prêmios literários “Città di Fermo”, “Città di Porto Recanati”, “Poesia senza confine” (sez. dialetto) di Agugliano. Foi finalista na 27ª edição do Prêmio de Literatura Camaiore – Obra Prima com Neoplasie civili (2015) e o 1° prêmio pela poesia individual no Concurso Internacional “Città di Ancona” organizado pela Associação “Voci Nostre” (2016).









Mulheres que lutam. Do civil no teatro lorquiano.

Quando Federico García Lorca foi assassinado, o vislumbre da morte já velejava há alguns meses sobre toda a Espanha. As milícias antinacionalistas, infiltradas em um impreciso e muito amplo grupo republicano em tempos variados, se tornaram responsáveis por ataques diretos, saques, violências e verdadeiras represálias não raramente até em ambientes religiosos. Muitos homens caíram nos primeiros meses daquela que rapidamente seria transformada em uma das mais conhecidas guerras civis da Velha Europa. Se não a mais longa, sem dúvida uma das mais sanguinárias e hediondas. Poucos dias antes, no qual o corpo do poeta de Granada, como atraído pela lógica tremenda de quem ergueu o ódio entre os iguais em condições imprescindíveis para um (pseudo) renascimento, rompia cada vínculo com o mundo natural e se tornava um corpo ausente (para invocar uma expressão sua, empregada no Llanto por Igncio Sánchez Mejías, composição da queda e da saudade que leva a um sentimento forte de real niilismo), García Lorca tinha perdido o amado cunhado, Manuel Fernández Montesinos que, como Prefeito vermelho[i] da cidade de Granada, havia caído precocemente pelas atrozes vinganças dos republicanos. Um luto grave, imprevisto enquanto o clima de ódio e de violências transversais estivesse na ordem do dia, que atingia não só a Capital, onde se discutiam questões e onde o Rei já tinha deixado o seu posto, sem abdicar, da função da Segunda República[ii], mas no ambiente da província, naquela Granada do desencanto e do idílio que o poeta havia cantado em obras memoráveis, quais Suítes e Cancioneiro Cigano.

Federico García Lorca - foto em queerblog.it


Uma Granada na qual, embora o poeta tenha movido os primeiros passos em direção do ambiente campestre e a profundidade de um mundo popular ligado à vida dos campos rico de oralidade e nas suas tradições, deveria residir um certo sentimento de tristeza em Lorca que, de fato, em uma poesia falava da “tristeza remota”, da “tristeza nativa” e de uma “infância intranquila”. Trata-se – hoje podemos dizer, tendo em viva consideração o seu percurso literário e humano – de uma abertura ao universo íntimo que o poeta nos permite em chave lírica, a via expressiva mais agradável para ele, na qual, aliás, não é difícil identificar uma personalidade realmente suscetível e problemática, fortemente introspectiva, em um certo sentido particularmente útil até mesmo para os historiadores e os biógrafos para a construção de um claro retrato falado das atitudes.
Como se observará neste texto, toda a atividade literária de Federico García Lorca girava em torno de um grande amor no confronto com a palavra, consciente de que nela reside um potencial evocativo e socialmente importante. A literatura lorquiana possui, de fato, o gosto do simples: o ambiente do campo, as vicissitudes dos animais que parecem dialogar entre eles com extrema verossimilhança, as relações familiares e as lógicas de contraste que se instauram no mundo da província quando a intriga e a mancha da honra tomam à dianteira, de modo que se tornam variáveis capazes de traçar o destino do homem.
Na nutrida literatura dramatúrgica de García Lorca – pouco conhecida, mas que o torna um dos maiores escritores de teatro do século passado – ele colocou em evidência alguns assuntos de difícil trato para os seus tempos com dois objetivos fundamentais: o primeiro era a sua convicção de que o teatro não é outra coisa se não poesia que “se eleva dos livros e se torna humana”[iii] e o segundo era  sua coparticipação sentida nas condições de desconforto do homem. Célebre são as suas palavras nas quais afirma que a sua colocação na sociedade será aquela dos que estão ao lado dos excluídos[iv]. Sobre isto ele testemunhará com a sua atividade literária, com o seu espírito pacato e sensível (se recorre à literatura memorialística em apoio ao que se diz por meio da qual é possível definir o autor não enquanto literato, mas enquanto homem na riqueza de seus dotes e da forte caridade).
