Dario Fo
Estudo, agora transformado em livro, mostra como o
dramaturgo italiano garante a perenidade do teatro político.
Mário Viana - é um jornalista e dramaturgo
brasileiro, formado em jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero. Trabalhou no
jornal Folha de S.Paulo, na revista Veja, edição São Paulo, foi editor de
turismo do jornal O Estado de São Paulo. – Publicado no site da Revista
Pesquisa/FAPESP - ED. 84 | FEVEREIRO 2003
Mário Viana - foto do site Geogities.ws |
Sozinho em cena, o homem de
roupas escuras fala sem parar, gesticula bastante e arrasta multidões. Aos 77
anos[i], mantém como que
hipnotizadas plateias de até 8 mil pessoas num só espetáculo. Sedutor como
poucos, transforma-se no melhor amigo de cada espectador, a quem narra pelo
microfone alguma história que parece ter acontecido ontem. Se uma pessoa na plateia
tosse, espirra ou deixa tocar um celular, o homem se aproveita do fato – e, sem
perder um só instante o fio da meada que vem tecendo, incorpora o inesperado à
narrativa, como se ambos fossem naturalmente interligados.
Dario Fo - foto do site nonciclopedia |
O público ri, aplaude, delicia-se
com o italiano Dario Fo, mestre na precisão quase cirúrgica dos gestos e na
fabulosa arte de contar histórias. Ator, diretor, dramaturgo e, desde 1997,
Prêmio Nobel de Literatura, Dario Fo transformou-se também em objeto de estudos
de Neyde Veneziano, livre-docente em Teatro pela Escola de Comunicações de
Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Publicada pela Editora Códex, a
tese de pós-doutorado A Cena de Dario Fo – O Exercício da
Imaginação, que contou com o apoio da FAPESP, é o
primeiro estudo em português sobre o artista italiano.
Capa o livro de Neyde Veneziano - foto da Livraria do Teatro |
O primeiro feito da pesquisa de
Neyde Veneziano é jogar uma luz de estudiosa sobre o trabalho de um
profissional pouco afeito às teorias. Pesquisador incansável das origens da
comédia popular, Fo resgatou para a cena contemporânea elementos perdidos na
Idade Média – como os jograis, os contadores de histórias (ou racontadores,
como prefere a professora).
Neyde Veneziano - foto do site Jornal Imparcial |
Misturou esses estudos com signos
da comédia mais popular, daquelas feitas em circo, e jogou em tudo um forte
tempero político – forte o suficiente para marcar sua obra e vinculá-la ao
pensamento de esquerda. Para alguns, a postura politizada poderia ser a razão
de um certo envelhecimento do trabalho do dramaturgo: na Itália, algumas
universidades travam verdadeiras batalhas contra Fo e sua dramaturgia engajada.
Outros o acusam de falso revolucionário, pois defende teses de esquerda, mas
não dispensa a vida confortável, com Mercedes na garagem, joias e outros signos
do “luxo burguês”.
“Como autor, Fo percebeu a falta de espaço que havia para os
derrotados da História e decidiu dar voz a eles em seu trabalho.”
No Brasil, esse tipo de
implicância não pegou e ele tem aqui vários defensores. “Dario Fo é um desses
artistas que re-significam a tradição, à medida que a colocam em novo patamar,
dando-lhe atualidade, porém preservando dela os constituintes fundamentais”,
afirma Silvana Garcia, professora-orientadora no programa de pós-graduação da
ECA/USP. “Ele fez isso com a commedia dell’arte, com a tradição cômica medieval, com a mímica moderna, e a todas
essas heranças ele acrescentou a substância crítica política, o que o remete às
origens da comédia, a Aristófanes.” Para o diretor Antonio Abujamra,
responsável pelas primeiras montagens de Dario Fo no Brasil, o autor italiano é
imprescindível. “Ele é um arsenal de teatro popular”, afirma. “Como autor, Fo
percebeu a falta de espaço que havia para os derrotados da História e decidiu
dar voz a eles em seu trabalho.”
