Nesta semana publicamos um artigo de nosso querido
diretor José Ronaldo Faleiro, que também tem a ver com o Projeto Curupira, do Círculo
Artístico Teodora, que procura desenvolver a formação do público jovem e
infantil para o futuro da cultura.
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LÉON CHANCEREL &
O TEATRO COMO
«SERVIÇO DRAMÁTICO »
(...) Léon Chancerel aprendia junto
a Copeau, na Borgonha, os segredos do jogo e se imbuía das idéias
mais caras
ao autor de A Casa Natal :
necessidade de uma escola
de atores , retorno
às leis essenciais
do teatro , cultura
moral do autor ,
modéstia perante
a obra , sinceridade ,
etc. Desse contato nascem Les
Comédiens Routiers [Os Atores Itinerantes ].
Marcel
RAYMOND. Le Jeu retrouvé [O Jogo Reencontrado]. Montréal: l´Arbre, 1942. p. 252.
José Ronaldo Faleiro - Foto Silvia Venturi |
Léon Chancerel preocupou-se com
a renovação da arte teatral
através da formação
da juventude . Já no final
da sua vida ,
fundou e presidiu a ASSITEJ [Association des Amis du Théâtre pour l´Enfance et
pour la Jeunesse /Associação dos Amigos
do Teatro para
a Infância e para
a Juventude ], «nascida do
amor » e «da revolta
— da revolta contra
tudo o que
é feio , medíocre ,
vulgar , ofensivo
para a infância
e para a adolescência
— (...) em suma :
tudo o que
carece de sentido humano ,
de honestidade operária
e de saber »
Na verdade , Léon Chancerel
se interessou pelo teatro
desde a infância :
primeiro como
espectador , vendo espetáculos
nos jardins
de seu avô
materno , em
Gonesse, nos arredores
de Paris; depois como
animador teatral ,
pois em 1918
confeccionou um teatro
de fantoches para
o Natal da Vitória ,
e apresentou para os amigos
La véritable Histoire du Petit Chaperon Rouge, «drame historique en 4 actes et
un prologue» [A verdadeira história de
Chapeuzinho Vermelho , drama
histórico em
4 atos e um
prólogo ], na qual
desempenhava todos os papéis masculinos . Já
na época revelava possuir
familiaridade com
os temas que
preocupavam os homens de teatro mais exigentes da sua
época , e desejava uma renovação profunda
de uma arte que
não deveria ser
apenas «uma empresa
literária , o desejo
de ganhar dinheiro e de
obter sucesso »[2]. Perguntava então para si mesmo : «Quem nos dará espetáculos em que haverá lirismo ,
observação , grandes
arrebatamentos (...)?»[3]
Jacques Copeau - foto de officeculturelcluny.org |
«Não existe arte sem ofício . Aprende primeiro o ofício . Desde o
começo . Aceita as restrições
da arte . (...) Quanto
mais ela
estiver sujeita a restrições
materiais , mais
terá espiritualidade »
William Shakespeare - foto o blog biography.com |
Impregnado das ideias de Jacques Copeau — relativas ao
repertório: a ideia da ressurreição dos
grandes temas ,
retomada do contato
com os grandes
clássicos «vivos »
(Molière, os gregos , Shakespeare, o teatro do Extremo
Oriente , a Commedia dell’arte ); relativas ao espaço (cena
arquitetônica; tablado nu em relação com a busca e a
redescoberta da poesia no teatro , propício
a um jogo
não-naturalista; representação em lugares
fechados ou ao ar
livre , não
especificamente previstos como lugares de
espetáculos teatrais :
galpões , granjas ,
adros ); relativas a princípios e práticas
(livrar o palco
do naturalismo e do mercantilismo; promover uma liberação
técnica ; alimentar
o desenvolvimento corporal
e o conhecimento da interpretação ;
situar o ator no centro do fenômeno teatral ; realçar a importância da técnica
(exercícios
físicos e vocais ,
uso da máscara )
e da ética (idéia
de comunidade , de equipe ,
de trabalho coletivo ,
de disciplina , de ordem ,
de trabalho anônimo )
— parecia a Chancerel que um grupo estável de atores-pesquisadores que
aliasse a experiência do jogo a uma cultura
geral sólida
se tornava conditio sine qua non para
as suas atividades .