No campo teatral, García Lorca demonstrará, desafiando com a cabeça erguida, a ideologia reacionária que logo controlaria e eliminaria diferentes posicionamentos, enquanto o seu vínculo com o outro (aquilo que hoje nós definiríamos como uma ideia simplista e preconceituosa de “diferente”) fosse sentido e radicado na profundidade das crenças, na empatia das relações, na grande confiança em um mundo de compartilhamento. García Lorca não foi um dos tantos utópicos a esperar que se pudesse obter o fim da barbárie em um país, como o seu, onde a luta armada era apenas iniciada. Não foi sequer um indiferente, um daqueles que julga de acordo com a conveniência e com as situações que se apresentam, de tomar determinadas posições ou de favorecer a sua aproximação a certas tendências das quais se distanciaria, talvez, em um segundo momento. A natureza definidamente solidária do homem, a sua fiel subordinação ao mundo popular, guardião dos arcanos e das leis da natureza, a erudição permitida até com a participação na Residência dos estudantes de Madri, o seu vínculo direto e inseparável com a música popular (Manuel de Falla) e o folclore andaluz (a tradição cigana), o irmanamento ao mito das águas, a religiosidade destemperada, mas viva, como possibilidade, a profunda amizade com Fernando de los Ríos (1879 – 1949)[v], são apenas alguns dos elementos que, junto com a ideia-genialidade do teatro itinerante de La Barraca, fez dele um homem distintamente de esquerda, próximo às intenções e opiniões de uma equipe política que, na Espanha, naquele período era muito complicada porque subdividida em partidos pequenos, frequentemente sem guias carismáticos.
Se bem que no curso da história houve, e persiste ainda nos dias de hoje, quem sustentasse que o autor não era de esquerda, nem vermelho perigoso (como diziam os membros da Falange que depois o assassinaram) não é possível enfrentar discursos relativos à figura do poeta se não se abstrair isto. O autor não era, de fato, estranho a atividades conduzidas por ambientes ligados à esquerda (de matriz marxista, inclusive), existem provas de assinatura colocada em numerosos manifestos que foram elaborados na época contra a autoridade fascista no país e fora dele. Recordando, de fato, a sua assinatura no manifesto que muitos intelectuais subscreveram contra o despotismo de Salazar no país vizinho, Portugal. Por essa filiação a uma ideologia adversa e muito perigosa, a comunista, o autor seria logo estigmatizado e afastado dos ambientes aos quais a classe conservadora, que estava adquirindo um forte prestígio, não considerava mais a sua presença idônea. Até mesmo La Barraca, seu projeto idealizado junto a Eduardo Ugarte voltado a levar aos pequenos centros campestres o teatro diretamente ao ar livre, como acontecia antigamente, passou a ser mal visto pela direita que via nesta atividade uma intenção voltada à doutrinação comunista.
Por estas razões (poderíamos relatar muitos outros exemplos reevocando momentos documentados) García Lorca, de amigo dos excluídos e de excluído que era ele mesmo por ser homossexual, torna-se logo um inimigo público. A sua personalidade, tão pronunciadamente diversa e subversiva, que não se submetia ao código de conduta estabelecido pela classe fascista, imoral e despreconceituosa era o sinal de uma erva podre recém-nascida que deveria ser subitamente extirpada de modo que o bom gramado não viesse a sofrer. Se antes eram o desprezo e o tédio o que recebia dos ambientes de direita, agora ele passava a ser vigiado porque era, precisamente, considerado um meio eficaz de uma propaganda política que não o consentiriam de fazer. Transformada em domínio público, a baixa consideração que ele tinha para as direitas, que o consideravam um depravado, uma “bicha” e um espião russo, o evento que provavelmente seria o mais deprimente para ele acontece na estreia de Yerma, em dezembro de 1934, no Teatro Espanhol de Madri.