Antonio Abujamra - foto do site Bluebus |
Abujamra assinou duas direções de
textos de Fo, ambas no começo dos anos 80: Morte Acidental de um
Anarquista, estrelada por Antônio Fagundes e com casa
cheia durante sete anos; e Um Orgasmo Adulto Escapa do Zoológico, espetáculo que serviu de trampolim para o “teatro essencial” da
atriz Denise Stoklos. Em ambos – assim como em toda a obra do italiano – o
humor ácido é constante. “Dario Fo sabe que sem humor não é possível suportar o
planeta”, comenta Abujamra. “É impressionante, porque ele não é grande ator,
mas é um tremendamente bom contador de histórias.” Essa qualidade, Fo apreendeu
desde a infância, ouvindo os contadores do Lago
Maggiore. Com eles, o dramaturgo aprenderia a usar dialetos, a prestar
atenção aos movimentos da plateia, a usar da hipérbole e do surreal, a passar
de um personagem a outro mesmo contando uma história narrada na primeira
pessoa.
“Dario Fo sabe que sem humor não é possível suportar o planeta”
Talvez resida nessa chave um dos
segredos da permanência da obra de Fo. “Ele pesquisou a história dos gestos tão
profundamente que, hoje, quando está em cena, transforma o menor movimento numa
coisa enorme. Ele apenas mexe a mão e o teatro inteiro percebe o que ele está
contando”, afirma o ator gaúcho Roberto Birindelli. Há dez anos, Birindelli
percorre várias cidades – no Brasil e no exterior – apresentando o monólogo Il
Primo Miracolo, um dos textos mais engraçados e
críticos de Fo. Na peça, ele conta o desajuste que Jesus, acompanhado de José e
Maria, sentia quando ia brincar com crianças do Egito. “Ele fala de segregação
racial, de isolamento do estrangeiro, e é possível adaptar isso a qualquer
situação”, diz o ator, que fica sozinho em cena e representa 21 personagens.
Roberto Birindelli - foto da internet |
Esse é claramente um método Fo de
apresentação de espetáculo. Embora como diretor, ele saiba usar muito bem os
recursos fornecidos pela tecnologia, quando vai ao palco Fo prefere a limpeza
total de elementos. Só que, para chegar a essa simplicidade, ele trabalha –
trabalha muito. “Não existe musa inspiradora, que vem de noite e sopra versos
no ouvido do dramaturgo”, explica Neyde Veneziano. “É tudo técnica, muita
técnica, muita pesquisa.” O dramaturgo recebe ajuda de pesquisadores, digere o
que lê e monta um texto, que servirá apenas de guia para o espetáculo. No
processo de ensaios, gestos e voz vão ganhando vida e recebem acréscimos a cada
apresentação. “Em nenhum momento, Fo remonta um espetáculo do mesmo modo que
fez há dez, 15 anos. Ele muda, adapta, atualiza e perpetua.”
“Poucos atores hoje entendem que voz é corpo...”
Ao gesto, Dario Fo acrescenta o
uso requintado da voz. Nascido em um país onde cada cidade parece ter um acento
próprio, Fo percebeu que o bom contador de histórias capta a voz de cada
personagem no meio do povo. “Poucos atores hoje entendem que voz é corpo, que a
fala tem uma função poética e que ela só se realiza com o uso de um elemento
concreto, que é o som”, afirma a professora Sarah Lopes, responsável pela
cadeira de Expressão Vocal do Departamento de Artes Cênicas do Instituto de
Artes da Unicamp. “Dario Fo faz isso brilhantemente. Ele domina a técnica do
raconto e, por isso, sabe adaptar cada espetáculo à região em que está apresentando.
Fo é como um músico que domina seu instrumento e é capaz de executar qualquer
ritmo.”
“Ele não se preocupou em
fazer um teatro partidário, mas um teatro político[...]. Dario Fo sabe defender
uma ideologia sem perder em momento algum a qualidade artística.”