Voltaire - foto em http://epicrapbattlesofhistory.wikia.com/ |
Podemos considerar dois momentos de convívio mais íntimo de Chancerel com
Copeau. O primeiro , em
Paris, no Théâtre du Vieux-Colombier. Ele
já é colaborador do mestre :
escreve, até representa, mas principalmente
olha , escuta ,
observa, acumula impressões , imagens , informações ,
no contato com
a equipe , com
o «Patrão », com
seus espetáculos
e projetos . O segundo ,
na Borgonha, quando «põe a mão na massa »:
treina, fabrica acessórios , faz improvisações , esboça
o seu Oncle Sébastien [Tio Sebastião]. O mergulho na Borgonha completa
o batismo de Chancerel nas águas lustrais
do teatro . Os seus
meses borguinhões ocupam um lugar nuclear para a sua prática como autor dramático ,
ator-encenador, historiador do teatro[8]. Lembremos aqui somente a busca que
empreende, por meio
de improvisações , da sua personagem fixa , inspirada na Commedia
dell´Arte , chamada
Oncle Sébastien. Quando a escola do Vieux-Colombier se transferiu para
a Borgonha (experiência efêmera que
durou de outubro de 1924 a fevereiro
de 1925), uma das atividades era esta: procurar a sua própria personagem , na tentativa de
encontrar correspondentes
atuais para
os tipos da Commedia dell´Arte . Os ensaios não
ocupavam o tempo todo
da nova companhia .
Eram compartilhados com as tarefas domésticas e com
os exercícios vocais
e físicos . Cada
membro da equipe
realizava pesquisas sobre
a sua personagem
fixa , com
o auxílio de uma meia
máscara por ele confeccionada, em
busca de um
figurino , de uma silhueta ,
de um timbre
de voz , de um
modo de falar
que eram experimentados nas situações mais
diversas. Misturando Voltaire, Anatole France e ele
mesmo , Chancerel chegou ao esboço de uma personagem
que era
um «rato
de biblioteca » muito
loquaz , um
pouco louco ,
meticuloso , de grande
suscetibilidade . Tal
personagem , ou
figura , cujo
nome — Sébastien Congre [Sebastião
Congro] — já aparecera em 1919 com o pseudônimo com que publicou seus
Poèmes de T’sin Pao [Poemas de T´sin Pao][9], constitui o
embrião do futuro
Oncle Sébastien, personagem que Chancerel apresenta no seu
teatro para crianças a partir de janeiro de 1935, depois
de ter utilizado o mesmo
alônimo para assinar alguns artigos
do Bulletin des Comédiens Routiers [Boletins dos Atores
Itinerantes ], desde
o seu primeiro
número [10]. Tratava-se,
sempre , de um
erudito , um
pouco louco ,
sorridente , esperto ,
com a cabeça
nas nuvens e os pés
no chão [11].
Anatole France - foto em wikipedia |
Considera que o
ator é o operário do teatro : deve, portanto ,
ser formado para a sua tarefa com o sentimento
de servir
e de se dedicar ;
precisa criar o seu instrumento ,
preparar o próprio corpo , a própria
voz , a imaginação ,
o espírito . As peças
virão como conseqüência .
Desse modo , pacientemente ,
foram formados quadros para
atuar na descentralização
cultural ocorrida após 1945, quando ,
finalmente , houve um
interesse do Estado
francês em
disseminar as artes
e a cultura muito
além dos «muros »
parisienses .