Naquela circunstância, a plateia “de bem” de uma classe social abastada, mas indigna, protestou com impetuosidade desde a abertura, que durante a representação o provocou, todos apontando para depreciar a sua condição de homossexual, provinham de expoentes de uma direita arcaica e obtusa, extenuantes defensores de imagens sacrossantas como o respeito e a honra que, de qualquer modo, o autor com a sua obra havia colocado em discussão. A atriz que interpretava Yerma, a amiga Margarita Xirgu, não foi poupada de ofensas públicas nas quais gritavam que era lésbica (fato sobre o qual até hoje permanece em certo mistério, tendo sido ela mulher casada e sem filhos, mesmo existindo documentos de um neto que dizem nunca ter sabido de sua condição). Federico e Margarita não se abalaram muito pelos gritos antipáticos lançados a eles e, no dia seguinte, saíram nos vários jornais críticas em um tom muito diferente. Todos os jornais próximos à direita denunciaram publicamente a gravidade de uma obra como Yerma, descrevendo-a como inoportuna e imoral, não só pelo bem comum, mas também pela Igreja e porque ameaçava o sentido arcaico e devoto da tradição. O acontecimento teve, contudo, um alcance de tal forma ruidoso que, de qualquer forma, assinalou de maneira muito nítida o consistente périplo de ódios e atrocidades aos quais o poeta havia sido submetido nos últimos meses.
Após colocar em cena a personagem de Mariana Pineda, uma heroína de Granada que, movida pelo amor ao seu homem, desafia a autoridade do Rei e prefere morrer a ceder as suas chantagens, e Yerma, a imagem da mulher insatisfeita que enlouquece pela falta de um filho e pelo clima pesado de indiferença e submissão por parte do marido, que acaba matando, a sociedade espanhola não estava muito disposta a aceitar outras representações que enlameariam cenicamente a moral e destruiriam os pilares sobre os quais o respeito e o sentido da família se conservavam naquele tempo, de modo muito mesquinho.
O autor, enquanto isso consegue compor A Casa de Bernarda Alba, um drama rural que, sozinho, seria considerado como o terceiro capítulo daquela trilogia dramática da terra de Espanha. Não consegue, porém, vê-la representada porque é capturado e executado. Nesta obra o autor propunha um outro personagem escandaloso (aos olhos dos conservadores), a jovem Adela que, não aceitando as rígidas restrições da tirana mãe, consegue amar um homem, escondido.
A mulher que García Lorca pinta com essas suas obras não é tanto uma mulher fogosa que procura espasmodicamente pelo ato sexual e a satisfação de uma necessidade efêmera, a do prazer, mas é uma mulher muito profunda, que acredita no juramento de amor ao qual não está disposta a abrir exceção. Por isso Mariana Pineda chega a colocar em perigo a sua pessoa para que pudesse proteger o homem que ama, um conspirador. Mas no final ela morre por ter permitido a conspiração e não aceitar ceder aos interesses sexuais do Alcalde del Crimen que poderia lhe conceder a anistia. É preferível a morte à honra. O anulamento do corpo é preferível à sua contaminação. O direito de decidir vence sobre a obrigação de ser subjugado aos poderosos. Por isso Adela não deixa de fazer valer as suas razões em uma casa onde a luz não entra nunca e parece um monastério de clausura. Veremos ela chamar a sua mãe, replicá-la, e manter a razão mesmo se não consegue sair daquele reino das sombras porque é a própria sociedade da qual o autor nos fala que ainda não é aberta para o novo, para as exigências de um mundo justo e imparcial que garanta os direitos e uma igual consideração para com a mulher. Se Adela ao final da obra morre deixando uma dor que não é assim e que logo será substituída pela ritualidade enfadonha das irmãs. Estas últimas são conscientes (pelo Martírio) de que ela teve mais sorte do que elas (Dichosa ella). Sorte não apenas por ter conseguido amar a um homem (que é o desejo que todas têm), mas, sobretudo, por ter sido de tal forma sábia e voluntariosa em contestar a mãe, com impetuosidade e astúcia, coisas que elas não têm.