A capacidade de garimpar a
essência da comédia popular e descobrir elementos do medievo no riso de hoje
foi, evidentemente, estimulada pelo viés político de Dario Fo e Franca Rame,
sua mulher, também atriz. O teatro que passaram a fazer nos anos 70 ganhou
forte coloração política, com apresentações em fábricas, sindicatos, escolas,
quadras de bocha e onde mais fosse possível montar um espetáculo. A organização
da companhia, vinculada a um braço do Partido Comunista Italiano, era
comunitária – nos cartazes, os nomes de Franca e Dario não encabeçavam o
elenco, mas vinham em modesta ordem alfabética. Mesmo assim, em nenhum momento
Fo abriria mão de sua concepção de teatro popular. “Ele não se preocupou em
fazer um teatro partidário, mas um teatro político”, analisa Sarah Lopes.
“Dario Fo sabe defender uma ideologia sem perder em momento algum a qualidade
artística.”
“Todo teatro de intenção política
tira sua seiva do momento histórico, mas ganha universalidade pelo emprego de
construções alegóricas e metafóricas”, afirma Silvana Garcia. “Esse teatro
aceita atualizações, porque se dispõe a ser um instrumento interpretativo da
realidade e não um mero retrato daquela realidade histórica em particular.” No
caso de Dario Fo, a prova disso é que suas peças continuam a ser montadas e sob
condições, em todos os sentidos, geográficos e históricos, bastante distantes
daquelas de origem dessa produção.
“Todo teatro de intenção política tira sua seiva do momento
histórico, mas ganha universalidade pelo emprego de construções alegóricas e
metafóricas”
“Quem acha que um teatro de re sistência
está fora de moda não entende nada de Dario Fo”, avisa Neyde. “Seu teatro
político não é agressivo, é provocador, o que é bem diferente.” Para ela, o
homem político Fo foi chegando, com o passar dos anos, ao homem sensível. “Ele
provoca, mas dando um abraço nas pessoas. É como se fizesse um teatro político
humanista”, diz. Admirador confesso do italiano, o autor, ator e diretor Hugo
Possolo, do grupo Parlapatões, acha que o engajamento político de Fo não é
limitador de sua dramaturgia. “Como ele se apoia basicamente na cultura
popular, sempre contando histórias do ponto de vista do desfavorecido, o
trabalho ganha um viés de esquerda – mas o que fica mesmo é a raiz popular
apresentada com um tremendo poder poético”, diz Possolo.
Hugo Possolo - foto o seite do SESC SP |
Ariano Suassuna
Segundo Neyde Veneziano e Sarah
Lopes, os Parlapatões são, no Brasil, o grupo que faz um trabalho mais próximo
da dramaturgia que Dario Fo produz na Itália – na literatura, o trabalho de
Ariano Suassuna é o que mais se aproxima da união de popular e erudito. “No
caso do teatro, a diferença fica muito por conta da técnica, que Fo domina como
poucos”, afirma Sarah. Também seria creditado a favor do italiano a classe de
Fo, que evita a vulgaridade a todo custo. Possolo discorda. “Só porque ele
ganhou um Nobel, isso não significa que deva ser lido como um autor
sacralizado”, afirma.
Ariano Suassuna - Foto o site a UJS |
“Existe um lado escatológico forte na obra dele, como
em algumas histórias de Mistério Buffo, por exemplo.” Artista com
impressionante capacidade de aproveitar o momento da platéia e misturá-lo à
história que está representando, Possolo – que busca inspiração nos circos –
não hesita em classificar Dario Fo como um palhaço. “Assim como Leo Bassi,
outro italiano, Fo recoloca o palhaço como demolidor de morais vigentes, capaz
de tecer críticas profundas enquanto faz rir. E isso não fica ultrapassado
nunca.”
Leo Bassi - foto o blog de lucasarantes.wordpress.com |
O
Projeto
A Cena de Dario Fo – O Exercício da imaginação;
Modalidade Bolsa de pós-doutorado; Supervisão Eugenia Casini Ropa –
Dipartamento di Musica e Spetacolo da Universidade de Bologna (Itália); Bolsista Neyde Veneziano – Escola
de Comunicações e Artes da USP
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