Léon Chancerel - foto em babelio.com |
A vasta e
variada atividade de Léon Chancerel
desencadeou, portanto , um movimento de
renovação do teatro — e de interesse por este em atividades da infância ,
da juventude e de adultos ,
em situações
de formação dramática ,
seja na escola , seja em comunidades ,
contribuindo para descentralizar
a sua prática ,
e para aumentar a sua qualidade também junto ao
teatro amador
e profissional [15]. Sua influência foi sentida em muitos países
do mundo . No Brasil, as atividades de Olga Reverbel (com
seu TIPIE [Teatro
Permanente do Instituto
de Educação ], em
Porto Alegre
— mas principalmente
com a sua
postura diante
do fazer teatral
em todos
os níveis do ensino ),
em
Porto Alegre ,
e Maria Clara Machado
e O Tablado, no Rio
de Janeiro , fizeram eco ,
na segunda metade
do século XX, a esse
trabalho , concebido como
«serviço dramático »,
iniciado nos
primórdios do século
XX e instaurado por Chancerel a partir de 1929.
[BING, Suzanne & CHANCEREL, Léon.] Le Journal
de bord des Copiaus; 1924-1929 [O
Diário de Bordo
dos Copiaus: 1924-1929]. Edition commentée par
[edição comentada por ]
Denis GONTARD. Paris: Seghers, 1974.
BORGAL, Clément. Jacques
Copeau. Paris: L´Arche, 1960.
CHANCEREL, Léon. Les
Poèmes de T’sin Pao, «traduits du chinois par
M. Sébastien Congre, archiviste-paléographe» [Os Poemas
de T´sin Pao, traduzidos do chinês pelo Sr.
Sebastião Congro, arquivista-paleógrafo],
illustr. René Gabriel. Paris: Renaissance du Livre ,
1920.
CHANCEREL, Léon. Journal [Diário ], [Inédito .]
CHANCEREL, Léon. Bulletin des Comédiens Routiers [Boletim
dos Atores Itinerantes ].
1932-1939.
CHANCEREL, Léon [Editorial ],
in ASSOCIATION DES AMIS DU THÉÂTRE POUR L´ENFANCE ET LA JEUNESSE. Théâtre , Enfance et Jeunesse. Paris, première
année [primeiro ano ],
1963, I-II. p 3.
A José Ronaldo Faleiro é professor-pesquisador no Departamento
de Artes Cênicas do Centro
de Artes da Universidade
do Estado de Santa
Catarina (UDESC). — Estas páginas foram escritas a partir do artigo intitulado «Leon Chancerel e o Trabalho
com a Infância
e a Juventude », publicadas na Revista
do 10º FENATIB [Festival Nacional de Teatro
Infantil de Blumenau]. Blumenau: Prefeitura Municipal de Blumenau/Fundação
Cultural de Blumenau, julho de 2007. p.
16-19.
[1] Léon CHANCEREL, [Editorial ], in
ASSOCIATION DES AMIS DU THÉÂTRE POUR L´ENFANCE ET LA JEUNESSE. Théâtre , Enfance et Jeunesse. Paris, première
année, 1963, I-II. p 3.
[6] Léon CHANCEREL, «Courrier» [Correio ].
216. Bulletin des Comédiens Routiers [Boletim dos Atores
Itinerantes ], 2(11), nov. 1933, p.
213-219.
[7] Léon CHANCEREL, «Feuilles de Route» [2], nº 20, p. 26. Bulletin des Comédiens Routiers d’Ile-de-France
[Boletim dos Atores
Itinerantes ], da Ilha-da-França 1(1),
décembre 1932, p. 26.
[8] Le Journal de bord des Copiaus;
1924-1929 [O Diário de Bordo
dos Copiaus: 1924-1929]. Edition commentée
par Denis GONTARD. Paris: Seghers, 1974.
[9] Les Poèmes de T’sin Pao,
«traduits du chinois par M. Sébastien
Congre, archiviste-paléographe» [Os Poemas
de T´sin Pao, traduzidos do chinês pelo Sr.
Sebastião Congro, arquivista-paleógrafo],
illustr. René Gabriel. Paris: Renaissance du Livre ,
1920.