De Yerma os otimistas ligados à ideologia reacionária não fizeram mais do que sublinhar a imoralidade e a perversão da personagem feminina a despeito da mulher que, contrariamente a todas as entediantes advertências do marido por todo o percurso da obra, não faz nunca algo de inapropriado. Nem quando uma velha bruxa profetiza que para poder ter um filho talvez fosse melhor que engravidasse de outro, Yerma consegue se satisfazer. Apesar da necessidade trôpega, um filho e essa maternidade perdida seriam a causa de sua loucura, a mulher não é capaz – diferentemente de Adela que representa a personagem feminina mais rebelde – de violar o pacto de honra. Ou seja, exclui a priori a possibilidade de uma traição conjugal para seguir o seu objetivo de maternidade porque aquilo – independente da notícia se difundir ou ser conhecida apenas por ela – representaria uma ofensa vergonhosa no confronto de seu código de respeitabilidade, da sua honra, mostrando-se então, diferentemente de Adela, uma mulher que sente muito o inconveniente de sua necessidade, mas que não tem força ou iniciativa para concretizar as suas vontades.
As três mulheres, das profundezas de dores não redimidas, de pessoas privadas de afetos e considerações, tornam-se três vítimas sacrificiais do poder patriarcal e ditatorial: Mariana Pineda será executada por ter sido uma conspiradora, Adela se suicidará após receber a falsa notícia da morte de seu amante e Yerma estrangulará o seu marido tornando-se, ao mesmo tempo, uxoricida e infanticida do filho que nunca teve e que, matando o seu companheiro, de fato não poderá nunca mais o ter.
Três histórias de mulheres sozinhas e atormentadas, onde a solidão e o tormento são companheiras ancestrais de um contexto dominado por atitudes preconceituosas, potentes tabus, fofocas, rumores e vozes do povo que, como um grande e único personagem, contribui claramente para escrever, de maneira muito trágica e fatalista, os destinos do enredo. Aquilo de cruel que acontece, acontece porque não pode acontecer nada que suavize a situação. O poder patriarcal, a carga de virilidade e de machismo do homem não podem ser contraditos nem anulados, a mulher deve conservar a sua posição doméstica relegando a sua existência a casa e à prole (quando houver), mas isso se torna muito mais limitante pelo fato de que a casa, que é o único ambiente concedido a ela de habitar, é frequentemente uma cova intestina de ódios, incompreensões e indiferenças que não as permetem de serem escutadas ou interpeladas de modo saudável e sem um tom ameaçador.
Mariana, mesmo vivendo com os seus filhos e com a mãe, na prática, é como se vivesse sozinha, arrancada do ambiente familiar no qual está inserida, nem por isso esquecendo-se de proteger a prole, enquanto a mãe está pronta para reprová-la. Trata-se, de qualquer forma, apenas da cena inicial desde então a mulher encontrará refúgio em outra casa e depois, na parte final, a encontramos na prisão pelo crime de conspiração.
Adela vive em uma casa que não é a sua porque, como representa o título da obra, é a de “Bernarda Alba” e não da família Alba. Ela, como as suas irmãs e a pobre avó, não fazem nada além de contribuir para aumentar numericamente a presença do núcleo familiar, mas no interno não existem vínculos afetivos ou amistosos. As cinco irmãs estão em eterna luta e competição entre elas e não perdem a oportunidade de se desmentirem em frente à mãe ou de mostrarem-se disponíveis e subalternas a ela, quando na verdade todas a odeiam, umas mais, outras menos. Dos pais Adela não recebe nada: o pai está morto, a mãe é uma terrível viúva que dá ordens ao seu prazer, sem ouvir a opinião dos outros. A família transmite em sentido muito autoritário o respeito incansável à autoridade (a mãe), a obediência muda, o respeito das ordens e a observância das proibições, a punição verbal e corporal frente às atitudes que não respeitem a autoridade, a honra, a religião, a tradição e as convenções intolerantes e emboloradas.