[10] V. «Feuilles de Route» [Páginas
de Orientação ], p. 10. Bulletin
des Comédiens Routiers d’Ile-de-France [Boletim dos Atores
Itinerantes da Ilha-da-França], 1(1), novembro de 1932, p. 10-11 et passim, em que assina «Sébastien» [Sebastião]. V. também «Théâtre de l’Oncle Sébastien» [Teatro do Tio
Sebastião], p. 464, Bulletin des
Comédiens Routiers, 3(24-25), [fevereiro
e] março de 1935, p. 464: «(...) esse complexo
Sebastião, tornando-se o Tio (menos dos espectadores
que das personagens )
encontrou a ocasião de se definir ,
em função
da idade , das incumbências
como diretor ,
e das relações diárias
como chefe de
companhia (capo comico, diziam os atores
italianos) juntamente com os seus jovens colaboradores».
[11] «Nada me fere mais e nada me irrita mais , nada é mais doloroso para mim do que alguém vir me dizer :
‘Você vive sonhando. É um poeta ’». Léon CHANCEREL,
«Ce qui est important» [O que é importante], p. 3. Bulletin du Centre d’Études et de Représentations Dramatiques [Boletim do Centro
de Estudos e de Representações
Dramáticas], nº 61, hiver 1939, septième
année, quatrième série [inverno de 1939, sétimo
ano , quarta
sé rie ],
p. 1-9.
[12] « Feuilles de Route » [2], não assinado, nº 15, p. 26. Bulletin
des Comédiens Routiers d’Ile-de-France [Boletim dos Atores
Itinerantes da Ilha-da-França], 1(2),
décembre 1932, p. 26-27.
[13] Les Louveteaux [Os Lobinhos ],
cujo lema
é « Faites de votre mieux » [Faça o melhor
que puder], são
admitidos dos 8 aos 12 anos ; os Escoteiros , com
o lema «Soyez prêts» [Estejam Prontos /Sempre Alerta ], são
admitidos dos 11 aos 18; les Routiers [Os Veteranos ]
são admitidos a partir
dos 17 anos e a sua
divisa é «Servir ». Chancerel constituiu a sua equipe com os Routiers. (Os Scouts de France [Escoteiros
da França] preferiram traduzir por
«Routiers» a expressão
«Rovers-Scouts». Rover vem de «rove», «circular », «vagamundear »,
«andar de terra em terra », e em inglês geralmente significa «pirata »,
«corsário », ou
também «cavaleiro
andante ».)
[14] «Centre d´Études Dramatiques d´Île de France»,
p. 13a do Suplemento de 16p., in Bulletin des Comédiens Routiers
d’Ile-de-France [Boletim dos Atores Itinerantes
da Ilha-da-França], (1)1, novembro de
1932.
[15] «Não
esqueçamos o traço de união
que foi Léon Chancerel. (...) Escolhido,
na Borgonha, para formar
os adolescentes no jogo
ritmado , nas semi-improvisações, nas expressões coletivas com
a utilização alternada de palavra ,
canto e dança ,
a influência de Chancerel, escreve Dussane, foi rápida e imensa .
‘Quase se poderia
dizer , sem grande exagero , que todo o teatro não-profissional na França (e a sua importância
é considerável ) provém dele.’ Quanto aos discípulos
desse discípulo : ‘De Chancerel
saíram os Comédiens Routiers [Atores
Itinerantes ]; dos Routiers [Itinerantes ], mais
ou menos
diretamente , les Compagnons de la Chanson [Companheiros da Canção ], les Frères Jacques [Irmãos Tiago],
le Trio des Quatre [Trio
dos Quatro ]; enfim , a brilhante
Compagnie Grenier-Hussenot [Companhia
Grenier-Hussenot].. ‘Acrescentemos os
Théophiliens [Teofilianos], de
Gustave Cohen, de quem Chancerel foi inicialmente
o conselheiro » (Clément BORGAL. Jacques Copeau. Paris: L´Arche, 1960. p. 295).
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