A casa onde vive Yerma, em última análise, é muito fria e estéril. Habitada só por ela e por seu marido que a deixa praticamente só em grande parte do dia, quando ele está envolvido nos trabalhos dos campos. Embora a vizinha vá frequentemente encontrá-la e falar com ela, Yerma é uma mulher muito sozinha, que vive a sua solidão de maneira dramática e oprimente. Por estas razões o seu ânimo e a ordinária convencionalidade a sugere que a sua, para ser efetivamente uma família, precisa de prole. Ou seja, de algazarra, de calor, de maior atenção. Todas as coisas que são mal vistas pelo marido, interessado só pelo trabalho e pelos ganhos e que não conhece as leis do afeto: não por culpa sua, mas porque nunca ninguém o transmitiu.
Se García Lorca não tivesse sido morto com certeza teria continuado imperturbável com o seu percurso já iniciado, ou seja, aquele de se ocupar com os excluídos, de usar o seu talento para dar voz às exigências represadas de quem, não tendo poder e não sendo um homem, seria silenciado ou censurado. Sabemos de fato que havia iniciado a obra Os sonhos de minha prima Aurelia da qual nos restam poucas partes e onde, entre outras coisas, se delineia uma relação entre um garotinho que deseja namorar uma mulher bem mais madura do que ele. Bem intuímos, mesmo sem saber muito sobre toda a história da obra que ele estava escrevendo, que uma cena como essa, na qual simplesmente (talvez até infantilmente) um garoto se mostra atraído e interessado por uma mulher mais velha do que ele, teria sido interpretada pelo ambiente reacionário espanhol como extremamente perigoso, desmedido e imoral. Um pouco como seria o drama que ele escrevia, centrando os acontecimentos em torno a um fenômeno de incesto. Obra que parece nunca ter sido trabalhada por García Lorca, se não esboçando um possível título, por causa de sua morte prematura.
Aquilo que García Lorca procurou fazer com o seu teatro de investigação social foi uma tentativa muito previdente e necessária que, se no momento foi vivida como depravada e imoral, no tempo mostrou a sua validade e eficácia. As suas obras, como alguns documentales fotográficos, nos permitem hoje, pouco menos de um século após terem sido escritas, calar-nos naqueles contextos, naqueles cenários populares dos quais lê, dos quais os códigos formantes eram tão duros e implacáveis, privados de um desenho de igualdade e democracia. García Lorca de maneira muito profética, com as suas obras, levou a luz a pobre mulher ignorada por todos possibilitando-a de ter voz, declamar a verdade e celebrar as melhoras de sua condição, se estes impulsos da consciência ocorrem no desinteresse e no estar sendo ouvida por parte da comunidade. Mostrou, simultaneamente, como sendo necessário que alguém abrisse a nova estrada para ser percorrida, exigisse o direito ao respeito e a dignidade, instituindo um modelo crítico saudável, ativo e útil, precisamente, para o crescimento. Em outras palavras, García Lorca, primeiro como tema literário e depois como motivo existencial, como os novos mártires, fez com que os seus heróis contemporâneos não fossem sujeitos que possuem dotes milagrosos e especiais, mas, ao contrário, fossem homens simples, do povo, que conseguem, mesmo em sua limitada erudição e conhecimento do mundo, ter consciência de sua condição não igualitária.
A morte de Lorca, não é nada mais do que a última manifestação e o capítulo conclusivo daquele ciclo comprometido com a construção de uma pluralidade dividida, que abre ao consenso e a discordância com os meios democráticos da palavra e do respeito. De um certo modo, o autor vestiu os trajes de Mariana Pineda, fazendo-se cantor de ideias liberais, respirou a asfixia dos ambientes negligenciados e preconceituosos, sofrendo a impossibilidade de se fazer ator (e não espectador) da história, se solidarizando com a bela Adela à procura de sua liberdade sexual (Adela diz querer amar quem lhe fale ao coração, exatamente como García Lorca quer se sentir livre para amar os companheiros do seu próprio sexo). O autor também tem em si aquela energia que Yerma obtém em uma fase de obscurecimento da razão, que segrega enfim o seu marido, liberando-se de seu mal.
Faz-me pensar, então, que toda essa mistura de fel e veneno, de ódios e ameaças, de ofensas e serviços mentais, de difamações à sua arte e de vividas apreensões ao seu destino o autor a tenha, em um certo modo frustrado não com o ato da morte a qual, barbaramente, é constrangido, mas com a sua literatura muito comprometida e de cunho civil. As palavras permitem o diálogo enquanto as armas alimentam as distancias e inflamam os rancores.
A grandiosidade o teatro de Lorca está exatamente na tensão cívica que delimita aos vários acontecimentos que atraem o leitor atento a uma verdadeira coparticipação dos fatos. García Lorca não ensina em qual lado se posicionar na luta, mas nos sugere que frequentemente essa luta se sustenta nas bases de expectativas erradas ou ideológicas que rebaixam a alma de um povo. Por estas razões acredito que não seja apenas útil, mas também necessário ler as tramas dos textos teatrais do autor, desnudando-as de determinações espaço-temporais, examinando-as como condições-tipo para uma análise mais precisa sobre os mecanismos mentais, sobre como a luta ideológica e a supremacia do pensamento conduzam sempre a erros graves, frequentemente irrecuperáveis. A rebelião e a revolta, então, que García Lorca de qualquer forma representa com os seus personagens que não se adéquam à sociedade e que se distinguem dela para serem porta vozes de uma nova visão das coisas, é um meio eficaz que pode focalizar as problemáticas, torná-las claras, permitir uma maior solidarização que possa empreender um percurso biunívoco na expressão das ideias para que o inflexível e despersonalizante domínio dos pretensos poderes permaneça uma lembrança pálida.
Los relojes llevan la misma cadencia
Y las noches tienen las mismas etrellas.

García Lorca nos presenteou com noites que nem sempre possuem as mesmas estrelas. Mesmo se os relógios seguirem todos a mesma trajetória entoando um tempo que é menos real do que o próprio céu.




[i] O prefeito pertencia ao partido socialista que, diferente daquele espanhol que nunca teve grande participação, representava uma das principais almas do grupo republicano.
[ii] Como se sabe, o Rei Alfonso XIII deixou o País sem abdicar, em 1931 quando foi proclamada a Segunda República. A guerra civil combatida de 1936 a 1939 levou ao poder Francisco Franco, proclamado Generalissimo e Chefe das Forças Armadas. Quando Franco, já idoso, escolheu a regência para a Espagna depois que fosse morto, indicou Juan Carlos, neto de Alfonso XIII, como seu successor. Com a morte do Generalissimo, em 1975, o poder passou para as mãos de Juan Carlos que “restaurou” a monarquia e se tornou Re Juan Carlos I.
[iii] El teatro es la poesía que se levanta del libro y se hace humana. Y al hacerse, habla, grita, llora y se desespera. El teatro necesita que los personajes que aparezcan en la escena lleven un traje de poesía y al mismo tiempo que se les vean los huesos, la sangre. Han de ser tan humanos, tan horrorosamente trágicos y ligados a la vida y al día con una fuerza tal, que muestren sus tradiciones, que se aprecien sus olores, y que salga a los labios toda la valentía de sus palabras llenas de amor o de ascos”.
[iv] “En este mundo yo siempre soy y seré partidario de los pobres”.
[v] Homem político socialista, foi algumas vezes ministro nos governos da República. Federico era profundamente ligado a ele e estimava as suas qualidades de grande pedagogo, âmbito pelo qual foi um dos principais defensores de um novo modelo de ensino, uma verdadeira reforma que renovou o sistema educacional atrofiado da Espanha, tradicionalmente enxarcado de religião. Representou um dos adversários principais da Falange e dos nacionalistas durante o conflitto civil, tanto que alguém chegou a sustentar que o assassinato de García Lorca foi um instrumento para atingir o próprio Fernando de los Ríos que, diferente do poeta, era um político e então um homem publicamente alinhado com a esquerda.

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